Antônio Agenor Barbosa — E você foi buscando, vamos dizer assim, garantir o seu espaço a partir dessa inserção na área do restauro, certo? Agora, essa prática do restauro, ela era reconhecida pela sociedade ou você também teve que mostrar, pela qualidade do seu trabalho, a importância disso?
Jô Vasconcellos — Não era reconhecida infelizmente.
AAB — Isso é um ponto interessante que eu queria saber. Como é que a sociedade vê esse trabalho na área de restauro?
JV — Olha, foi o projeto da praça da Liberdade que mudou esta percepção. Porque quando eu comecei a fazer a praça fiquei dando muitas entrevistas para a televisão. Nós fechamos a praça na raça com a feira lá dentro, entendeu? Porque nós já tínhamos arrumado um novo lugar para a feira, que mudou para a avenida Afonso Pena, onde está até hoje. Eram quatro mil barracas, dez mil pessoas por dia! Não tinha mais praça, não tinha mais nada. Era assim um amontoado de lixo, gordura, as plantas morrendo lá, as palmeiras ficaram horríveis, tive que replantar várias palmeiras. Mas aí eu botei a boca no trombone, você entendeu? Eu fui para a televisão, fui até ameaçada de morte. Aí fizemos Arqueologia Urbana para conhecer melhor o traçado original. Foi a primeira vez que foi feita pesquisa arqueológica em Belo Horizonte, contratei arqueólogo para escavar a praça, porque eu não conseguia encontrar aqui o projeto original. Em lugar nenhum, não tinha no Iepha, não tinha no Iphan. Encontramos em São Paulo, tivemos que procurar a família Dieberger, que foi o paisagista Reginaldo Dieberger que fez a praça em 1920. E eles tinham, por incrível que pareça, uma cópia do projeto da praça. Então, eu tinha que saber o que estava ali embaixo da praça. Foi quando eu comecei a fazer estudos arqueológicos. Alguns jornais caíram em cima de mim, dizendo que eu estava fazendo buraco, gastando dinheiro público, fazendo buracos na praça. Nem era dinheiro público, porque quem estava financiando a obra, o mecenas, era a Construtora Andrade Gutierrez. Então tivemos a ideia de tirar os feirantes da praça da Liberdade e colocá-los na Afonso Pena, como está até hoje. Roberto Martins e eu, uma pessoa maravilhosa, que era meu gerente e me apoiava. E depois ele me chamou para fazer o Circuito Cultural, pois nós dois afinamos juntos. Roberto Martins é um historiador importante, tem vários livros e teses. Ele era político, filiado ao PSDB naquela época.
AAB — Quem era o prefeito de BH nessa época?
JV — Eu acho que era o Eduardo Azeredo e logo depois veio o Patrus Ananias. É, porque foi assim entre 1990 e 1991. Inaugurou dia 12 de dezembro de 1991 no aniversário da cidade. Como era uma obra financiada pela Andrade Gutierrez, eu ia para a televisão e falava: “Não tem dinheiro público nenhum aqui nessa obra, eu estou precisando escavar a praça para conhecer o projeto original, eu preciso achar”. Eu só dizia assim. Segurei uma barra pesada naquela época. Mas, por outro lado, apesar das dificuldades que enfrentei isso me fez ficar muito conhecida na cidade [risos].
AAB — E como que o Éolo via isso? Você foi ameaçada de morte. E o Éolo, como é que ficou?
JV — O Éolo não ligava não. Ele achava que era lorota. Dizia: “Esse povo é doido, ameaça de morte à toa”. Eu também não fiquei grilada não, porque os feirantes ficaram enfurecidos. Imagina se um feirante maluco ia me matar lá na porta da Emissora de Televisão? Coisa de mineiro. Mineiro é metido a brabo, mas não é. Fiquei na linha de frente dessa confusão e no Circuito Cultural até os arquitetos ficaram contra mim, entendeu? O Instituto de Arquitetos do Brasil — IAB principalmente.
AAB — Os arquitetos ficaram contra você, o IAB principalmente, por quê?
JV — Porque eles eram da linha tradicionalíssima da Restauração, você entendeu? É o restauro pelo restauro. Eu acho que não estudaram nada, não entenderam nada sobre isso. E claro, eu fiz na praça da Liberdade, eu fiz um restauro, restauro de fato a imagem original da praça. Eu consegui retirar ruas do lado, porque numa época dos anos 1970, eles cortaram 8 metros de cada lado da praça para passar carro, todo mundo queria ter um carrão do ano. Então, cortaram a praça. E depois quando chegava lá na frente a rua estreitava como um funil. Olha que pensamento idiota, burro, dos políticos, dos prefeitos achando que abrir as ruas laterais da praça ia melhorar o trânsito. Conseguimos recuperar 8 metros de cada lado. Eu briguei muito por isso. A praça da Liberdade voltou ao perímetro original. Eu fui para BH Trânsito brigar. Então assim, quando eu entro, eu entro com vontade. Ou então eu não quero entrar; prefiro não entrar [risos].
