Adalberto da Silva Retto Jr: O interesse particular nas intervenções urbanas realizadas em Berlim, nas últimas duas décadas do século XX, além dos resultados particulares obtidos, fundou-se, parece-me, na investigação teórico-disciplinar, que coloca dentro da discussão o problema da forma como uma questão de arquitetura, e da memória histórica, como instrumento para sua definição. A questão central do debate arquitetônico torna-se, assim, o tema da memória como ferramenta de projeto: entre nostalgia do passado e homenagem ao moderno, entre continuidade e renovação e da pesquisa das raízes históricas à ambiciosa busca por uma “Nova Berlim”. Nesse cenário, quais são as diferenças das transformações, findadas em Barcelona e Berlim, quanto a este quesito particular?
Otilia Arantes: Comecemos pelo exemplo de Berlim, visto que é nele que você se detém. Em primeiro lugar, temos que recuar um pouco no tempo. Se no pós-guerra a reconstrução de Berlim se deu a toque de caixa e sob a ação dos bulldozers, que mais destruíram do que na própria guerra, e por empreiteiros estimulados pelos incentivos estatais, sem nenhuma preocupação arquitetônica muito menos de preservação ou restauração, embora tenham restado alguns nichos de construções mais antigas (como Kreuzberg, no lado ocidental, e vários outros no lado oriental), várias iniciativas posteriores procuraram corrigir esta imagem de uma Berlim tão feia quanto cinzenta, trazendo uma arquitetura mais up to date e digna deste nome, como a criação do bairro Hansa na Interbau de 1957, do qual participaram arquitetos do mundo inteiro (entre eles, o nosso Oscar Niemeyer), ou a construção de algo como um centro de high culture, que passaria a ser um símbolo da Berlim ocidental: a Galeria Nacional, projetada por Mies Van der Rohe, compondo com o conjunto, formado pela Sala da Filarmônica e a Biblioteca – obra de outro alemão, Hans Sharoun –, algo assim como um Mix-Event-Mall (todas, iniciativas dos anos 60). Novamente um surto de renovação vai ocorrer com a Interbau (IBA) de 1987, que trouxe, desde o final dos anos 1970, inúmeros arquitetos de projeção internacional (já em plena voga pós-moderna: Vittorio Gregotti, Aldo Rossi, Hans Hollein, Léon Krier, Peter Eisenman, Carlo Aymonino, Paolo Portoghese, Rem Koolhaas e vários outros) para projetar edifícios, especialmente residenciais, em vazios mais ou menos centrais da cidade. Mas, ao mesmo tempo, seguindo as novas palavras de ordem preservacionistas e contextualistas, e cedendo a pressões sociais e políticas, visto que a cidade se dualizava de uma maneira muito evidente (e aqui estou me referindo obviamente à Berlim ocidental, objeto das iniciativas do IBA), fez parte deste grande projeto de aggiornamento berlinense a restauração de uma bairro caído no esquecimento, totalmente deteriorado, squaterizado por parte de imigrantes, artistas e estudantes, Kreuzberg. Esta grande recuperação step by step, com interiorização dos quarteirões, disponibilizando serviços para os que aí habitariam, eventualmente reconstruindo partes demolidas, seja com a participação dos moradores, muitos deles artistas, seja de arquitetos convidados, mas que se submetiam ao entorno e discutiam com usuários, que formaram um conselho local, transformou-se num modelo para muitas outras cidades, mas especialmente para a recuperação do resto de Berlim após a queda do muro. Talvez menos democrática, semelhante apenas na forma, é o que se pode ver hoje: uma postura bastante preservacionista, como no velho Mitte, por exemplo Hakesche Höfe, ou no bairro de Prenzlauerberg, e noutros mais (os efeitos gentrificadores são inegáveis, apesar da propalada mistura social daí decorrente, mas não vou discuti-los aqui). Ao mesmo tempo, após a unificação, com vistas a voltar a ser a capital da Alemanha, muitíssimas novas construções foram realizadas, como já mencionei, mais de 300 grandes escritórios de arquitetura aí se instalaram, só que agora, à diferença do IBA, para realizar grandes projetos, como Potsdamer Platz (Renzo Piano, Richard Rogers, Helmut Jahn, Hans Kollhoff, Rafael Moneo etc.), Grandes Magazines, como a Galeria Lafayette (Jean Nouvel), restauração de prédios monumentais (por vezes com intervenção também de arquitetos do star system, como Norman Foster no Bundestag), museus antigos e novos, e assim por diante. Enfim, toda uma arquitetura vistosa que desse a Berlim a imagem e correspondente status de capital e, quem sabe, de mais uma World City, possivelmente de uma capital cultural da Europa.
