Giuliano Pelaio: Chegou-se ao absurdo em que a sustentabilidade é vista pela sociedade, por grande parte dos arquitetos e principalmente pelo mercado como uma medalha, um certificado estampado na parede do edifício. A que e a quem podemos atribuir essa tremenda inversão de significados?
Luís de Garrido: Infelizmente é assim. A base do problema é que até o momento não se definiu com precisão o que deve ser entendido como arquitetura ecológica, nem quais devem ser suas características concretas.
Por um lado os interesses econômicos e políticos estão levando a arquitetura para uma direção errada, promovendo o uso de artefatos supostamente ecológicos, que eliminam o caráter ecológico da arquitetura e a encarece. Por outro lado, os profissionais estão dando ao conceito de arquitetura ecológica um componente subjetivo que não deveria ter (há um conceito de arquitetura sustentável para cada arquiteto no planeta). Essa combinação de interesse e ignorância deixou o caminho aberto para um feito insólito e sem precedentes: a aparição de certificados supostamente ecológicos e de selos supostamente ecológicos (que se aplicam aos edifícios projetados e construídos a posteriori) que encarecem muito mais a arquitetura, recobrindo-a de artefatos, e distanciando-se ainda mais do foco principal.
O maior perigo para a arquitetura sustentável do Brasil são precisamente os certificados. O uso dos certificados não somente deixam de promover a arquitetura sustentável como também a distanciam do caminho correto para sua futura evolução.
Não há outra solução. Os arquitetos devem tomar a liderança da sustentabilidade, e apostar na formação de diversas disciplinas ecológicas e, claro, executando um bom projeto arquitetônico. Somente um bom projeto racional e honesto proporcionará uma verdadeira arquitetura sustentável, sem necessidade de artefatos, selos, nem manipulação midiática. Neste sentido, a nível internacional há muitos arquitetos capazes e sensíveis que se dispuseram a encarar este desafio profissional e pessoal de criar uma boa arquitetura ecológica. A análise de suas obras é o que proporcionará à sociedade as bases do que deve ser entendido como uma verdadeira arquitetura ecológica. Alguns projetos são mais completos e acertados que outros, mas sem dúvida, o conjunto proporciona o verdadeiro caminho a seguir por todos os arquitetos do planeta.
GP: Por que continuam atuando deste modo se existem todos os meios para fazer um edifício realmente sustentável? Qual é o problema, se é que ele existe?
LG:Uma construtora deseja fazer um edifício modelo, sabendo que custará o mesmo dinheiro que outro edifício. Pode contar com os arquitetos adequados, possui informações precisas e decide não realizar nada disso, e continua fazendo o mesmo de sempre, mas pretende vendê-lo como “sustentável”, e “respeituoso com o meio ambiente”, simplesmente negociando e comprando um selo sustentável (eu gostaria de lembrar que esses selos são comprados e não são baratos).
GP: O que estimula os promotores a fazer esse tipo de trabalho?
LG: Fazer o que sempre fizeram e manipular o cidadão, ao invés de fazer alguma coisa melhor, pelo mesmo preço.
Eu refleti muito sobre este tema e a conclusão que eu cheguei se baseia em dois fenômenos: um social e outro econômico.
1. O social é o mais perigoso e se baseia na própria natureza humana. Descobriu-se que ao longo da evolução humana, qualquer mutação genética favorável ao ser humano, foi sempre seguida, quase de imediato, por um descoberta científica importante (por exemplo a descoberta do fogo, da roda,…). Em troca, pode-se esperar gerações inteiras até que a nova descoberta seja aceita pela sociedade. A inércia cultural é enorme e talvez inclusive seja um mecanismo evolutivo que proteja o homem, mas ao mesmo tempo o deixa imponente perante a evolução.
2. O econômico é mais simples, e muito mais fácil de corrigir. Quando o homem de negócios descobre uma forma de fazer dinheiro, deseja seguir explorando-a de forma indefinida, sem limite. Criam uma primeira etapa de inovação e continuam com a de exploração. Definem que devem continuar inovando, mas quanto menos melhor. Se puderem fazer a mesma coisa durante toda a vida ganhando mais dinheiro, melhor.
É por isso que se escreveu o livro “Quem mexeu no meu queijo”, justamente para informar aos empresários que o queijo deveria ser reconquistado sempre, com uma dedicação permanente. Isso acontece em muitas empresas. Mas o caso da construção não é igual.
