Jorge Pessoa: Você citou o professor Anhaia Mello, pelo que eu sei, você me corrija se eu estiver errado, o Anhaia Melo era um mentor intelectual desse pessoal do planejamento da Cogep, ele teve uma briga histórica com o Prestes Maia. O Anhaia Melo queria uma cidade de densidades mais baixas.
Benjamin Adiron Ribeiro: Ele queria uma cidade mais horizontal.
JP: E eu não sei se você compartilhava dessa idéia do Anhaia Melo, de cidade de baixas densidades baseada no automóvel, ou seja, ela era mais espraiada. A pergunta que faço: como que você enxerga esse adensamento provocado pela aplicação da fórmula? Porque a aplicação da fórmula proporcionou um adensamento.
BAR: Primeiro o Anhaia Melo. Ele foi um pioneiro, tinha uma noção bastante boa do que fosse planejamento urbano. Ainda não tão completa como se tem hoje, mas, em todo caso, uma idéia muito mais completa do que o Prestes Maia tinha do que fosse planejamento urbano. Prestes Maia era conhecido como urbanista mas ele era mais um viarista. O Anhaia Melo tinha horizontes mais largos e foi, de fato, o mentor do planejamento urbano durante muitos anos. Não da Cogep, porque naquela época ele já estava afastado. Eu não tive um convívio, a não ser muito limitado, com Anhaia Melo no começo da minha carreira, quando eu não era pessoa importante no Departamento de Urbanismo, era um engenheiro padrão zero... Tive um pequeníssimo contato com ele. Mas gostava, admirava muito o professor Anhaia Melo, ele foi pioneiro em questão de divulgar o conceito mais completo de planejamento urbano. Quando eu comecei de fato a ter uma atuação maior, que foi com a Cogep, ele já estava afastado. Ele não teve influência na Cogep, nem no GEP anterior. No PUB, ele já estava velhinho; era muito respeitado, mas não tinha mais uma atuação. Eu diria que a atuação dele foi até o final da década de 50. No tempo da pesquisa do Lebret, ele ainda tinha uma atuação bastante razoável. Bom, agora essa questão de adensamento, deixe eu lhe contar... Posso, posso fazer uma viagem em volta do assunto, que não tenha nada a ver com isto?
JP: Claro.
BAR: Um dos meus maiores amigos em termos profissionais, e em termos de amizade pessoal, foi o arquiteto Oswaldo Bratke. Não sei se você conheceu pessoalmente o Oswaldo Bratke?
JP: Pessoalmente não.
BAR: Um homem excelente. Primeiro um grande arquiteto. Sem sombra de dúvida, um dos grandes arquitetos que nós tivemos no país.
JP: Com certeza.
BAR: Segundo, uma pessoa extremamente estimável. Eu e Bratke fomos amigos fraternos durante mais de 40 anos, e discutimos muito em torno de todos os aspectos pertinentes ao desenvolvimento urbano, à estrutura urbana. Eu não discutia arquitetura porque não tinha altura suficiente para discutir esse assunto com ele, não dava, ele era muito superior. Mas discutia planejamento urbano, porque nessa área ele me considerava um especialista, e então era ele quem me pedia opiniões e mesmo orientação para alguns trabalhos que ele chegou a fazer, e que envolviam planejamento urbano. Aí ele nunca deixava de me chamar e de me pedir esclarecimentos. Durante 40 anos, no mínimo uma vez por mês, e às vezes até mais, eu ia almoçar com Bratke na chácara que ele tinha em Itapecerica da Serra. Por sinal uma linda chácara onde ele reunia, nos finais de semana, os amigos para bater papo e para almoçar. Ele e a esposa já estavam ficando velhinhos; esta era, então, a forma que ele achava de reunir pessoas de quem gostava, para conversar e oferecer a eles um almoço – alguns no sábado, outros no domingo. Você conheceu o Ernesto Bofill?
JP: Não.
