Abílio Guerra: Quando e como foi sua saída do Escritório de Burle Marx? Quais foram os principais motivos? Quais foram os seus primeiros trabalhos? Quais foram seus novos parceiros?
José Tabacow: Em 1982 resolvi que era hora de voar solo. Talvez eu tenha ficado muito tempo e acredito que foi uma decisão acertada, pois a intensidade dos trabalhos do Escritório e o envolvimento com prazos, contratos, controle de pagamentos, toda a parte técnica e administrativa estava com Haruyoshi Ono e comigo. Meu envolvimento naquela estrutura impedia-me de perceber que, sozinho, eu teria novas possibilidades de exploração e poderia me dedicar a pesquisa, que sempre me atraiu mas para a qual não havia tempo. As viagens constantes para entregas de projetos, visitas a clientes, negociações e funções administrativas me afastavam da prancheta. Sem perceber, eu me transformava cada vez mais em administrador e passava grande parte de meu tempo útil em aeroportos ou aviões.
Saí do escritório, mas aluguei uma sala na mesma casa que este ocupava. Foi um período muito bom, pois eu tinha independência, mas mantinha o contato. E ainda restara um vínculo que muito me agradava: Burle Marx e Haruyoshi Ono pediram que eu continuasse a participar do projeto do Jardim Botânico de Maracaibo, na Venezuela. Eu já tinha todos os contactos e este foi um projeto feito quase inteiramente in loco, o que me mantinha naquele País por dez, quinze dias a cada dois meses. Pelos meus passaportes contei quarenta e seis entradas na Venezuela! E como se tratava de um jardim botânico, o trabalho não se restringia a um projeto de paisagismo, mas incluía viagens de coleta para as coleções botânicas, palestras na escola de horticultura que havia dentro da instituição e muito trabalho de campo, em conjunto com os botânicos, alunos e operários. Foi muito enriquecedor. Tive, neste trabalho, duas experiências inesquecíveis. A primeira foi projetar o crassuletum, coleção de plantas crassas (com folhas gordas pelo acúmulo de água como reserva) com área de 32.000 m2, em escala 1:1! Criávamos no próprio terreno os desenhos dos caminhos e áreas de estar com mangueiras de jardim com trinta metros, sobre as quais era jogada cal para desenhar a forma e para podermos retirar a mangueira e seguir adiante. Aproveitávamos os grupos de árvores já existentes para criar áreas de estar e a rede de caminhos era traçada tendo em vista os conjuntos de pedras que haviam sido previamente importados e arranjados pelo espaço. Assim foram criados os locais para as futuras coleções. Desenhei toda a área com cal, mas não tinha muita noção de como estava ficando o conjunto. Um helicóptero resolveu o problema. Subi algumas vezes e, do alto, pude avaliar se havia unidade na composição, como se estivesse olhando para a prancheta.
A outra experiência interessante, também em 1:1, foi traçar um grande lago usando um trator como lápis! Um garfo de arar ia marcando no terreno plano as formas desejadas. Depois de definido o perímetro, iniciou-se a escavação da área a uma profundidade de 50cm. Como o trabalho de escavação era muito lento, peguei meu trator/lápis e desenhei duas ilhas, para diminuir o espelho d’água e, conseqüentemente, o movimento de terra.
Fatos como estes foram possíveis pela riqueza que havia no País, oriunda do petróleo. Quando a OPEP decidiu reduzir a produção mundial do petróleo, a Venezuela, como país membro, teve que acatar. Em conseqüência, o choque econômico e repentino do dia 18 de fevereiro de 1983, conhecido como “el viernes negro”, provocou a interrupção dos trabalhos, o posterior abandono da Instituição e a extinção da escola de jardinagem. Terminava assim, melancolicamente, meu período na Venezuela.
De volta à realidade, abri uma empresa de projetos, paralelamente iniciando minhas atividades de pesquisa. Adquiri um computador (8 bits – 48k de RAM! Um foguete, para a época!) no qual armazenei meu primeiro banco de dados digitais sobre Palmeiras do Brasil, compilados e organizados por meu amigo Ricardo Cytryn, já falecido. São informações a respeito de mais de quatrocentas palmeiras com dados taxonômicos, biométricos, distribuição geográfica, etmologia dos nomes populares e científicos, usos que o povo faz e descrições morfológicas em geral. Ainda tenho este trabalho inédito e seria uma bela homenagem a ele publicá-lo.
Durante muito tempo tive poucos trabalhos de paisagismo mas, pouco a pouco, o escritório que abri foi se consolidando e passei, além de projetos, a prestar consultoria na área ambiental.
AG: Você esteve radicado por 9 anos no Espírito Santo. Como foi parar lá ? Como foi a experiência? Qual o motivo de ter mudado para outro lugar?