O processo construtivo é praticamente um monopólio, e por isso podem se dar ao luxo de não inovar. Deste modo, todos os empreendedores fazem o mesmo, com o mesmo modelo de negócio, já que o cliente não tem opção de escolha.
Desse modo se consolidou um processo de estagnação, que sente verdadeiro pânico em relação às mudanças e à necessidade de inovação, ainda mais quando sua sobrevivência está em jogo. Por isso, apesar de ter tudo em mãos e estabelecer um novo curso (como o rato inteligente), ficam se lamentando na gaiola sem queijo, reclamando e tentando manipular todos aqueles que os rodeiam, para continuar comendo sem muito esforço.
Esses dois fenômenos deixam muito desamparados tanto o cidadão como o meio ambiente.
GP: Pode nos esclarecer porque os certificados sustentáveis não têm nenhuma utilidade e além disso constituem um perigo para a arquitetura sustentável?
LG: Fico muito contente que você me faça essa pergunta, já que os maiores perigos atuais para o desenvolvimento e implantação de uma autêntica, honesta e verdadeira arquitetura sustentável são precisamente esses certificados sustentáveis. O uso dos certificados não geram arquitetura sustentável, e inclusive a distanciam do correto caminho para sua futura evolução.
Esse tipo de certificado supostamente sustentável não possui nenhuma utilidade. A sustentabilidade é uma questão basicamente de decisões gerais de projeto arquitetônico: o bom uso da orientação da planta (sul no hemisfério norte e norte no hemisfério sul), extensão longitudinal leste-oeste, tipologia com pátio central, trocadores arquitetônicos de calor, espaços verticais de comunicação, chaminés arquitetônicas de extração de ar quente, disposição da maior parte dos vidros à melhor orientação (sul no hemisfério norte e norte no hemisfério sul), não colocar vidros nas elevações oeste e leste se não forem estritamente necessários, fachadas ventiladas, sistemas naturais de ventilação etc., ou seja, praticamente 90% de uma autêntica arquitetura sustentável é alcançada somente com decisões arquitetônicas, ou seja, consiste no rearranjo dos espaços e objetos arquitetônicos habituais e já existentes e na tomada de decisões coerente, sem custo adicional. Os outros 10% envolvem detalhes construtivos, tecnologias e materiais especiais.
Os supostos certificados sustentáveis praticamente não levam em consideração o projeto arquitetônico (responsável por 90% do nível de sustentabilidade de um edifício) e se concentram em questões relativas a sistemas de reaproveitamento de água, sistemas alternativos de energia, vidros especiais, sistemas de controle, sistemas de gestão do edifício, ou seja, nos aspectos menos importantes da sustentabilidade de um edifício (os 10% restantes).
O que os supostos certificados sustentáveis pretendem qualificar é uma fração mínima do nível de sustentabilidade de um edifício, que além disso é justamente aquilo que os encarecem.
Definitivamente, por trás desses supostos certificados sustentáveis, o que existe é simplesmente uma dissimulação da venda de tecnologias e materiais especiais que não servem para nada.
Vou dar um exemplo:
Durante o processo de certificado energético, os certificadores podem aconselhar que se coloque um vidro muito especial, que reduza o aquecimento do edifício. Este conselho aumentaria, segundo eles, o nível de sustentabilidade do edifício, ao economizar no consumo de energia do ar condicionado. Contudo, na realidade isso é uma estupidez, porque o arquiteto poderia ter projetado as fachadas do seu edifício com vãos menores e melhor orientação, que garantissem as vistas e o nível de iluminação desejados, sem que fosse necessário incluir vidros especiais e que, além disso, faria com que o edifício fosse mais barato. Definitivamente, os certificados sustentáveis simplesmente estimulam o encarecimento dos edifícios e a utilização de materiais e tecnologias caras, que nem sequer seriam necessárias se o edifício fosse bem projetado.
A arquitetura sustentável, assim como qualquer outra faceta do desenvolvimento sustentável, é algo completamente local. Portanto, usar programas informáticos e uma concepção da arquitetura realizada em Washington ou Londres, e pretender aplicá-los a qualquer lugar do planeta é uma soberana vilania.
