Érico Costa e Luciana Andrade: Você poderia nos explicar um pouco a origem do Programa Favela-Bairro?
Maria Lúcia Petersen: O Programa Favela-Bairro foi concebido a partir de um projeto anterior chamado Projeto de Urbanização Comunitária/Mutirão Remunerado da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social. A secretaria se estruturava matricialmente, composta de área social e execução de obras. Nesse sentido, o projeto abrangia componentes multidisciplinares, desenvolvimento urbano, meio ambiente, desenvolvimento social (creches) e educação sanitária e ambiental.
Uma equipe formada por agentes sanitárias foi contratada nas comunidades para desenvolver um trabalho de pesquisas domiciliares. Para entrevistar cada família e promover atividades de educação em questões de saneamento e meio ambiente, em mais de 120 favelas e loteamentos. Em 1988, a GeoRio e a Comlurb passaram a intervir de forma maciça nas favelas. Surgem então as principais premissas para a metodologia de participação comunitária, fundamentada na articulação da transformação física com as políticas sociais.
É importante ressaltar alguns desdobramentos significativos alcançados durante esse período. O primeiro, se refere ao pioneirismo da estrutura gerencial do projeto, em que a mão de obra era contratada na comunidade e a prefeitura fornecia material e assistência técnica, gerando uma importante troca entre saberes técnicos e populares. O segundo, se relaciona com a prioridade na capacitação e a contratação dos moradores, na operação e manutenção de todos os projetos.
A estruturação do Programa Favela Bairro, a partir de 1994, como desdobramento do Projeto Mutirão, se deu em um contexto muito favorável. A prefeitura já contava com equipes técnicas multidisciplinares especializadas nas intervenções físicas e sociais. O Plano Diretor, ao adotar aquelas questões conceituais, criou um importante instrumento de possibilidades normativas de intervenções e com a sua aprovação em 93, ampliou-se o universo de intervenções.
A declaração das Áreas de Especial Interesse Social, com diretrizes fundamentadas no Mutirão Remunerado e a formulação da Política Habitacional criaram instancias diversas para a solução de situações de risco, com o re-assentamento e/ou as desapropriações/indenizações, independentemente da irregularidade das ocupações. Possibilitou também a viabilização da regularização urbanística e fundiária, considerando-se que as intervenções urbanísticas proporcionaram as condições necessárias.
Institucionalizou-se uma Política Urbana Integrada para as áreas pobres e a criação da então Secretaria Especial de Habitação. Viabilizou-se a abertura de ruas, praças, centros comunitários, iluminação pública, re-assentamento de moradores na própria favela, eliminação de áreas de risco, drenagem de rios e canais e áreas de esportes.
Abriu-se também oportunidade de captação de recursos junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) que permitiu a implantação de uma estrutura altamente qualificada de gerência para a elaboração de projetos e execução de obras.
EC/LA: E quais pontos você acha que precisam ser reavaliados?
MLP: O Favela-Bairro é considerado, mundialmente, como um dos programas mais avançados e eficazes para a redução da pobreza no mundo. A assinatura de um segundo contrato com o BID, em 99, é uma confirmação inequívoca desse fato.
A questão principal a ser reavaliado se refere à insuficiência dos instrumentos de planejamento participativo, criados na 1ª etapa, que deveriam estruturar as articulações macro-funcionais inerentes à concepção programática estabelecida, envolvendo basicamente as secretarias de habitação, obras, meio ambiente, desenvolvimento social, trabalho e renda, além de esportes e saúde.
Nesse sentido, havia um descompasso nas atividades a serem desenvolvidas, que vem sendo corrigido. Preponderaram as concepções arquitetônicas e urbanísticas. É evidente que essa situação trouxe algumas conseqüências, principalmente porque diante do amplo universo da pobreza, que só poderia ser atendido com programas massivos – por questão de custo, de viabilidade, de eficiência e eficácia – nem sempre existiu a agilidade para a ocupação desses espaços construídos.
A institucionalização e o aprimoramento desse instrumento de planejamento participativo só foi concretizado com a assinatura do segundo contrato com o BID, embora tenham sido feitas experiências em 4 favelas, por iniciativa da gerência do programa na época. Os Planos de Ação Social Integrada (Pasi’s), hoje estão organicamente estruturados em uma gerencia social para dar eficácia e eficiência às ações macro-funcionais.
Outra questão importante é que hoje estamos implementando a titulação de moradias. Acabamos de lançar um importante livro sobre “e-Solo: os caminhos para a regularização Fundiária no Rio de Janeiro”, que descreve os avanços alcançados ao nível das capitais do país.
EC/LA: O tráfico também não atrapalha?
MLP: Depende. Diante da variedade de comandos e situações de cada comunidade atrapalham em aspectos diversos. Pode ser em obras, em ações sociais ou outros. Existe uma variável muito grande de situações, mas que não chegam a inviabilizar as ações.
A questão maior e prioritária diz respeito a todas as cidades do Brasil. As prefeituras, quando têm alguma ingerência nas questões de segurança, agem de forma muito limitada. Existe um processo de abordagem nacional, por iniciativa da prefeitura do Rio e do UN Habitat e também com a participação, da FNP e do governo federal acerca de políticas municipais e competências dos três poderes públicos envolvidos, para estabelecer caminhos de longo prazo. A presença do tráfico nas áreas pobres só vem aprofundar essa lacuna na jurisprudência brasileira.
Aliado à violência desencadeada, hoje vemos que o tráfico exerce um papel que se confunde com o poder ao induzir novos comportamentos e culturas (vestimenta, música, dança) nas comunidades. Os chamados chefes servem de referência até para a solução de conflitos internos entre moradores. Que fique explicito que não estou falando de apoio da população mas sim da perda de referências. É evidente que não caberia ao Favela-Bairro resolver questões de ordem urbana. Mas a polícia tampouco resolveu a garantia da liberdade de ida e vinda nos espaços construídos. Foi perdida a referência policia-legalidade-segurança no sentido mais amplo. Na realidade, questões jurídicas que regulam a vida urbana, ainda não chegaram à favela.
EC/LA: Como os moradores da cidade formal aderiram ao Favela-Bairro?
MLP: Os moradores da cidade formal aderiram ao Favela-Bairro porque atendemos aos seus interesses, na medida em que o programa, nas intervenções realizadas, elimina impactos importante de enchentes, lixo e outros. O morador da cidade que paga seu IPTU deu o “de acordo” para que parte do que ele paga fosse usado em áreas de pobreza. Mais do que consenso, eu chamaria de uma confluência de interesses.