Abílio Guerra: Você poderia nos contar como foi sua formação acadêmica e o início de sua atividade profissional? Quais foram os professores e profissionais que mais o marcaram?
José Tabacow: Achei muito curiosa a primeira parte da pergunta, pois as duas coisas aconteceram juntas, profundamente relacionadas, e em circunstâncias muito especiais: Entrei na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ em 1964, em um momento tumultuado da história do País. Em meio a rumores e intranqüilidades, o Presidente João Goulart havia determinado que o número de vagas das universidades federais fosse duplicado. Assim! Sem mais nem menos! Minha turma, no primeiro ano tinha cerca de 400 alunos e o Curso não tinha infra-estrutura nem professores para suportar tanto.
Um mês depois do início das aulas aconteceu o golpe militar que derrubou o Presidente e instaurou a ditadura. Começavam os “Anos de Chumbo”.
Diante da situação, os alunos se deram conta que o curso teria deficiências estruturais incontornáveis e, conseqüentemente, sua qualidade comprometida. Os professores faziam um esforço sobre-humano. Muitos deles terminavam as aulas afônicos, nas enormes salas de aulas teóricas, logo apelidadas de Maracanãs. Nos laboratórios e maquetaria não havia materiais para todos. Por outro lado, confinados em pequenas salas com oito ou dez alunos nas práticas de projeto, ficávamos isolados dos colegas, muitos dos quais passávamos semanas e mesmo meses sem ver. Quase não havia troca, interação e sinergia.
Uma das soluções para contornar tais problemas era procurar estágios em escritórios de arquitetura ou empresas construtoras, tentando complementar o aprendizado fora da Escola. Muitos colegas fizeram isso. Eu mesmo trabalhei um mês em um escritório, desenhando formas e ferragem para concreto armado. Mas não gostei e saí.
Já no segundo ano, voltando da Faculdade com Haruyoshi Ono, meu colega de turma, vimos uma placa de obra de Burle Marx & Cia. Ltda. no Parque do Flamengo, àquela altura em final de implantação. Anotamos o endereço e fomos lá bater à porta a procura de estágio. A circunstância de o paisagista ter dissolvido a sociedade que mantinha com quatro arquitetos poucas semanas antes foi uma espécie de bilhete premiado. O escritório era um deserto e ele precisava de mão-de-obra. Havia apenas um desenhista que logo se foi. Quase não havia trabalho, mas o fato de termos sido aceitos significava muito para nós. Na falta do que fazer, começamos a organizar o escritório, que era um aglomerado caótico de rolos de papel vegetal (originais dos projetos já concluídos), em tubos sem qualquer identificação externa. Antes de nossa organização, procurar um projeto significava abrir tubo por tubo, rolo por rolo, até encontrá-lo.
Depois organizamos as informações sobre plantas ornamentais, originalmente manuscritas em cartões. Criamos um fichário impresso e datilografado que permanecia em uso e em atualização até minha saída, dezessete anos depois! E assim fomos ficando até que começaram a surgir trabalhos numa curva ascendente que parecia não ter fim. O escritório cresceu, o número de arquitetos e desenhistas que entravam e saíam também.
Quanto à segunda parte da pergunta, certamente o melhor professor que tive foi o próprio Burle Marx, com quem meu aprendizado só teve fim pouco antes de sua morte, em 1994. Mas, mesmo considerando as circunstâncias, houve nomes importantes no curso de Arquitetura: Ernani Vasconcellos, Ricardo Menescal, Augusto da Silva Telles, Paulo Casé, Flávio Marinho do Rêgo, Roberto Thompson Motta , entre outros. Na época, a arquitetura brasileira era valorizada mundialmente e estávamos ainda sob o impacto do modernismo, da projeção de Oscar Niemeyer no exterior e da construção de Brasília.
Outro aspecto digno de registro foi que, através dos trabalhos do escritório de Burle Marx, tivemos contato com arquitetos importantes nas décadas de sessenta e seguintes. A convivência com Jorge Machado Moreira, Ary Garcia Roza, Carlos Leão, Jorge de Souza Hüe, Alcides da Rocha Miranda, Sérgio Bernardes, Maurício Roberto e muitos outros significou uma oportunidade ímpar de aprender e acumular uma cultura arquitetônica, urbanística e paisagística que a Faculdade de Arquitetura não poderia nos dar.
AG: Mesmo supondo que sua formação essencial tenha sido sob a tutela de Burle Marx, é de se supor que pessoas e situações dentro e fora da escola também tenham tido importância em sua formação intelectual mais ampla. Você poderia nos falar um pouco sobre isso?