BAR: Bofill, arquiteto, trabalhou muitos anos com Bratke, depois teve o escritório próprio dele. Era um chileno que fugiu da ditadura do Pinochet e veio para o Brasil. Era grande amigo do Bratke, trabalhou no escritório dele durante muitos anos. Esse ia almoçar na chácara sábado e domingo! Era solteirão, estava sempre lá. Bofill era conviva obrigatório. E eu ia no mínimo uma vez por mês almoçar com ele, ou sábado ou domingo. Então isso me permitia conversar bastante com ele e com outros arquitetos e outros companheiros, nem sempre arquitetos. Às vezes eram artistas, ricaços e até banqueiros, todos amigos de Bratke, pois ele trabalhava para gente rica... O único defeito que eu via no Bratke, como arquiteto, sempre foi esse: só trabalhou para gente rica, a vida inteira, ganhou dinheiro por causa disso, tornou-se um homem rico. Não só por causa disso: ele acertou, em determinado projeto que fez, de receber parte dos honorários na forma de terrenos... Ele projetou o bairro do Morumbi para Ademar de Barros e recebeu, como parte do pagamento, uma enorme área; e com isso enriqueceu, pois o local valorizou muito. Valorizou mesmo! Mas Bratke tinha um conceito de desenvolvimento urbano, de utopia urbana, que era diferente do meu. Para ele a cidade tinha de ser “o retorno ao campo”. Portanto a cidade tinha que ter essa característica de baixa densidade.
JP: Cidade jardim?
BAR: Cidade jardim. E nos projetos que fez, um deles famoso, a Vila Serra do Navio... não sei se você já ouviu falar?
JP: Sim.
BAR: A Vila Serra do Navio tinha essa característica, era uma cidade horizontalíssima, tudo térreo, baixíssima densidade. Este era o conceito de Oswaldo Bratke. Atendendo a pedidos dele – ele foi muito insistente – eu escrevi um livro sobre a Vila Serra do Navio. Ele queria que seu trabalho da Serra do Navio fosse analisado por um especialista, que ressaltasse as qualidades e até os defeitos daquele projeto urbanístico. Era um projeto urbanístico, não só arquitetônico. E, por insistência dele, eu acabei escrevendo o livro sobre a Vila Serra do Navio, no qual introduzi algumas criticas; não muitas, pois o projeto era de fato muito bom. O livro foi editado pela editora Pini, que tinha um arquiteto especializado em fazer programação gráfica de livros; e, por causa disso, tinha que ler. Um dia o cara = não lembro mais o nome dele – mas um dia ele me procurou e disse: “Escuta, você é amigo ou inimigo do Bratke?”. Digo: “Somos amigos”. “Não, porque tem algumas coisas que você está dizendo aqui... Você está sentando o pau no projeto dele, você não pode fazer isso!” Eu digo: “Posso! Posso e ele até gostou e me agradeceu, pois era isso que ele queria, uma pessoa honesta examinando o projeto que ele fez. Portanto, não sou inimigo do Bratke, sou amigo dele!”
Bom, então o conceito urbanístico de Bratke era de retorno ao campo, de cidade jardim. Mais tarde, alguns anos depois desse livro da Serra do Navio, ele me propôs escrevermos juntos, ele, Bofill e eu, um segundo livro. Seria um livro sobre outros projetos que ele tinha feito, mas que não chegaram a ser executados. Em alguns desses projetos, eu próprio tivera pequena participação. Ele queria que tais projetos fossem apresentados aos estudiosos do assunto, estudantes de arquitetura principalmente, interessados em planejamento urbano; para que tivessem mais material para estudar esses conceitos de planejamento urbano. Eram projetos que envolviam muita conceituação de planejamento.