A história de Barcelona é de outra ordem, embora uma grande empreitada de recuperação urbana tenha se iniciado quase contemporaneamente, após o fim da ditadura, coincidindo também com um processo muito rápido de desindustrialização, com enormes áreas degradadas ou esvaziadas. Era necessário transformar a velha Manchester européia num grande centro de “serviços”, com especial enfoque no turismo. Iniciou-se com intervenções pretensamente “modestas” e dentro do espírito que comandou a restauração de Kreuzberg, mas, “alavancada” pelas Olimpíadas de 1992, logo áreas inteiras foram reconstruídas, de forma já não tão modesta...: reurbanização da orla, com uma progressiva privatização da mesma, grandes hotéis, a Vila Olímpica (embora projetada por catalães, de arquitetura diferenciada), museus (com destaque para o MACBA de Richard Meyer em pleno bairro antigo do Raval), teatros, e assim por diante. Se a área urbana desenhada por Idelfonso Cerdá e as amostras de arquitetura “modernista” (Gaudí acima de tudo) ficaram quase intactas, o mesmo não ocorreu com os bairros antigos e com as áreas mais populares, de velhas fábricas e residências de operários, como Poble Nou (onde foi construída a Vila Olímpica e, mais recentemente o distrito 22@, um cluster que se pretende de alta tecnologia, na verdade povoado de torres no estilo mais up to date dos grandes centros empresariais). Embora abrigasse o maior conjunto urbano medieval até então preservado e muitas destas edificações fossem mantidas e restauradas neste período de reconstrução pós-Franco, muitas foram destruídas para dar lugar a Ramblas, praças, Centros Culturais, Universidade etc. Tais intervenções representaram por vezes interferências de grande porte, com a alegação de “humanizar” áreas extremamente adensadas. Onde não havia lugar para o convívio, criaram-se “respiradores” à custa de eliminação de moradias, muitas vezes de quarteirões inteiros e isto num crescendo, como ocorrerá alguns anos mais tarde com a abertura da Rambla no coração do Raval, com seus 18.300 m2, resultante da demolição de 62 edifícios, sem contar os outros 50, contíguos à Rambla, demolidos para dar origem a um plateau que deve reunir um hotel 4 estrelas, projeto de Per Puig (já concluído), associado a um conjunto múltiplo, de habitação, comércio, garagens subterrâneas e, como não poderia deixar de ser, uma instalação cultural, a Filmoteca Nacional – região que até hoje está provocando deslocamentos ou troca de populações e atividades, num redesenho físico e social da região. É verdade que o festival de arquitetura do star system, seguindo o modelo das Cyties mundo afora, se deu especialmente a partir do final do século passado, mas sem a monumentalidade dos prédios que compõem a capital alemã. Se há diferenças na busca das raízes históricas, entre Barcelona e Berlim, ou mesmo na pretensão desta última de ser um grande centro mundial carregado de tradições (por vezes sombrias, diga-se de passagem), não esqueçamos que, guardadas as proporções, a Catalunha também procura afirmar sua identidade diante do mundo e a salvo do domínio espanhol!