Fábio: E ele toca sempre na questão da arquitetura moderna, de ser moderno, de fazer uma arquitetura moderna e… tá presente nesse conceito de arquitetura moderna o próprio conceito de urbanismo, não é...
Maria Elisa: Eu acho que na época o urbanismo era uma coisa absolutamente indissociável da arquitetura, era multidisciplinar, mas com o comando do arquiteto. Hoje em dia não, hoje em dia já é uma coisa muito diferente, a abordagem é outra. Eu acho que nessa coisa de urbanismo, você tem que saber a situação, se você está lidando com uma cidade que existe, é uma coisa, se você está aumentando é outra coisa. O papai, em termos de cidade que existe, por exemplo, o Rio de Janeiro, ninguém sabe as muitas interferências dele nesta cidade, quando houve o Conselho Superior de Planejamento Urbano, nos anos 70. Um dos exemplos, no centro da cidade, onde tem o edifício-garagem Menezes Cortes, perto da rua São José. Ali tem um pedaço que é aberto, uma área meio triangular, que teve um projeto que não foi executado. Havia um projeto enorme para aquele local, com altos prédios, e o meu pai fazia parte desse conselho; foi ele quem impediu e ninguém sabe disso, e ele impediu porque precisava ter uma visada, ele usava muito essa palavra, um desafogo visual para que você visse o Convento de Santo Antônio lá longe; como na arquitetura, olha ali para aquele canto, ele sempre faz a arquitetura com as visadas, quer dizer, a coisa sempre vai um pouco mais longe, e usa isso para a cidade também, quer dizer, ele tem várias interferências assim; ele sempre se meteu em tudo que deu pé e sempre soube do limite, se não deu não deu, paciência, não ficar lamentando; nunca foi uma pessoa de se lamentar, nem de dizer ‘no meu tempo é que era uma maravilha’...
Fábio: Aquela coisa nostálgica com relação ao passado…
Maria Elisa: Não, uma pessoa realista, que eu uma vez defini como poeta pragmático… porque não abriu mão do vôo, mas conhecendo os limites – se tem essa chance, então dentro dessa chance eu vou até onde for possível… como no caso da ida ao Catete; não é uma coisa utópica no sentido babaca da palavra, é utópica no bom sentido da palavra, ou seja, eu quero ir além mas eu sei até onde eu posso –ele sempre soube sair, soube tirar o time em tempo…
Fábio: Então, para ele se existia uma arquitetura moderna, se ele trabalhava na direção dessa arquitetura moderna, o urbanismo não poderia ser um urbanismo modernista, seria um urbanismo moderno…
Maria Elisa: Seria moderno tudo, pois a palavra modernista para ele tinha esse ranço… a palavra modernista na época apontava para esse lado de fazer uma coisa na moda e não uma coisa porque era verdade, você entende; tem lá na exposição do Paço (Lucio Costa: 1902-2002), você vai ver, tem escrito enorme numa parede: ‘…ser moderno é, conhecendo a fundo o passado, ser atual e prospectivo’, por isso a diferença entre o ser moderno e o modernista… Eu acho que a ambiguidade vem de duas definições para a palavra modernista; em última análise, a palavra modernista hoje é usada correntemente para definir a época – arquiteto modernista você coloca imediatamente dos anos 30 aos 50, aos 60…
Fábio: Aí caimos naquele problema que você mesma citou, porque o seu pai diferenciava, não é mesmo!?
Maria Elisa: Ele diferenciava de origem e o que é curioso é isso; quando você passar lá na exposição (Lucio Costa: 1902-2002) você olha o bilhete a que eu me referi, nunca foi publicado, porque apareceu só meia hora antes da exposição; esse documento eu considero importante porque é um testemunho dele, está manuscrito a lápis, quase ilegível, é ele dizendo em 31… 30. Ali ele ressaltava a diferença que para ele havia, entre o ser moderno e o modernista. Ele diz muito no livro também (Registro de uma vivência), sobre essa coisa do modernista, especificamente em um trecho que ele diz que ‘tinha uns ares afetados de trocadilho’, ou qualquer coisa assimPara eles era perigoso confundir, pois se a intenção era divulgar, fazer as pessoas entenderem uma coisa que para eles era séria, funda e verdadeira, então quando outros se apropriavam daquela cara e começavam a propor coisas equivocadas, isso incomodava muito. Para ele era tão importante distinguir porque estava ameaçando, era como se você estivesse botando um outro canal, que não deixa você ouvir. E a generalização era muito mais fácil, porque virou moda e aí como virou moda todo mundo, gente que não tinha nada com isso, passou a defender, a projetar…
Fábio: Você pega os projetos do Murgel, ele também tem um momento que é neocolonial e eu levantei agora, recentemente, depois ele vai passar a defender uma linguagem moderna…
Maria Elisa: Modernista!!! Isto, aí está a diferença, nessa tese se você colocar o Angelo Murgel e o Lucio Costa fica claro como água, entende, fica transparente, mesmo usando os elementos, tentando compor… mas não adianta porque ele não tem a convicção; ele faz um estilo moderno, uma coisa com cara de moderno; aliás, tem uma outra frase que a gente botou na parede, que eu acho adorável, que também saiu de uma carta que eu botei nesse livro (Com a Palavra: Lucio Costa), de um artigo de jornal da época da briga com o José Mariano, no qual ele diz que, referindo-se ao edifício da Escola Normal, considerado um dos exemplos da arquitetura neo-colonial, que o mesmo ‘…é como um bicho empalhado: parece que vive, mas não vive; parece que morde, mas não morde’.