Considerações Iniciais sobre os primeiros passos (1)
O contato com Maria Elisa para agendar a conversa foi feito por telefone, motivado pelo material exposto pela Associação Casa de Lucio Costa no período que antecedeu ao Seminário “Um Século de Lucio Costa”, realizado no Rio de Janeiro, na exposição “Lucio Costa: 1902-2002”. Estes eventos tiveram muita importância, sendo que o seminário ocorreu no auditório do edifício sede do antigo Ministério da Educação e Saúde, atual Palácio Gustavo Capanema, no período de 13 a 17 de maio de 2002, tendo em vista as comemorações pelo centenário do nascimento de Lucio Costa (1902-1998). A entrevista no apartamento do Leblon foi iniciada com uma apresentação pessoal, tendo em vista que o interesse era entender um pouco mais sobre a trajetória acadêmica e profissional do Dr. Lucio, na visão de Elisa, em particular as visões de urbanismo presentes nesta trajetória. Assim, se colocava de modo particular a inserção do concurso para Monlevade no percurso de Costa, tendo sido este concurso promovido pela Companhia Siderúrgica Belgo Mineira no ano de 1934. A proposta apresentada por Costa se distinguia bastante em relação aos projetos concorrentes, pela concepção inusitada de blocos de moradias sobre pilotis, dispersos pela encosta que desaguava no rio Piracicaba, esta recortada pela estrada de ferro Vitória-Minas, na região do Quadrilátero Ferrífero, em Minas Gerais. Também merece destaque a inserção dos equipamentos, como igreja, armazém, clube e escola em uma linguagem moderna, em torno da praça de convívio. Durante a entrevista constatamos a importância desta experiência precursora no Brasil, em termos de assimilação dos princípios da Arquitetura Moderna, particularmente da visão Corbusieriana, com relação aos partidos arquitetônicos e urbanísticos. O concurso para Monlevade antecipa questões referentes às soluções tecnológicas e ao emprego de materiais, além de revelar princípios para a concepção de conjuntos urbanos, que irão ser consolidados de maneira particular por Lucio Costa, ao longo da sua trajetória vinculada ao Movimento Moderno no Brasil. No decorrer da entrevista, imersos no próprio ambiente de Lucio Costa, Elisa esclareceu pontos importantes, que muito contribuiram para os desdobramentos da pesquisa e sua continuidade nos dias atuais.
Fábio: Eu sou arquiteto formado pela Escola de Arquitetura da UFMG, atualmente leciono no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Engenharia da UFJF; desenvolvo uma pesquisa de doutorado sob a orientação da Profª Cristina Leme da FAUUSP que aborda o concurso Monlevade e, de modo particular a trajetória profissional e acadêmica do arquiteto e urbanista Lucio Costa; gostaria que você discorresse um pouco sobre esta trajetória do seu pai e sobre a importância de Monlevade, neste longo percurso acadêmico e profissional relacionado ao Movimento Moderno no Brasil.
Maria Elisa: Há coisas que eu observo nas pessoas que tratam do Lucio, que se interessam pelo Lucio – mais velhas, formadas, professores e tudo mais – tem sempre algumas informações faltando, que não fecham para você entender a cabeça dele. Você entende? Tem certas coisas que dizem, que não correspondem à personalidade do Lucio, ele sempre foi uma pessoa completamente livre, ele sempre fez tudo o que achava, acreditava... Para ele o discernimento vinha de dentro, não era porque ninguém mandasse, isso nunca houve.
Eu sempre tive uma curiosidade sobre como aconteceu a mudança de rumo na arquitetura dele – mas como é que é isso, como é que acontece que de repente você aperta um botão e muda? como é que se processou? eu perguntei isso a ele. Aí ele me disse o seguinte: a primeira coisa, a coisa básica foi o encontro com Diamantina, em 1924; ele era um arquiteto neo-colonial, de sucesso, desenhava divinamente, mas era muito moço, tinha só 22 anos, e por isso mesmo foi enviado a Diamantina, que era longe, e a viagem cansativa – os mais velhos foram para Ouro Preto, Mariana.
