Fábio: Ainda sobre Monlevade, gostaria que você discorresse um pouco sobre a importância de Monlevade na trajetória do Lucio Costa…
Maria Elisa: O meu pai tinha um enorme carinho pelo projeto Monlevade, isso é bom anotar… porque eu acho que ele fez isso numa época em que estava sem trabalho, você entende, ele deve ter investido muito e querendo mostrar algo além da coisa da arquitetura como construção, ele estava querendo mostrar como era possível você atender às necessidades sociais com bom gosto, sabe, você usar a arte a favor da sociedade…
Fábio: Como um espaço qualificado para uma cidade operária…
Maria Elisa: Era uma coisa que não nivelava por baixo, ao contrário, ele sempre foi contra nivelar pelo terceiro subsolo, você tem que trazer para o alto. Então, esse projeto tem a singeleza, que eu acho adorável, que ele aprendeu em Diamantina; tem esse resgate de tecnologias tradicionais, com uma idéia que muitos anos depois lançaram como se fosse novidade, mas que não era, quer dizer, ele propôs primeiro a coisa do pilotis, de você usar o chão protegido da chuva como quintal coberto, de certa maneira; e acima da laje de concreto você usar o pau a pique: dá uma caprichada, bota madeira aparelhada e usa a tecnologia do pau-a-pique, que é uma coisa tradicional que permaneceu e permanece até hoje no interior inteiro do Brasil. Em qualquer lugar que você vá o pau-a-pique está lá firme e forte, não é? E aí a outra coisa que eu percebo também, é que esse projeto talvez tenha sido, isso eu não posso afirmar porque eu não tenho informação bastante, mas me parece que foi o primeiro projeto brasileiro moderno que incorporou certos ingredientes da tradição colonial, sobretudo mineira, deliberadamente; ele fala no texto, ele cita a gelosia e não sei o que mais... Ele usou todo o know how, que tinha de observador e conhecedor da coisa tradicional, para ver o que tinha ali que era válido para hoje, sabe, não é o chantily, é o leite, você entende, é uma outra maneira de ver, e isso ele guardou a vida inteira, em todos os projetos sempre tem…, você está aqui, e tem a trelicinha aí atrás, quer dizer, essas coisas ele sempre teve uma liberdade enorme, e como Monlevade foi em 1934, acho engraçado fazer a sequência das coisas nesse período: foi o período das ‘Casas sem dono’, do conhecimento mais fundo, Gamboa é um pouco antes, foi com o Gregori, era ainda uma outra coisa. Então, dois anos depois de Monlevade veio o Ministério, e três anos depois, quer dizer, em 1937, veio o Patrimônio; é tudo muito sequenciado e aí, o Patrimônio tem uma coisa, digamos assim, simétrica com a abordagem da arquitetura propriamente dita, com a questão de Monlevade – o primeiro trabalho para o Patrimônio, foi ir a São Miguel das Missões para ver o que fazer das ruínas. Para Lucio, a ruína tinha que ser preservada como ruína, não adianta querer reinterpretar que não vai dar certo… e tinha muitos restos de esculturas espalhados pela campina. Ele resolveu então fazer o museu, e como ele fez: recuperou o possível e completou o que precisava do módulo do aldeamento, cobriu com um telhado de quatro águas e botou uma parede de vidro dentro – é o inverso do que ele fez em Monlevade, ou seja, no Museu das Missões ele inseriu o moderno no tradicional, com uma esquadria de vidro como a do Ministério.
Fábio: Não tem uma receita de bolo para as soluções…
Maria Elisa: Exatamente, não tem uma receita de bolo, ao contrário, ele incorporou as soluções a cada momento, em função do problema que se colocava. E neste sentido, ele tinha uma grande liberdade, como quando rompeu com a coisa neo-colonial: como num jogo de labirinto, à medida que você vai andando – é como se ele tivesse se dado conta que aquele caminho que ele estava seguindo ia dar num beco sem saída, quer dizer, ele rompeu para retomar uma ligação… que é uma ligação perene, da coisa como ele costumava dizer ‘arquitetonicamente saudável’. De hoje, de ontem e de sempre, sabe como é, a ruptura foi na vida profissional dele, mas na verdade, na minha visão, foi muito mais um restabelecimento de um elo, de um nexo entre passado, presente e futuro e isso foi possível no Brasil, inclusive não era só ele, era todo um grupo, desde o Mário de Andrade, porque a gente era um país novo que estava construindo uma identidade, ao contrário da Europa, onde o passado pesa uma tonelada, e quem conserva não é quem renova, são dois times antagônicos, e essa fusão das duas coisas é que dá uma marca, aqui e no México também eu acho, que é uma marca interessante dessa coisa de terra nova, de que a gente é país novo.
