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interview ISSN 2175-6708

abstracts

português
Nesta entrevista, Maria Elisa Costa, filha de Lucio Costa (1902-1998), traz uma grande contribuição ao entendimento maior da trajetória acadêmica e profissional do arquiteto, em particular as visões de urbanismo presentes nesta trajetória

english
In this interview, Maria Elisa Costa, daughter of Lucio Costa (1902-1998), brings a great contribution to better understanding the academic and professional career of the architect, in particular the perpectives of urban planning in this path

español
En esta entrevista, María Elisa Costa, hija de Lucio Costa (1902-1998), trae una gran contribución a un mayor entendimiento de la trayectoria académica y profesional del arquitecto, en particular sobre las visiones de urbanismo presentes en esta trayecto

how to quote

LIMA, Fabio Jose Martins de. Maria Elisa Costa. Entrevista, São Paulo, ano 10, n. 037.01, Vitruvius, jan. 2009 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/10.037/3282>.


Detalhes do projeto apresentado por Lúcio Costa. Fonte: COSTA, Lúcio. Ante-projecto para a Villa de Monlevade: Memorial Descritivo
[fonte: Revista da Diretoria de Engenharia da Prefeitura do Distrito Federal, vol.3, nº3, maio de ]


Fábio:
Ainda sobre Monlevade, gostaria que você discorresse um pouco sobre a importância de Monlevade na trajetória do Lucio Costa…

Maria Elisa: O meu pai tinha um enorme carinho pelo projeto Monlevade, isso é bom anotar… porque eu acho que ele fez isso numa época em que estava sem trabalho, você entende, ele deve ter investido muito e querendo mostrar algo além da coisa da arquitetura como construção, ele estava querendo mostrar como era possível você atender às necessidades sociais com bom gosto, sabe, você usar a arte a favor da sociedade…

Fábio: Como um espaço qualificado para uma cidade operária…

Maria Elisa: Era uma coisa que não nivelava por baixo, ao contrário, ele sempre foi contra nivelar pelo terceiro subsolo, você tem que trazer para o alto. Então, esse projeto tem a singeleza, que eu acho adorável, que ele aprendeu em Diamantina; tem esse resgate de tecnologias tradicionais, com uma idéia que muitos anos depois lançaram como se fosse novidade, mas que não era, quer dizer, ele propôs primeiro a coisa do pilotis, de você usar o chão protegido da chuva como quintal coberto, de certa maneira; e acima da laje de concreto você usar o pau a pique: dá uma caprichada, bota madeira aparelhada e usa a tecnologia do pau-a-pique, que é uma coisa tradicional que permaneceu e permanece até hoje no interior inteiro do Brasil. Em qualquer lugar que você vá o pau-a-pique está lá firme e forte, não é? E aí a outra coisa que eu percebo também, é que esse projeto talvez tenha sido, isso eu não posso afirmar porque eu não tenho informação bastante, mas me parece que foi o primeiro projeto brasileiro moderno que incorporou certos ingredientes da tradição colonial, sobretudo mineira, deliberadamente; ele fala no texto, ele cita a gelosia e não sei o que mais... Ele usou todo o know how, que tinha de observador e conhecedor da coisa tradicional, para ver o que tinha ali que era válido para hoje, sabe, não é o chantily, é o leite, você entende, é uma outra maneira de ver, e isso ele guardou a vida inteira, em todos os projetos sempre tem…, você está aqui, e tem  a trelicinha aí atrás, quer dizer, essas coisas ele sempre teve uma liberdade enorme, e como Monlevade foi em 1934, acho engraçado fazer a sequência das coisas nesse período: foi o período das ‘Casas sem dono’, do conhecimento mais fundo, Gamboa é um pouco antes, foi com o Gregori, era ainda uma outra coisa. Então, dois anos depois de Monlevade veio o Ministério, e três anos depois, quer dizer, em 1937, veio o Patrimônio; é tudo muito sequenciado e aí, o Patrimônio tem uma coisa, digamos assim, simétrica com a abordagem da arquitetura propriamente dita, com a questão de Monlevade – o primeiro trabalho para o Patrimônio, foi ir a São Miguel das Missões  para ver o que fazer das ruínas. Para Lucio, a ruína tinha que ser preservada como ruína, não adianta querer reinterpretar que não vai dar certo… e tinha muitos restos de esculturas espalhados pela campina. Ele resolveu então fazer o museu, e como ele fez: recuperou o possível e completou o que precisava do módulo do aldeamento, cobriu com um telhado de quatro águas e botou uma parede de vidro dentro – é o inverso do que ele fez em Monlevade, ou seja, no Museu das Missões ele inseriu o moderno no tradicional, com uma esquadria de vidro como a do Ministério.