Quando ele narra o susto daquele encontro, é impressionante: chegou lá e caiu em cheio num passado, num passado de verdade, que era novo em folha para ele. E ele comentava esse encontro com Diamantina, como se fosse ontem, e no final dizia uma frase definitiva, ‘…era aquela beleza sem esforço’, entende? Então para ele bateu uma coisa… ôpa, o que é isso, nós, neo-coloniais, fazemos um supremo esforço, você pega coisa de igreja e bota em casa, não é, e de repente chega aqui e é tudo normal, lindo e sereno e compatível com a tecnologia de construir; então isso instalou dentro dele uma perplexidade, digamos, um desconforto extremamente poderoso, porque perdurou… ele continuou sendo arquiteto neo-colonial até 29, mas aquilo começou a incomodar cada vez mais, ficou aquela referência de base, e eu tenho a sensação sempre de que esse encontro com Diamantina foi também o caminho de chegar à coisa moderna. Na cabeça de uma pessoa bem informada como ele, com lastro cultural bom, todas as épocas tinham uma cara correspondente a um modo de construir. Como a mudança radical nas técnicas construtivas, em meados do século XIX, que davam a possibilidade de “vestir” a estrutura com as mais diversas fantasias, ficava tudo lá dentro escondido e ninguém estava preocupado com isso.
De repente eu acredito que isso de Diamantina, da coisa verdadeira, da coisa autêntica, colocou nele também o embrião da pergunta: Qual seria o moderno do meu tempo? Qual seria a cara correspondente a essa tecnologia nova!? Porque foi uma mudança enorme, você não tinha mais parede aguentando – de repente porão vira pilotis – pilotis é um porão sem parede –, não precisa mais ter parede no térreo, porque o térreo nunca foi valorizado. Ou seja, você tinha sempre um porão, uma coisa qualquer, o primeiro andar sempre foi um pouco mais alto que o chão. Uma simplicidade bela – para ele coisa bonita… beleza sempre foi fundamental, como dizia o Vinicius. O encontro com Diamantina instaurou em Lucio uma indagação, afinal, como é possível fazer uma coisa bonita de maneira simples? Daí é que ele dá uma enorme importância a um outro encontro, logo que se casou, em 1929. Eles estavam em casa, em Correias, num período anterior à reforma da Escola, e tinha uma revista, uma revista comum, não de arquitetura, que se chamava Para Todos, e folheando essa revista ele viu a foto da casa que chamam de Casa Modernista, e que estava exposta em São Paulo, do Gregori Warchavchik. Ele percebeu, então, a partir daquela fotografia, e isso ele conta com a maior tranquilidade, ‘…engraçado, dá para ser bonita’. Quando foi chamado para dirigir a Escola de Belas Artes ele chamou o Gregori para ser professor. E foi pessoalmente a São Paulo fazer o convite, na casa da Dona Olívia Penteado.
Fábio: E ele contactou diretamente o Warchavchik em São Paulo!?
Maria Elisa: Ele foi a São Paulo para isso, para convidá-lo. Aí chamou o Portinari, chamou os outros todos para propor um curso alternativo, quer dizer, isso é uma outra coisa que eu acho de uma competência didática incrível, ele não acabou o que havia, colocou ao lado uma opção para os meninos escolherem. Bom, no Salão de 31 foi a mesma coisa, ele manteve o salão tradicional e botou ao lado o salão dos modernos, até para as pessoas perceberem a diferença, inclusive no modo de expor.
nota1
Esta entrevista se insere nos trabalhos da rede Urbanismo no Brasil, coordenada pela Professora Maria Cristina da Silva Leme, com o Banco Documental Urbanismo em Minas Gerais, em construção, com o apoio do CNPq e da FAPEMIG, junto ao Núcleo de Pesquisa e Extensão Urbanismo em Minas Gerais, no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Engenharia da UFJF. O material foi gravado, originalmente, em fita cassette e teve a finalidade de subsidiar a pesquisa desenvolvida para o doutoramento na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP – FAUUSP. Agradecemos à FAPEMIG e ao CNPq pelos apoios concedidos para o trabalho de pesquisa e a extensão universitária.