Fábio: E como você citou, uma apropriação do moderno, de uma modernidade sem um clichê, sem o querer ser modernista…
Maria Elisa: Claro, e isso é importante, essa coisa do modernista é algo que eu gosto de dizer, porque há uma tendência a achar que é uma certa frescura ele não gostar da palavra, mas não é propriamente só da palavra; se hoje a palavra modernista significa um certo arquiteto de um determinado período, na época, para ele, moderno era uma coisa que tinha uma razão de ser, verdadeira e profunda, e modernista era como se fosse a pessoa querer ter cara de moderno e não ser, quer dizer, não mergulhar, ou seja, ficar na superfície; você faz uma gracinha com cara de moderno e aí emplaca tanto quanto qualquer estilo… e isso é o que incomodava, e tinha muito. E esta distinção já era apontada no período da direção da Escola, em um bilhete, que foi apresentado na exposição (Lucio Costa: 1902-2002) sobre um concurso não sei lá das quantas, em que ele diz mais ou menos: ‘tudo bem, respeito a escolha do projeto do Wladimir Alves de Souza como vencedor, mas eu recomendo aos alunos que prestem atenção no projeto do Reidy, porque ele é o único que é mais fiel aos princípios modernos e não à visão modernista que esta direção pretende erradicar, pretende evitar’. Isso está num papelzinho de bloco que apareceu nessa montanha de papel que eu tenho aqui. É claro que quando a coisa moderna começou a fazer sucesso, todo mundo quis ter cara de moderno; quer dizer, a palavra modernista era para separar uma coisa da outra, porque incomodava a eles loucamente o fato das pessoas, do público, misturarem alhos com bugalhos. Neste sentido se colocavam os comentários, quando se fez o Ministério da Educação: ‘…que sorte que não dá sol na fachada sul ‘; além disso, achavam o paraíso dos cachorros, porque tinha uma porção de colunas, para cachorro fazer xixi, era uma coisa de deboche – a linguagem era muito nova... e mal compreendida.
Outra coisa inacreditável é que aquele prédio foi construído sem empreiteira, pela Secretaria de Obras do próprio Ministério. Eles eram todos muito moços, o meu pai tinha 34 anos e era o mais velho… o mais velho tinha 34 anos, e deram conta do recado por paixão exclusivamente, quer dizer, eles contaminavam com a paixão deles, passaram para o Capanema, que era mineiro, uma pessoa brilhante, sensível. Por isso que eu digo que Minas Gerais é um lugar fundamental para o Brasil; pensa bem, não é pouco em termos de Brasil... o que fez o Juscelino, sabe, é muita coisa… é uma coisa séria, …E essa história de Monlevade eu tenho certeza que meu pai deve ter feito Monlevade acreditando que ia conseguir fazer a cabeça das pessoas, ele fez para isso, para seduzir e ganhar… os desenhos, aquele clube com as pessoas dançando, eu tenho certeza, pelo que eu conheço da coisa, que ele deve ter feito assim…, e aí foi a primeira recusa, que o magoou, depois teve a Cidade Universitária que também foi outra recusa, que também ele fez certo de que ia conseguir...
Fábio: E se a gente considera Monlevade como o primeiro projeto que ele trabalha numa escala maior, de conjunto, o outro vai ser a Cidade Universitária e depois o Parque Guinle, não é mesmo!?
Maria Elisa: Isso mesmo, o projeto para a Cidade Universitária e depois o Parque Guinle… exatamente, são os três, que eu me lembre, e o que eu acho curioso, Monlevade foi aquela coisa inicial, bem incipiente, e se você pensar bem, a pessoa ao longo da vida vai guardando uma espécie de disco rígido das coisas, as referências… o eixo monumental de Brasília começou a nascer no projeto da Cidade Universitária. Você tem o eixo, você tem a tônica na entrada que seria em Brasília a Praça dos Três Poderes, você tem lá no fundo o hospital, que seria a torre de televisão, e as aulas que são análogas, são iguais… perpendiculares ao eixo, quer dizer, como os ministérios, ou seja, o mesmo partido de implantação. Eu comentei isso com ele e ele assumiu, eu adorei; e o Parque Guinle obviamente é o pai das superquadras, isso é óbvio, é tão na cara que não precisa nem dizer. Mas é curioso isso, e eu acho que tudo veio a partir de Monlevade. Veja bem, o tratamento paisagístico faz parte do projeto, em Monlevade, no Parque Guinle e na Cidade Universitária. Você vê as palmeiras não sei das quantas, e em Brasília sem dúvida: em Brasília a diretriz paisagística é a do Plano Piloto, quer dizer, ele usou árvore para cercar as quadras como instrumento de projeto para você estabelecer uma relação entre a escala monumental e a escala residencial. Ele deixou aquele gramado vazio porque quis, é uma afirmação, são coisas assim que não vêm depois, sabe como, vêm depois só em trechos, quer dizer, o Roberto fez algumas quadras, fez os jardins internos do Itamarati, fez o parque, mas a concepção paisagística é do Lucio, como a volumetria toda. E isso as pessoas esquecem um pouco, quer dizer, ele começou projetando o chão, suspendeu a praça, suspendeu a esplanada... Outro dia eu estava em Brasília com uns amigos e disse, faz de conta, esvazia, faz de conta que está no nível do chão natural…, some, é impressionante; ele determinou a volumetria, baixo aqui, baixo ali, alto ali, diferente nos primeiros ministérios ... E ele sabia, certamente, que ia contar com a arquitetura do Oscar, que é indispensável no caso, porque em cidade aberta, se é ruim é péssimo, se é bom é ótimo, não é como a cidade tradicional que absorve as bobagens…
Fábio: Uma coisa vai se encaixando na outra…
Maria Elisa: Vai, e depois fica diluído. Agora essa coisa de cidade aberta em que você tem quatro fachadas, na qual a relação entre as coisas tem uma outra linguagem, se você tem uma coisa de má arquitetura você não escapa…