Adalberto da Silva Retto Jr: Três fenômenos de grande amplitude, intimamente ligados, marcaram a afirmação e expansão da sociedade industrial, do século 19 ao início do século 20: a proliferação de museus, as exposições universais e os congressos internacionais. É plausível, portanto, fazer uma comparação com os acontecimentos atuais incluindo a área do urbanismo, apesar de uma clara diferença na escala e problemática das intervenções. Quais são as permanências e rupturas mais evidentes nesse paralelo?
Otilia Arantes: Talvez possamos dizer que estava de um certo modo tudo lá, desde o início, pois tais iniciativas, no campo da cultura, do entretenimento e do turismo, estão ligados, como você mesmo lembra, à expansão da sociedade industrial e acompanham suas diferentes etapas, tanto quanto a concomitante formação de uma sociedade de mercado.
Como se pode comprovar, no que concerne o primeiro caso de proliferação citado por você: os museus. Se a arte não é uma mercadoria, ela é entretanto algo que se pode expor no mercado e ser avaliada em função da demanda, como qualquer mercadoria. E não é por acaso que o aparecimento dos primeiros museus públicos no século 18 – o British Museum (1754) e o Louvre, como Museu da República (1793), deu-se simultaneamente ao das primeiras casas de leilão na Inglaterra e dos Salões de Arte na França. É quando começa a ascensão de uma burguesia que não só passa a ter acesso à cultura, como se constitui numa classe que a reivindica como proprietária, que a vê portanto como um bem de consumo, dando origem aos ditos collectors ou amateurs, sem esquecer dos “intermediários culturais” avant la lettre, os críticos de arte (um exemplo clássico são os “Salões” de Diderot, seguido, no século 19, por Baudelaire e uma sucessão de salonniers). Dito isso, não se pode desconhecer o fato de que a expansão dos museus pela Europa (e posteriormente pelos Estados Unidos) se deve também a um genuíno impulso político “democratizante”, oriundo da Revolução Francesa. Ao que logo se acrescentou, no entanto, associado ao empenho de afirmação cultural local, um concomitante gesto imperial de exibir como um triunfo cultural os despojos da acelerada expansão colonial subsequente. O conjunto embalado no mesmo pacote de celebração da Grande Arte. Mais para o último quarto de século (19), surgem os primeiros grandes marchands – não custa mencionar o mais conhecido de todos, Durand Ruel, responsável pela valorização dos Impressionistas, abarrotando com suas telas os museus e as coleções americanas. Igualmente, e não menos decisivos, os “curadores”. Uns e outros tiveram um papel importante na definição dos parâmetros da história moderna da arte, lembro, a título de exemplo, Alois Riegl, curador de tapeçarias no Museu de Viena que forjou o polêmico conceito de Kunstwollen, ou “vontade das formas” de um determinado período histórico, atribuindo portanto, a mesma importância, por assim dizer, aos objetos considerados artísticos quanto àqueles da vida quotidiana, desconsiderados de um ponto vista pretensamente estético. Mas fui me afastando do foco de sua pergunta. Na verdade – voltando e reforçando meu argumento – a relação arte-mercado tem muito a ver com os museus, são eles os grandes “avalistas”, eles é que fazem ou desfazem reputações. Há mais de dois séculos que a nossa relação com as obras de arte é indiscutivelmente “filtrada” pelos museus. Não por acaso as vanguardas, no início do século 20, como acontecerá novamente com as neo-vanguardas dos anos 60, vão sistematicamente questionar a Instituição Museu, rompendo, por vezes ruidosamente, com os padrões estéticos estabelecidos. Embora boa parte delas, mesmo em suas manifestações mais irreverentes, acabem sendo recuperadas pelos museus, como mais um “botim”, e, portanto, igualmente incluídas no rol das mostras oficiais e das obras cotados em bolsa.