Fábio: Não tem uma receita de bolo para as soluções…

Maria Elisa: Exatamente, não tem uma receita de bolo, ao contrário, ele incorporou as soluções a cada momento, em função do problema que se colocava. E neste sentido, ele tinha uma grande liberdade, como quando rompeu com a coisa neo-colonial: como num jogo de labirinto, à medida que você vai andando – é como se ele tivesse se dado conta que aquele caminho que ele estava seguindo ia dar num beco sem saída, quer dizer, ele rompeu para retomar uma ligação… que é uma ligação perene, da coisa como ele costumava dizer ‘arquitetonicamente saudável’. De hoje, de ontem e de sempre, sabe como é, a ruptura foi na vida profissional dele, mas na verdade, na minha visão, foi muito mais um restabelecimento de um elo,  de um nexo entre passado, presente e futuro e isso foi possível no Brasil, inclusive não era só ele, era todo um grupo, desde o Mário de Andrade, porque a gente era um país novo que estava construindo uma identidade, ao contrário da Europa, onde o passado pesa uma tonelada, e quem conserva não é quem renova, são dois times antagônicos, e essa fusão das duas coisas é que dá uma marca, aqui e no México também eu acho, que é uma marca interessante dessa coisa de terra nova, de que a gente é país novo.

Fábio: E como você citou, uma apropriação do moderno, de uma modernidade sem um clichê, sem o querer ser modernista…

Maria Elisa: Claro, e isso é importante, essa coisa do modernista é algo que eu gosto de dizer, porque há uma tendência a achar que é uma certa frescura ele não gostar da palavra, mas não é propriamente só da palavra; se hoje a palavra modernista significa um certo arquiteto de um determinado período, na época, para ele, moderno era uma coisa que tinha uma razão de ser, verdadeira e profunda, e modernista era como se fosse a pessoa querer ter cara de moderno e não ser, quer dizer, não mergulhar, ou seja, ficar na superfície; você faz uma gracinha com cara de moderno e aí emplaca tanto quanto qualquer estilo… e isso é o que incomodava, e tinha muito. E esta distinção já era apontada no período da direção da Escola, em um bilhete, que foi apresentado na exposição (Lucio Costa: 1902-2002) sobre um concurso não sei lá das quantas, em que ele diz mais ou menos: ‘tudo bem, respeito a escolha do projeto do Wladimir Alves de Souza como vencedor, mas eu recomendo aos alunos que prestem atenção no projeto do Reidy, porque ele é o único que é mais fiel aos princípios modernos e não à visão modernista que esta direção pretende erradicar, pretende evitar’. Isso está num papelzinho de bloco que apareceu nessa montanha de papel que eu tenho aqui.  É claro que quando a coisa moderna começou a fazer sucesso, todo mundo quis ter cara de moderno; quer dizer, a palavra modernista era para separar uma coisa da outra,  porque incomodava a eles loucamente o fato das pessoas, do público, misturarem alhos com bugalhos. Neste sentido se colocavam os comentários, quando se fez o Ministério da Educação: ‘…que sorte que não dá sol na fachada sul ‘; além disso, achavam o paraíso dos cachorros, porque tinha uma porção de colunas, para cachorro fazer xixi, era uma coisa de deboche – a linguagem era muito nova... e mal compreendida.