JT: Graças à minha mãe, que me levava a concertos desde quando eu tinha sete ou oito anos, e a uma vizinha que, um pouco mais tarde, me ensinou o gosto pela leitura, iniciando-me em Dostoievski e em Graciliano Ramos, desde cedo já estava antenado em música e literatura. Mais tarde surgiu minha atração pelo cinema. Mantenho estas três atividades até hoje, de forma mais ou menos contínua. Mas nunca a atividade intelectual foi tão intensa como nos anos em que cursei a arquitetura, a esta altura já na ilha do Fundão.
Acho que, ironicamente, devemos tal anseio de produção intelectual àqueles anos de repressão extrema, como uma reação. Todo mundo tinha medo de tudo. Pessoas denunciavam. Pessoas desapareciam. Ou apareciam mortas! Na época, intelectual era quase sinônimo de comunista. Paradoxalmente, esta situação estimulou a produção intelectual de forma extraordinária. Um exemplo inesquecível foi a peça “Liberdade, Liberdade” de Millor Fernandes. Com um elenco que reunia Paulo Autran, Vianinha (Oduvaldo Viana Filho), Nara Leão e Tereza Rachel, a peça fazia sucesso quando o Teatro de Arena foi depredado por forças paramilitares ou militares mesmo, não lembro bem. O fato chamou tanta atenção que a peça permaneceu em cartaz por muito mais tempo que o previsto, acho que três anos, sempre com a casa cheia.
Outro exemplo emblemático foi O Pasquim, freqüentemente recolhido das bancas de revistas pelos censores da ditadura. O jornal estampava, a cada edição, uma espécie de logomarca acompanhada do aviso “Enquanto você ver este selo, o Pasquim está sob censura”.
Em 1965, quarto centenário do Rio de Janeiro, o ainda Governador Carlos Lacerda (logo depois seria deposto pela ditadura) promoveu um ano de programação cultural intensa e inesquecível. Naquele ano, assisti Stravinsky reger seu “Pássaro de Fogo”. Fui para o Teatro Municipal às 5h da manhã. A bilheteria abria às 10h. Meus colegas da arquitetura foram chegando, me viam no terceiro lugar da enorme fila que se formara e me pediam para comprar seus ingressos. Quando a bilheteria abriu joguei pela portinhola 17 carteiras de estudante e comprei quase toda porção central da primeira fila da galeria. No mesmo ano ainda assisti a Orquestra de Philadelphia com Eugene Ormandy, no Maracanãzinho, Sir John Barbirolli com a Philarmonia Orchestra de Londres, a primeira audição completa (com ballet) da “Carmina Burana” nas Américas, o compositor Aaron Copland regendo sua música, executada pela Orquestra Sinfônica Brasileira e muitos outros nomes que depois vieram a ser “figurinhas fáceis” nos selos da Deutsche Gramophone. Durante meu curso, assisti a quase todos os concertos da Orquestra Sinfônica Brasileira, para os quais tinha uma assinatura de camarote em sociedade com Haruyoshi Ono.
Na música popular surgiram Chico Buarque, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Milton Nascimento, Maurício Tapajós, o Clube da Esquina, Nara Leão, Elis Regina, Caetano Veloso, Gilberto Gil, os irmãos Caymi. Um pouco depois os nordestinos: Geraldo Azevedo, Gonzaguinha, Alceu Valença, Raymundo Fagner.
Nós éramos conhecidos como a “Geração Paissandu”, por causa de um “cinema de arte” com esse nome, que havia no Flamengo. Na época brilhavam diretores como Alain Resnais, Philippe Goddard, Ingmar Bergman, Buñuel e, naturalmente os italianos Federico Fellini, Antonioni, Pier Paolo Pasolini.
Era rara a semana em que o grupo do escritório, estudantes, desenhistas, arquitetos e estagiários, não ia a algum show de música popular: Cartola, Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito, Elton Medeiros, o Época de Ouro, Candeia, Beth Carvalho em início de carreira, MPB-4 começando, Paulinho da Viola surgindo.
Havia ainda as inesquecíveis peças no improvisado Teatro Jovem, no cantinho do Mourisco. Todo em madeira e papelão, foi um milagre não ter se incendiado. Ali toda a estudantada se encontrava. Ainda lembro o nome de algumas peças: “A Moratória”, “João Amor e Maria”, com Fernando Lebeis, MPB-4 e Beth Faria, pasmem, cantando! Se pensar mais um pouco, posso lembrar muito mais. Mas 40 anos se passaram...
Enquanto isso, no escritório e por conta das relações de Roberto, convivíamos com nomes como Clarival Valladares, Aluísio Magalhães, Carmen Portinho, Carlos Leão, Fayga Ostrower, Edith Bhering, Zélia Salgado, Wit Olaf Prochnik. É difícil mencionar todos, tantos que eram!
É possível que tenha cometido algum equívoco cronológico, mas, em suma, foi neste ambiente em que me formei. Considero-me um privilegiado por ter vivido aqueles momentos. Embora com os horrores da ditadura, com o medo em cada esquina, foi uma época extremamente fértil de cultura para nós, que iniciávamos.