As “Green-Building-easy-business”, são empresas privadas com sede de lucro, que farão o possível para lucrar, deixando de lado a autenticidade do que fazem, especialmente porque sua atividade não está regulada por lei. Não tem responsabilidade civil, nem penal. Definitivamente um campo de cultivo perfeito para tirar dinheiro de idiotas.
Com o objetivo de ganhar dinheiro, as “Green-Building-easy-business”, não hesitam em colocar em qualquer edifício, por pior que seja, o adjetivo “golden”, ou “platinum”, sempre que seja feito o pagamento correspondente. Talvez necessitem de um conjunto de justificativas para poder esconder a farsa, mas seu trabalho estará sempre sob suspeita.
Para mim, essas avaliações somente teriam validade se o organismo avaliador fosse estatal ou privado, e estivesse regulamentado por lei, sendo gratuito, ou quase gratuito. Ou seja, que não se ganhasse dinheiro com isso e fosse feito por um funcionário público.
Suponho que pelo fato de serem dirigidos a um público ignorante, mas com ânsias de notoriedade, os rótulos resultantes da avaliação destas certificações supostamente sustentáveis, são histriônicas e infantis; “plus”, “golden”, “platinum”...
E se edifícios muito ruins possuem esta qualificação (a maioria), não posso evitar de pensar na qualificação que deveriam ter os edifícios realizados por qualquer um dos meus alunos (por comparação). Portanto os edifícios dos meus alunos deveriam ter a qualificação de “criptonitum plus plus plus”.
E os edifícios realizados por bons profissionais deveriam ser qualificados como “Supernova criptonitum super plus”. E os edifícios realizados pelos arquitetos de maior nível (Ken Yeang, Jonathan Hines, Hansen and Petersen...) deveriam ser qualificados como “Big Bang criptonitum mais plus plus”,.... Enfim, completamente ridículo.
Resumindo, penso sinceramente, por todas as minhas considerações e por muitas outras razões, que esses certificados supostamente sustentáveis não servem para nada, e que só existem devido à ignorância e à passividade da sociedade e dos arquitetos.
O projeto sustentável deveria ser ensinado em todas as faculdades de Arquitetura do mundo, e assim os edifícios seriam muito bons, muito mais baratos e não se gastaria o dinheiro em certificados que não servem para nada.
GP: Como ficam as questões estéticas e formalistas quando pensamos em um projeto bioclimático?
LG: Muitos arquitetos projetam o que têm vontade, e depois colocam quatro coisinhas para justificar um melhor comportamento ambiental do seu edifício.
Parece ridículo. Eu fico envergonhado. O verdadeiro projeto arquitetônico é holístico. Não pode ser de outro modo.
GP: Qual é a cidade que melhor entendeu a convivência entre arquitetura e natureza? Por quê?
LG: Para mim, neste sentido já existem duas cidades modelos: Seattle e Reikjavik (e por extensão, toda a Islândia), e somente uma cidade sendo projetada: Masdar City.
Seattle é um exemplo de como uma cidade norte-americana soube se compactar, se culturalizar e se autocontrolar na direção do meio ambiente, social e culturamente correto (e ainda mais porque ao estar nos Estados Unidos seu nível inicial era muito baixo). Pelo que eu sei é a primeira cidade que começou a utilizar indicadores sustentáveis para canalizar seu desenvolvimento sustentável.
Reikjavik é uma cidade de uma nação pobre, localizada em uma ilha isolada e extremamente fria, com poucos recursos. Apesar disso soube aproveitar a energia geotérmica e o mar para conseguir uma autosuficiência energética limpa, e um desenvolvimento sustentável.
Masdar City é uma cidade que atualmente está sendo construída, impulsionada pelo Emirado Árabe mais rico de todos: Abu Dhabi. Esse emirado soube esperar, aprender e não cometer os mesmos erros que seu irmão pobre Dubai, com todas as catástrofes sociais, humanas, econômicas e ambientais que foram cometidas. Ao invés de fazer babaquices arquitetônicas chamativas e caóticas, Abu Dhabi estruturou seu desenvolvimento em três pilares: a cultura (através de uma hierarquia que gira em torno a 5 grandes museus), a sociedade (fazendo uma cidade para que funcione como tal, e não uma nova “Disney Dubai World”), e a sustentabilidade (fazendo assentamentos auto-suficientes em água, energia e alimentos). Este é o caso da nova cidade de Masdar City.