JT: Após a doação à Fundação Nacional PróMemória (hoje, IPHAN – MinC), Roberto convidou-me a ajudá-lo na direção do seu Sítio Santo Antônio da Bica, que passou a se chamar oficialmente Sítio Roberto Burle Marx. Por esta razão, entramos os dois para o quadro de funcionários do IPHAN e voltamos a trabalhar juntos.
Cerca de um ano depois (1986) deu-se o falecimento de Augusto Ruschi, o famoso naturalista que estudava colibris em Santa Teresa – ES. O então presidente da Fundação, Joaquim Falcão, convidou Burle Marx a acumular a direção do Museu de Biologia Prof. Mello Leitão, que havia sido doado à Fundação alguns anos antes, mas ele não aceitou. Eu fui a segunda escolha e, como o cargo era provisório, por cerca de três meses, aceitei. Fiquei nove anos.
Foi uma experiência extremamente enriquecedora. O Museu funcionava como instituição particular, sem visitação, sem acesso franco de pesquisadores. As coleções científicas não estavam catalogadas de acordo com os padrões e havia sérios problemas de conservação física do patrimônio científico e bibliográfico, e das instalações. A grande umidade da região, aliada ao microclima criado pelo bosque que circunda o Museu fazia estragos por toda parte.
Requalificar o Museu não era tarefa que eu pudesse fazer sozinho. Mas eu contei com a ajuda inicial e permanente dos biólogos Hélio Boudet Fernandes, atual Diretor, e Ségio Lucena Mendes, pesquisadores, de Cintia Chamas, arquiteta do IPHAN, e dos demais funcionários. Através deles e de seus contactos, começamos a contar com ajuda externa de nomes importantes da área biológica. O professor Jacques Vielliard, da Unicamp passou algum tempo no Museu e organizou toda a coleção ornitológica (cerca de 8.000 peles de aves). Apoios importantes, fundamentais mesmo, foram dados por Keith Brown Jr., também da Unicamp, Luiz Soledade Otero, do Museu Nacional, Antônio Claudino de Jesus, Sub-Reitor da Universidade Federal do Espírito Santo, entre muitos outros. O Museu voltava-se predominantemente para a zoologia, embora desenvolvesse coleções botânicas. Havia um herbário com cerca de quatro mil registros. Com a doação do herbário pessoal da botânica Bárbara Weinberg, atingimos o número mínimo e demais exigências para incluir o Museu no Index Herbariorum, índice oficial dos herbários internacionais.
Foi um período fértil de aprendizado em novas áreas, principalmente em ecologia, pelo contacto com os pesquisadores do Museu e visitantes, com muitos dos quais saía a campo, acompanhando-os em suas coletas e observações. Mas também pelos eventos que promovemos, exposições, encontros, seminários e diversas atividades na área de educação ambiental. Por convênio, estudantes de biologia passaram a monitorar a visitação e a desenvolver seus trabalhos acadêmicos no Museu ou em suas reservas, duas áreas de mata atlântica de encosta em razoável estado de conservação.
O paisagismo passou para plano secundário. Fiz alguns projetos esparsos, mas meu interesse estava muito mais focado na consolidação do Museu como instituição pública. Abri o Museu à visitação assim que reunimos as condições mínimas. Produzimos uma exposição itinerante sobre colibris que percorreu as principais capitais e muitas cidades do Brasil. Com apoio financeiro de uma indústria local, produzimos um jogo infanto-juvenil, “Ecomemória” que teve aceitação bastante expressiva. Preparamos uma exposição sobre morcegos, que não chegou a acontecer, mas transformou-se no meu livro “A Vida dos Morcegos”, que ganhou a chancela de “Altamente Recomendável” da Câmara Internacional do Livro Juvenil.
Considero que minha participação foi fundamental para que o Museu pudesse passar de sua condição de instituição de caráter particular, inteiramente submetida à vontade e veleidades de seu fundador, a um órgão público, de acesso aberto a todos, sob as mesmas condições. O mérito que tenho nesta consolidação foi o de ter me cercado de pessoas competentes, sem as quais não poderia ter feito qualquer destas ações. Foi um trabalho de coordenação, no princípio tão intenso e produtivo, que se passaram os três meses previstos e muitos mais, e, sem que eu percebesse, desapareceu a condição de cargo provisório que, burocraticamente, ainda constava em minha nomeação.
Assim, chegamos ao momento do “entretanto”: Quando começou o Governo Collor, o Museu entrou em profunda crise política motivada por facções oportunistas que, estimuladas pela fragilidade que as medidas levianas e imediatistas de Brasília estabeleceram, perceberam possibilidades de se apossar do seu comando. A Prefeitura local, a Universidade e outros grupos do Estado passaram a usar de todos os recursos, éticos ou não, para conseguir seu intento. A imprensa participou ativamente da disputa, alimentando a fogueira das ambições.