AAB — Isso é bem interessante, porque você está falando da sua inserção nesse campo do restauro. Esse projeto da praça da Liberdade é um divisor de águas na sua carreira?
JV — É para mim com certeza. E quando a pessoa se torna conhecida, ela passa a ser mais criticada do que um desconhecido que ninguém sabe quem é. Mas, na verdade, depois do projeto eu fiquei bem porque recuperei o espaço perdido para a população, para a sociedade, a praça voltou a ser frequentada pelas crianças, pelas pessoas, porque antigamente não tinha jeito.
AAB — E o que está lá hoje ainda é muito próximo do que você projetou?
JV — Mais ou menos. Porque houve um restauro no governo do PT, do governador Pimentel, não me chamaram. Ele fez um restauro meio maquiagem na praça Liberdade. Chamou até um arquiteto que trabalhou para mim na pesquisa histórica da praça. E esse arquiteto não me comunicou que estava fazendo esse projeto. Quando eu vi, a praça estava em obra. Podaram as árvores que não podem ser podadas daquela forma, tiraram os móveis que eu desenhei, fiz o mobiliário urbano, eu desenhei tudo. Desenhei do poste aos bancos, até as lixeiras. Tiraram os bancos e agora estão colocando lixeira de plástico lá. Então o meu projeto durou até 2015. O Flávio Grillo me ajudou muito nesse projeto, eu dei o crédito para ele como colaborador, porque ele me ajudou muito também, ele era nosso estagiário na época. Hoje ele é um ótimo restaurador. Ao final até ganhei prêmio do IAB, aqueles prêmios anuais do IAB, aquele prêmio chamado Gentileza Urbana.
AAB — Mas provavelmente era um júri que não era composto por aquelas pessoas que criticavam o seu projeto dentro do IAB?
JV — Não, eu quero esclarecer que o IAB não criticou o meu primeiro projeto de restauro. O IAB criticou a minha atuação no Circuito Cultural da praça da Liberdade, que foi muito depois, quase vinte anos depois. Quando eu instalei os museus nos prédios que ficaram vazios, porque a cidade administrativa foi para os prédios do Oscar Niemeyer lá na Pampulha. Essa ideia não era minha. A ideia, você sabe de quem que é? Foi do Francelino Pereira. Do Governador Francelino Pereira. Quando BH fez cem anos, ele fez um livrinho horroroso, mas a proposta de transformar no futuro a praça da Liberdade em um Centro Cultural já estava lá. Esse projeto, ele deu de presente esse livrinho para Belo Horizonte. Ficou guardado e quando Aécio Neves veio para o Governo do Estado resgatou a ideia. Porque a irmã do Aécio é casada com um filho do Francelino Pereira. Mas você já viu como é que a política mineira é? O negócio aqui é foda. Aí o Aécio pegou a ideia do Francelino Pereira, que era sogro da irmã dele, e falou: “Olha, vou botar essa proposta em funcionamento”, até porque já estavam mudando para a nova Cidade Administrativa, as Secretarias já estavam vazias. Só o prédio onde hoje está o Centro Cultural Banco do Brasil que ainda estava funcionando como Secretaria, e tivemos que tirar na raça aquele povo também que não queria sair. Belo Horizonte é dividida em regionais centro-sul. O Roberto Martins era gerente da Regional Centro-Sul. E quando ele foi gerente me convidou para fazer a restauração da praça. Quando ele foi convidado pelo Aécio Neves, para ser gerente do Circuito Cultural, me chamou para trabalhar com ele, temos muita afinação no trabalho. Então, por questões legais e contratuais, eu me tornei “empreendedora pública” [risos]. Tinham vários outros “empreendedores públicos”, o Governador Anastasia criou o Escritório De Prioridades Estratégicas no governo dele. Ele chamou cerca de setenta pessoas da iniciativa privada que se sobressaiam nas suas empresas para abrir as portas dos projetos prioritários do governo dele. Então, eu abri as portas, eu fiz o Circuito Cultural, mas não era ideia minha. A secretária de Cultura Eleonora Santa Rosa que implantou, eu que direcionei os critérios de restauro, de intervenção, dei assistência às obras, fiz projetos. Juntas convidamos os arquitetos para a elaboração dos projetos. Então, fiz isso tudo como “empreendedora pública”. Depois, quando isso vai terminando, ficou muito burocrático, porque eu também tive de lidar com a burocracia do Estado nessa ocasião. Tive que aprovar os terrenos, os projetos. A praça da Liberdade era uma terra vã, não pertencia a ninguém, nem ao próprio Estado. Eu tive que regularizar o terreno de todas as Secretarias, todos os imóveis eu regularizei com levantamento, contratei equipes etc. Durante o Governo do Anastasia que eu fiz isso, porque ele me deu carta branca, branca total.