Um desses projetos foi contratado com uma grande empresa mineradora, MBR (Minerações Brasileiras Reunidas), na vizinhança de Belo Horizonte. A MBR tinha uma área muito grande naquela região; em parte dos terrenos extraía minério de ferro, e creio que continua extraindo até hoje. Mas grande parte da área não ia ser usada para mineração, pois não apresentava características geológicas adequadas. Então a MBR, que gostava muito do trabalho de Bratke, que já tinha encomendado dele o projeto da Vila Serra do Navio – pediu que ele fizesse um estudo preliminar de aproveitamento daquela área. Isso foi no final da década de 50, e o local era próximo a Belo Horizonte.
Bratke começou a fazer o estudo, e pediu minha colaboração. Bofill também se juntou a nós, e mais algumas pessoas, um grupo, uma equipe; que trabalhou naquele projeto durante bastante tempo. Toda a orientação de Bratke era nesse sentido: cidade de baixíssima densidade. Ele propôs a criação de uma cidade satélite junto a Belo Horizonte. Padrão muito alto, com essa característica de horizontalidade, de baixa densidade. Na época eu discuti muito com ele sobre isso. Então, muitos anos depois, nesse livro que estávamos escrevendo juntos, decidimos incluir aquele projeto. Seriam incluídos também vários outros projetos que ele desenvolveu. Um deles, trabalho muito interessante no litoral do Rio de Janeiro, era um projeto muito bonito; o cara era um arquiteto espetacular! Nós três nos reuníamos na casa dele, no bairro do Morumbí; ele tinha ali um escritório, lugar gostoso, onde trabalhava ainda, apesar de já estar velhinho. Eu e Bofill íamos lá passar algumas horas, toda semana, preparando o tal livro.
A gente discutia, usava esse sistema de gravar nossas reuniões. Depois eu pegava as gravações e ia traduzindo aquilo em texto escrito. O último capítulo seria isto: utopia! Como vai ser a cidade do futuro? Em última análise, o que todo urbanista está preocupado é saber como vai ser a cidade do futuro. Eu propus a ele que nós desenvolvêssemos três propostas de cidade do futuro, três: uma seria a proposta dele, Bratke; outra, a proposta de Bofill, excelente arquiteto – já faleceu, infelizmente; e outra seria minha proposta de cidade do futuro. Seriam três modelos oferecidos aos estudiosos, que poderiam comparar vantagens e desvantagens de três propostas diferentes.
A proposta de Bratke era, evidentemente, o retorno ao campo, cidade horizontal com muito espaço; e, como consequência, um sistema viário extenso. O defeito da baixa densidade é que força a ampliação do sistema viário. Muito bonito em termos de utopia, mas talvez não corresponda às características sociais das comunidades do futuro. A meu ver, a organização físico-territorial de um aglomerado urbano deve traduzir as características de organização social da comunidade que mora nele.
Bofill desenvolveu uma proposta intermediária. Misturava áreas de densidade alta, média e baixa. Ele era chileno, mas eu diria que era também meio mineiro, não gostava de ir muito contra um, nem muito contra o outro; ficava em posição intermediária.
Como já tínhamos dois modelos de cidade ideal para o futuro – a proposta de Bratke, baixa densidade, e a proposta de Bofill, média densidade, restou para mim defender um modelo de alta densidade. O que fiz com prazer, pois correspondia à minha visão do futuro: uma sociedade de organização marcadamente comunitária, mais propensa a atividades em comum do que ao individualismo. Individualismo é o que caracteriza as propostas urbanas de baixa densidade.
Olhando para o futuro, creio que estamos caminhando muito mais para o desenvolvimento de atividades em comum do que para o individualismo. Em consequência, por exemplo, desse espírito comunitário – se de fato a sociedade evoluir para isso – o transporte na cidade do futuro não será mais individual, isso vai acabar, será sempre coletivo. Considerando a organização do espaço físico, a hipotética cidade comunitária do futuro concentrará suas atividades dentro de estruturas gigantescas. Para a cidade utópica de alta densidade, minha proposta na ocasião envolvia a construção de edifícios com um quilômetro de altura, com mil metros de altura.
JP: Em que época é essa?