Já os Novos Museus, ditos Pós-Modernos (dando um salto no tempo), se transformaram numa das manifestações mais visíveis da lógica cultural capitalista em regime de acumulação flexível - cenários de uma vida pública inexistente porém alimentando uma sorte de estilo (altamente “produzido” aliás) estético-hedonista de consumo da vida ideológica e material nestes últimos trinta anos. “Estética pós-moderna que celebra a diferença, a efemeridade, o espetáculo, a moda e a mercantilização de todas as formas culturais” (David Harvey) – lugar privilegiado de convívio das diferenças, segundo pretendem autores os mais díspares. Na verdade, um processo de mão dupla, em que à desestetização crescente da arte corresponde uma estetização da vida, sendo a nova “cultura dos museus”, como bem constatou Christa Bürger, uma das expressões mais enfáticas desse processo de estetização. Ao contrário dos Museus Modernos, ainda projetados com intenções didáticas, ou mesmo, já nos 1970 (como o Beaubourg), vindo responder em parte às demandas pós maio de 1968 por democratização da cultura, a partir dos anos 1980, os museus optarão claramente por represar e desviar esse didatismo em favor de uma atitude crescentemente hedonista, a seu ver, requerida pela sociedade de consumo. Estetização aliás presente, em primeiro lugar, onde é mais escancaradamente visível, na própria arquitetura dos museus, arquitetura que cada vez mais se apresenta como um valor em si mesmo, como uma obra de arte, como algo a ser apreciado como tal e não apenas como uma construção destinada a abrigar obras de arte.
Em consequência, reina atualmente uma grande animação no domínio tradicionalmente austero e introvertido dos museus. Entramos neles como num show-room de variedades com cenários espetaculares, sem falar nas demais atrações: atualmente, quem visita os museus dispõe de amplos espaços para a mais desenvolta flânerie, abrigando jardins, passarelas, terraços e janelas que trazem a cidade para dentro do museu – ao mesmo tempo ponto de vista privilegiado sobre o mundo exterior e vida pública em circuito fechado, que conta também com cafeterias, restaurantes, ao lado de ateliês, salas de projeção ou de concertos, livrarias etc. As longas filas que se formam à entrada dessas novas “casas de cultura” nem sempre se devem ao antigo amor à arte, concentrada no acervo do museu, mas a essas múltiplas atrações. Sem contar o sucesso de marketing das Grandes Exposições itinerantes. Portanto: de abrigo das obras a cenários de atividades mundanas – até o mundo fashion invadindo os próprios museus: eventos oficiais, grandes Mostras, desfiles de moda, bailes de máscara, etc. –, é a própria arquitetura que se altera, transformando-se num atrativo a mais, senão o principal. Como já se disse à exaustão: não é mais tão óbvia a diferença entre museus, antes vistos como templos da cultura (as catedrais do século 20, como ainda as designava André Malraux, há meio século atrás) e shopping-centers. Como declara aliás, sem meias palavras James Stirling – o arquiteto responsável pelas ampliações da Neue Staatsgalerie de Stuttgart e da antiga Tate Gallery de Londres: se os museus são hoje em dia lugares de recreação, e as exposições apresentam uma inegável dimensão mercantil, por que tanto escrúpulo, por que economizar no projeto os elementos que podem evocar centros comerciais?
Não por acaso, os Estados nacionais do capitalismo central, mobilizaram o atual star system da arquitetura internacional, no intuito de criar grandes monumentos que sirvam ao mesmo tempo como suporte e lugar de criação da cultura e reanimação da vida pública. Enquanto vão atendendo às demandas de bens não materiais nas sociedades afluentes também vão disseminando imagens mais persuasivas do que convincentes de uma identidade cultural e política, e política porque cultural, da nação ou das cidades, utilizando-os por isto mesmo como “imagens de marca” a atrair atenções e investimentos. Alguns governos, acossados pela crise e pela voga neoliberal, não temeram em ao mesmo tempo restringir o orçamento do sistema previdenciário e investir no campo do culturel em expansão (de retorno seguro e rápido), fundindo publicidade e animação cultural. É o que tem feito deles, como já dissemos aqui, peças importantes da engrenagem das máquinas de crescimento, como passaram a ser vistas as cidades, servindo de isca para os grandes negócios imobiliários, nos processos ditos de “requalificação” urbana. O exemplo extremo foi sem dúvida o Guggenheim de Bilbao.