AAB — E você se viu nessa condição de empreendedora pública?
JV — É como empreendedora pública. Nós éramos aproximadamente setenta, tinha desde professora primária, que era uma professora que se sobressaia em alguma escola, até o geólogo, você entendeu? Porque cada um era de uma área, um do Aeroporto, outro era para Estradas, outro era para Arquitetura, entendeu? E eu era da Arquitetura. Então, eu tive carta branca total.
AAB — Ali na praça da Liberdade tem um prédio importante do Oscar Niemeyer. Tem também o icônico Rainha da Sucata, certo?
JV — O edifício Niemeyer, bem lembrado. Tem um projeto do Éolo e do Sylvio de Podestá, que ajudei a detalhar, que é a Rainha da Sucata. Eu não participei da parte criativa dele. Eu estava com muitos projetos, viajando muito nessa época. Eu fazia muitas agências de banco e por isso eu viajava demais. Então, foi projeto do Éolo e do Sylvio, eu só detalhei. Eu que detalhei os banheiros, desenhei os azulejo dos banheiros, desenhei muita coisa.
AAB — A Rainha da Sucata, até onde eu entendo e já estudei a obra de vocês, ele é um edifício emblemático assim do que depois veio a se chamar o “pós-modernismo” mineiro.
JV — É, pós-modernismo. É o rótulo que ficou.
AAB — Você estava me falando que a praça da Liberdade é esse lugar que era terra vã e muito arraigada na tradição de Belo Horizonte. Tem o Palácio, as Secretarias todas ali e um prédio que, de alguma forma, rompe com essa tradição.
JV — Eu trabalhei lá na Rainha da Sucata na época do Circuito Cultural. Ali era o meu escritório [risos]. Lá estava vazio, O Roberto já estava trabalhando lá e montei a equipe do Circuito Cultural lá. Montamos uma equipe grande lá dentro, e fiquei trabalhando seis anos na Rainha da Sucata. Restaurei a Rainha da Sucata. Doei de presente o projeto, porque estava em péssimas condições, doei de presente ao Iepha, conseguimos o financiamento e restauramos a Rainha da Sucata antes de eu sair. Eu só saí depois que restaurei a Rainha da Sucata. Procurei o Sylvio que não se interessou, porque eu falei: “Olha, Sylvio, se você quiser, eu te contrato” [risos]. E ele disse: “Não, não quero mais mexer com isso”. Então, eu fiz sozinha lá com a minha equipe de desenhistas e estagiários. Aprovei no Iepha e toquei a obra de restauro. Agora, a minha relação com a praça e a Rainha é interessante, porque, pensa bem, o Éolo fez a Rainha, eu restaurei uma praça que foi meu avô espanhol que cuidava dela. Olha só que interessante, ele cuidava do jardim da praça da Liberdade e dos jardins do Palácio da Liberdade, que ainda é do estilo inglês. A praça da Liberdade já foi transformada, ela mudou do estilo inglês para o estilo francês em 1920 com o projeto do Dieberger. Então, meu avô que tomava conta da praça, o Éolo fez a Rainha da Sucata, eu restaurei a praça, e eu instalei o Circuito Cultural e fiz o prédio vizinho da Rainha da Sucata, que é o Planetário. Então, eu tenho ali uma ligação que eu acho que deve ser espiritual, transcendental [risos].
AAB — É quase impossível desconectar a importância da praça da Liberdade com a sua própria carreira de arquiteta e a experiência da sua família e da sua relação com o Éolo, certo?
JV — É, e a dele também. Porque o Éolo ficou assim famosíssimo por causa da Rainha da Sucata. Ali não tem o meio termo, ou você ama ou odeia você não fica em cima do muro como todo mineiro ficava. Eu adoro o Rainha da Sucata, acho aquele prédio de uma alegria! Então assim, ele mexeu com as pessoas demais.
AAB — E você gosta do apelido?
JV — Gosto. Agora eu prefiro Rainha da Sucata a sei lá como chama o nome oficial. Acho que Centro Turístico Tancredo Neves [risos]. E Rainha da Sucata é muito mais divertido. Eu adoro. Ah, eu acho uma delícia, porque você faz a sociedade se sentir incluída e refletida naquele negócio. Eu acho que a pessoa quando dá apelido é porque ela gosta, ela tem afeto por aquilo. Então, Rainha da Sucata pode até ser jocoso, mas pode ser também por afeto, né?