Trocou-se assim a parte boa, aquela de consertar, arrumar, produzir, por outra, de defender, justificar, discutir, desmentir. Eu já estava há seis anos na direção e me percebi na condição de um patético Dom Quixote, enfrentando dragões contra os quais eu não sabia oferecer resistência. Decidi que era hora de sair da Direção e solicitei minha demissão. Mas continuei como funcionário por mais três anos, trabalhando na área de educação ambiental ou desenvolvendo alguns projetos técnicos, à parte das aguerridas disputas que, então, se estabeleceram. Por esta época, fiz minha especialização em Ecologia e Recursos Naturais na UFES – Universidade Federal do Espírito Santo.
Concluído o Curso, eu já não tinha qualquer razão para permanecer morando numa pequena cidade do interior. Havia chegado o momento de procurar outro local para morar e trabalhar.
Hoje o Museu segue seu caminho. Como todas instituições governamentais, ele é extremamente sensível às circunstâncias e sofre pela pouca importância que os Governos, em geral, dão à cultura e à ciência no Brasil. Mas está lá, realizando suas pesquisas, recebendo seus visitantes e produzindo ciência, definitivamente na condição de órgão público.
AG: Você já está radicado em Florianópolis há praticamente uma década. O que o motivou a se mudar para a capital catarinense? Como têm se desenvolvido suas atividades profissionais e acadêmicas desde então?
JT: Após nove anos de isolamento cultural, numa pequena cidade do interior, minha família e eu precisávamos “recarregar as baterias”. Estávamos desesperados para sair, mas sem referências e na iminência de apontar o dedo, por sorteio, para um local qualquer no mapa e se mudar para lá. Na época, quando íamos a São Paulo ou Rio, nosso programa predileto era ir aos shoppings, ver gente, barulho, luzes e movimento. Houve vezes em que assistimos a três filmes no mesmo dia. Ou que saímos diretamente do cinema para o teatro ou algum concerto.
A escolha de Florianópolis foi o que chamo de um caso de amor à segunda vista. Eu já havia estado rapidamente na cidade, a trabalho, duas ou três vezes em 1977. Havia ido com Roberto levar o projeto do aterro da Baía Sul, mas, entre reuniões e visitas à obra, pouco tempo sobrou para que eu conhecesse razoavelmente o lugar.
Em uma viagem de férias, em 1996, saímos do Espírito Santo para conhecer a serra Gaúcha, em especial, a cidade de Antônio Prado, uma pequena jóia na montanha, que tem vinculações históricas com Santa Teresa por conta da imigração italiana. No caminho, entramos em Florianópolis, sob o sol poente. Foi um momento mágico. Aquela ilha, a paisagem banhada por uma luz avermelhada, a nossa esquerda a Ponte Hercílio Luz e a baía Norte, à direita, a baía Sul, o continente atrás. Fez-se um silêncio unânime no carro. Todos estávamos pensando a mesma coisa: “Vai ser aqui!”. E foi!
Em Santa Catarina não há muito a tradição de contratar paisagistas para tratar os espaços públicos. Desde que me mudei para cá, fiz projetos na Bahia, no Rio Grande do Norte, no Rio de Janeiro, mas somente há pouco fiz um primeiro projeto para um pequeno parque em Florianópolis, na cabeceira insular da Ponte Hercílio Luz. E no momento, estou fazendo um trabalho muito interessante de revitalização de toda a beira-mar de Laguna, no sul do Estado. Trata-se de uma paisagem única, com dunas, muito vento e os molhes de pedra protegendo o canal da lagoa.
Ali ocorre a tradicional pesca com a ajuda dos golfinhos, cuja presença quase permanente empurra os cardumes para as margens, diretamente para as tarrafas dos pescadores. A cidade tem um expressivo centro histórico tombado, onde predominam construções ecléticas, luso-brasileiras e art déco.
Além de projetos de paisagismo, participo de estudos e elaboração de relatórios de impacto de vizinhança, à luz do Estatuto das Cidades, planejamento de unidades de conservação, elaboração de EIA-RIMA, encarregando-me, nestes estudos interdisciplinares, da componente Paisagem. Trata-se de uma nova possibilidade de participação do paisagista, e tenho alertado para isso em palestras e artigos, desde que passei a me aprofundar em Ecologia da Paisagem, ainda no Espírito Santo.
Para tanto, fiz especialização em Ecologia e Recursos Naturais e doutorado em Geografia, com tese voltada para a fragmentação da paisagem na Ilha de Santa Catarina. Somando-se minhas atuais atividades como professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UNISUL – Universidade do Sul de Santa Catarina, este é o caminho que venho seguindo e no qual, por enquanto, pretendo continuar.