Outra coisa inacreditável é que aquele prédio foi construído sem empreiteira, pela Secretaria de Obras do próprio Ministério. Eles eram todos muito moços, o meu pai tinha 34 anos e era o mais velho… o mais velho tinha 34 anos, e deram conta do recado por paixão exclusivamente, quer dizer, eles contaminavam com a paixão deles, passaram para o Capanema, que era mineiro, uma pessoa brilhante, sensível. Por isso que eu digo que Minas Gerais é um lugar fundamental para o Brasil; pensa bem, não é pouco em termos de Brasil... o que fez o Juscelino, sabe, é muita coisa… é uma coisa séria, …E essa história de Monlevade eu tenho certeza que meu pai  deve ter feito Monlevade acreditando que ia conseguir fazer a cabeça das pessoas,  ele fez para isso, para seduzir e ganhar… os desenhos, aquele clube com as pessoas dançando, eu tenho certeza, pelo que eu conheço da coisa, que ele deve ter feito assim…, e aí foi a primeira recusa, que o magoou, depois teve a Cidade Universitária que também foi outra recusa, que também ele fez certo de que ia conseguir...

Fábio: E se a gente considera Monlevade como o primeiro projeto que ele trabalha numa escala maior, de conjunto, o outro vai ser a Cidade Universitária e depois o Parque Guinle, não é mesmo!?

Maria Elisa: Isso mesmo, o projeto para a Cidade Universitária e depois o Parque Guinle… exatamente, são os três, que eu me lembre, e o que eu acho curioso, Monlevade foi aquela coisa inicial, bem incipiente, e se você pensar bem, a pessoa ao longo da vida vai guardando uma espécie de disco rígido das coisas, as referências… o eixo monumental de Brasília começou a nascer no projeto da Cidade Universitária. Você tem o eixo, você tem a tônica na entrada que seria em Brasília a Praça dos Três Poderes, você tem lá no fundo o hospital, que seria a torre de televisão, e as aulas que são análogas, são iguais… perpendiculares ao eixo, quer dizer, como os ministérios, ou seja, o mesmo partido de implantação. Eu comentei isso com ele e ele assumiu, eu adorei;  e o Parque Guinle obviamente é o pai das superquadras, isso é óbvio, é tão na cara que não precisa nem dizer. Mas é curioso isso, e eu acho que tudo veio a partir de Monlevade. Veja bem, o tratamento paisagístico faz parte do projeto, em Monlevade, no Parque Guinle e na Cidade Universitária. Você vê as palmeiras não sei das quantas, e em Brasília sem dúvida: em Brasília a diretriz paisagística é a do Plano Piloto, quer dizer, ele usou árvore para cercar as quadras como instrumento de projeto para você estabelecer uma relação entre a escala monumental e a escala residencial. Ele deixou aquele gramado vazio porque quis, é uma afirmação, são coisas assim que não vêm depois, sabe como, vêm depois só em trechos, quer dizer, o Roberto fez algumas quadras, fez os jardins internos do Itamarati, fez o parque, mas a concepção paisagística é do Lucio, como a volumetria toda. E isso as pessoas esquecem um pouco, quer dizer, ele começou projetando o chão, suspendeu a praça, suspendeu a esplanada... Outro dia eu estava em Brasília com uns amigos e disse, faz de conta, esvazia, faz de conta que está no nível do chão natural…, some, é impressionante; ele determinou a volumetria, baixo aqui, baixo ali, alto ali, diferente nos primeiros ministérios ...  E ele sabia, certamente, que ia contar com a arquitetura do Oscar, que é indispensável no caso, porque em cidade aberta, se é ruim é péssimo, se é bom é ótimo, não é como a cidade tradicional que absorve as bobagens…

Fábio: Uma coisa vai se encaixando na outra…

Maria Elisa: Vai, e depois fica diluído. Agora essa coisa de cidade aberta em que você tem quatro fachadas, na qual a relação entre as coisas tem uma outra linguagem, se você tem uma coisa de má arquitetura você não escapa…

Esquema da Cidade Universitária, por Lucio Costa, em 1936-37
[fonte: COSTA, Lucio. Lúcio Costa: registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1997, 1]

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