Adalberto da Silva Retto Jr: Em seu último livro, sobre Berlim e Barcelona, ambas as cidades emergem como duas "imagens estratégicas" para a compreensão das transformações urbanas ocorridas nas últimas décadas do século 20. Nas capitais em consideração, como em outras, experimentou-se nos anos de 1980 novas modalidades de intervenção pública, com variadas formas de colaboração entre administradores e entes privados. Um confronto, entre as mesmas, evidencia peculiaridades no “governo das transformações”: a lógica do processo e os tipos de atores da transformação. A Sra. pode precisar alguns destes pontos comuns ou diferenças, nos casos específicos analisados no livro? Acrescento a pergunta: são “as ocasiões” (grandes eventos, apud Indovina, citado em vários momentos pela Sra.), que determinam as mudanças das e nas cidades? Ou as oportunidades de partes da cidade, que definem como e onde deve ser mudado? Como isto se deu nestas duas cidades?
Otilia Arantes: Na verdade, o que há de certo é que ambas as cidades saíram de décadas de opressão, quando as transformações que analisei ocorreram, e o objetivo destas, tanto numa como na outra, foi, em grande parte, restaurar a autoestima de seus habitantes, que lhes seria devolvida pela superfície refletora dos Grandes Projetos, mesmo que às custas de um redesenho sócio-econômico de efeitos bastante contraditórios. São tais contradições que tento trazer à tona no livro que você menciona, e que se devem sobretudo a uma lógica semelhante de empresariamento das cidades ou de adoção de uma estratégia que visava a transformação de ambas em cidades globais, em atrair grandes investimentos da iniciativa privada, em especial no sentido de transformar sua imagem numa “marca” competitiva em plano internacional, inclusive fazendo da cultura – grandes eventos ou equipamentos culturais, mas também a própria arquitetura a ser exibida – um fator essencial para ativar suas respectivas “máquinas de crescimento”, nas quais o turismo seria igualmente um dos motores importantes. Para tanto Barcelona adotava, já no período pré-olímpico, o Planejamento Estratégico (em 1989 – casualmente no mesmo ano da Queda do Muro); em Berlim, de seu lado, mesmo que não houvesse um tal Plano (ao menos no sentido estrito em que vinha sendo empregado pelos urbanistas), no entanto a fórmula adotada era muito semelhante: não faltava nenhum dos ingredientes do Planejamento Estratégico, ou daquele modo de “fazer cidade”. É claro que na escala gigantesca de uma capital com ambições bem mais do que européias: “megaprojetos emblemáticos; urbanismo acintosamente corporativo, nenhuma marca global ausente; gentrificações se alastrando por todo o canto; exibicionismo arquitetônico em grande estilo; parques museográficos; salas de espetáculos agrupadas em complexos multiservice de aparato – e muita, muita ‘animação cultural’ disponível para 24 horas de consumo” (como já havia escrito num ensaio anterior). Evidentemente as Grandes Obras são distintas no caso de uma Olimpíada ou de uma cidade reunificada após anos murada e semeada por vazios deixados pela Guerra, enquanto na primeira, as áreas degradadas se deviam em grande parte ao processo de desindustrialização e, consequentemente, desativação parcial da área portuária, lembrando que Barcelona é uma cidade marítima e a urbanização da orla não é evidentemente da mesma natureza de um Mitte deteriorado pela cisão que o inviabilizava. Em contrapartida, ambas convergiam na necessidade de preservar os assim chamados valores culturais e o patrimônio arquitetônico, e ao mesmo tempo, fazê-los conviver com o novo. Ou seja, com uma arquitetura que rompesse com padrões e gabaritos pré-fixados – no caso de Barcelona, ao menos no início, com menos “ousadia” e em grande parte com projetos de arquitetos catalães, já Berlim estreou com mais de 300 escritórios em ação, especialmente de estrangeiros, e com uma arquitetura “de ponta” – o primeiro e mais chamativo exemplo foi justamente Potsdamer Platz, que analiso. Ambas as cidades, no entanto, proclamando uma mistura arquitetônica e social que, no entanto, cedeu lugar aos interesses rentistas e onde a especulação imobiliária, desde o início, foi determinante em relação ao redesenho sócio-espacial, gerando igualmente, nas duas, processos de nítida gentrificação. Portanto, diferenças à parte, especialmente o fato único de uma cidade candidata à capital, depois de anos de isolamento, tanto em Barcelona, quanto em Berlim, as grandes empresas e os grandes negócios parece-me terem dominado a cena, sendo utilizadas também, de forma muito explícita, nas duas cidades, iscas culturais, do patrimônio preservado ou restaurado, como acabei de mencionar, aos novos equipamentos culturais.
Passo então ao seu segundo ponto: se as mudanças são consequência das ocasiões – ou seja, produzidas pelos grandes eventos – ou ao contrário, é o potencial de partes destas cidades que determinam as mudanças. Creio que ocorrem as duas coisas e, em muitos casos, são até interdependentes, ou seja: buscam-se pretextos (ocasiões), para se “desenvolver”, nas cidades-sedes, mudanças (nas suas configurações urbanas ou sociais) em pontos estratégicos – em geral áreas ou degradadas fisicamente ou extremamente pobres (características no mais das vezes coincidentes), e, portanto, propícias às famigeradas “requalificações”.