Não há como negar que uma parcela significativa da população incorporou aos corações e mentes o ódio e a truculência que predominaram no Brasil nestes últimos anos. Uma das consequências que despontaram de maneira preocupante nas grandes cidades foi a falta de urbanidade.
O trânsito virou um circo de horrores. Motocicletas circulando entre carros em alta velocidade. Bicicletas e motonetas afrontando pedestres nas calçadas. Em nome da alegria, bares e restaurantes colocam mesas nas calçadas sem qualquer preocupação com o sossego dos vizinhos.
Enquanto isso, percebe-se o crescimento do número de famílias em situação de rua vivendo embaixo de marquises. Fruto de um modelo econômico concentrador de renda, que despreza questões de interesse social, esse fenômeno vem adquirindo proporções consideráveis a partir do momento em que a política de bem-estar social foi deixada de lado.
Quanto mais injusta a distribuição de renda, maior o contraste social nos espaços urbanos. Guetos de pobreza tendem a sobressair diante dos ambientes de luxo e riqueza. Não poderia ser diferente. Toda cidade reproduz no contexto urbano as condições sociais, econômicas e culturais da sociedade.
Na maioria das cidades brasileiras, as camadas com poucos recursos financeiros vivem em áreas onde predominam a ausência do poder público e a informalidade. Basta observar a expansão desordenada do território pelas periferias e a ocupação de morros e margens de rios.
Propor a remoção dessas pessoas para conjuntos habitacionais distantes e de péssima qualidade arquitetônica e construtiva, significa continuar empurrando com a barriga um problema social que perdura há mais de um século. A questão precisa ser tratada de forma séria, ampla e consistente. Não cabem soluções mágicas de curto prazo, que só servem para contemplar interesses escusos de ocasião.
Nada justifica a eterna complacência do poder público com construções informais feitas à margem da lei. Trata-se de uma realidade complexa, que precisa ser enfrentada com determinação para impedir que esses territórios permaneçam sob o controle de facções do tráfico de drogas e de milicianos. A questão da segurança pública é inadiável.
A inexistência de democracia nessas comunidades está associada à ausência e à omissão do poder público. Se algumas iniciativas podem reduzir o abismo que separa e distingue nossas classes sociais, talvez a mais relevante seja valorizar o respeito à dignidade da pessoa humana. A capacitação educacional e profissional dos moradores dessas comunidades nos parece um caminho viável para enfrentar o desemprego e inserir a população no mercado de trabalho.
A melhor maneira de melhorar as condições de vida nessas comunidades é integrá-las à cidade formalmente construída por meio de processos específicos de urbanização. Interagir com as representações comunitárias visando a incorporar os moradores ao processo de urbanização pode ser o caminho mais adequado para reverter situações aparentemente irreversíveis.
Simultaneamente, é de bom tom oferecer linhas de crédito direto para que o próprio morador possa realizar benfeitorias em sua moradia, com assistência técnica profissional. Em paralelo, é preciso dotar essas comunidades de equipamentos de interesse social, cultural e recreativo. Essa seria outra iniciativa para elevar a autoestima dos moradores.
Recuperar a urbanidade perdida em nossas cidades é um processo inadiável.
nota
NE – Publicação original: JANOT, Luiz Fernando. É preciso recuperar a urbanidade perdida. O Globo, Rio de Janeiro, 31 mar. 2023 <http://glo.bo/3oXMt0W>.
sobre o autor
Luiz Fernando Janot é arquiteto e urbanista.