BAR: Que estávamos preparando o tal livro? Isto foi agora, recentemente, Bratke tinha 85 anos, então isso faz dez anos, ou quase dez anos. Se a pergunta é sobre o futuro, é coisa para alguns séculos, ou mesmo uns poucos milênios. Quanto à minha posição efetiva sobre a cidade ideal para se viver, é coisa bem diferente. Também sou individualista, para morar prefiro o modelo de baixa densidade. Mas também sou urbanista, e não posso descartar uma evolução humana em direção à vida em comum. Essa evolução é que condicionaria cidades de alta densidade. E, como modelo, sugeri então a cidade-edifício, com um quilômetro de altura. Cada estrutura seria uma cidade. Uma cidade completa, dentro de uma única estrutura; onde você tem tudo, com transporte principalmente vertical, e secundariamente horizontal. Você tem tudo: trabalho, lazer, comércio, indústria, serviços, todas as atividades concentradas. Claro que o problema básico será de energia. Solar, sem dúvida. Há também o problema de salubridade – a ser resolvido nos projetos arquitetônicos. De circulação: a ser resolvido nos projetos urbanísticos.
Qual será a consequência, em termos de organização do espaço regional? A consequência é esta: você vai concentrar as atividades em edifícios-torre, e deixar o resto como área verde. Ao invés de ter isto aqui, as grandes cidades de hoje, cheias de vias, com um pouquinho de área verde no meio – vai ter quilômetros de áreas verdes, e as atividades urbanas concentradas nas torres. Você sai da torre, cai no campo: que significa agricultura e lazer. Esta era minha proposta extrema. Eu debati muito com Bratke, ele não aceitava esse modelo de jeito nenhum. Ele disse: “Não, não é isso”. Todos os projetos de arquitetura dele tinham a característica de horizontalidade. No fim nós terminamos o livro, o livro estava prontinho, mas ele não queria que eu incluísse minha proposta, ele não aceitava. Ele estava com 89 anos, 90 anos, mas ainda era muito briguento. Ele diz: “Não, Adiron, me faz esse favor em especial, tire essa sua proposta do livro”... E Bofill estava com ele. Eu digo: “Não é caso para isso, caro Bratke. Trata-se apenas de um modelo teórico. O que posso eu fazer é o seguinte: saio do livro e vocês dois publicam o restante. Eu saio do livro, pura e simplesmente. Não que eu gostaria de morar em semelhante torre: eu também prefiro morar no campo, da mesma forma que você, num lugar assim gostoso, eu também sou individualista. Mas a sociedade do futuro não vai ser individualista, estou convencido disso. Como urbanista, a visão que eu tenho da sociedade do futuro não é a de uma sociedade individualista, mas comunitária. Então, eu tenho que ser coerente com a visão que eu tenho do futuro, esta vai ser a cidade do futuro: 100 de espaço verde e 1 de área ocupada, é isto”. E não publicamos o livro, hein? Mas não foi por isso não. No fim ele já velhinho, já muito mal de saúde... Ele estava de fato muito mal de saúde. Nós contratamos a editora Pini, que preparou a edição toda, estava prontinho o livro para entrar no prelo... Aí o Bratke morreu. E os filhos dele, que sabiam que ele queria mudar isso aqui... Os filhos dele se recusaram a prosseguir; não foi por minha culpa que não publicamos. Os filhos de Bratke, Carlos e Roberto, que sabiam que Oswaldo tinha objeções a publicar esta minha proposta no livro, eles decidiram não publicar. Eles mandaram me dizer, pelo Bofill: “Pode publicar em seu nome, o livro todo”. Eu respondi, pelo Bofill: “Não faço isso de jeito nenhum, esqueçam o assunto”. Então foi esquecido o assunto. Não sei o que Pini fez com os originais...
JP: Quem sabe um dia ainda, não é?
BAR: E é um bonito livro, viu? É um livro bonito, inclusive a parte dos projetos do Bratke não conhecidos... Bonitos, lindos os projetos, mas não foi publicado, infelizmente.