Passando para as Grandes Exposições Internacionais: elas mais ou menos reproduzem o mesmo movimento, pelo menos desde a Grande Exposição de 1851, em Londres – que vai se transformar no modelo por excelência das exposições subsequentes –, tendo como tema central a Indústria. Associada, evidentemente, às demais manifestações culturais, dos países centrais aí representados e de seus Impérios (no Palácio de Cristal havia, por exemplo, uma Indian Court, que expunha dos chás às sedas da Índia). A França, inicia 4 anos depois uma série de exposições adotando o mesmo modelo, mas acrescido de um tempero local: a afirmação dos valores republicanos, especialmente na relação capital-trabalho (talvez tenham razão os autores que vêem nestes eventos antes de tudo uma forma extremamente sofisticada de controle social). Impossível aqui detalhar todas elas e seus conteúdos, nem eu teria meios de fazê-lo. A verdade, no entanto, é que tais exposições, que passam a se multiplicar, tem uma função primordialmente econômica explícita (à diferença dos museus), embora sem dúvida também política, não só de afirmação dos valores (e do poderio!) locais frente aos demais países, mas internamente também, ao lançarem mão de todo tipo de atrações e de entretenimento (da arte aos esportes, que logo vão passar a ter os seus eventos exclusivos, especialmente, no caso destes últimos, as Olimpíadas – volto a elas logo adiante) para reforçar o sentimento de nacionalidade. Esses traços nacionalistas vão se acentuar no entre guerras, num primeiro momento, associados ao esforço de reconstrução dos países atingidos pela Primeira Grande Guerra, logo a seguir, como afirmação autoritária e xenófoba dos países totalitários, com a ascensão do nazi-fascismo, ou mesmo do stalinismo (a Exposição Internacional de Paris de 1937, em pleno Trocadero, terá, ladeando o Palais de Chaillot, construído no lugar do antigo Palais du Trocadero expressamente para o evento, e face a face enquadrando a Tour Eiffel – resquício, como se sabe, da grande Exposição de 1889, centenário da Revolução – os dois pavilhões monumentais: o pavilhão nazista, projetado por Albert Speer, encimado por uma “vistosa” águia alemã, e, em frente, o da URSS, com uma escultura, não menos monumental, de dois trabalhadores do campo, empunhando uma foice).
Depois da Segunda Guerra Mundial tais exposições mudam a forma, sem perder evidentemente a dimensão política, mas se voltando cada vez mais para o mercado, em geral elegendo “temas” ligados aos avanços da ciência e da tecnologia de produção, ainda povoadas de pavilhões de diferentes países, mas agora numa competição interna, seja quanto às especificidades e virtualidades locais, seja na demonstração de maior competência nas áreas-tema – da tecnologia de ponta aos usos da natureza, meio ambiente e sustentabilidade (que aliás vem sendo a tônica, ao menos desde Lisboa 1998, sobre Os Oceanos, ou Hannover 2000, Humanidade, natureza e tecnologia - origem de um novo mundo; e, mais recentemente, Xangai 2010, Better city, better life) –, ao mesmo tempo que pretendem estar propiciando, às cidades-sedes “ocasionais” (para voltarmos ao início desta entrevista), a possibilidade de entrarem no circuito das “cidades à venda”. Mais um ingrediente portanto nas estratégias de desenvolvimento urbano.
Não saberia o que dizer dos Congressos, embora, em parte, associados a esses mesmos eventos a que nos referimos. Sabemos que existem todos os tipos de Congresso, e que aqueles que nos dizem respeito mais de perto, ou seja, os acadêmicos, também sofreram a mesma inflexão mercantil, expressa aliás na contabilidade dos currículos... Mas paro por aí.