Antônio Agenor Barbosa — Ótima a sua resposta, eu gostei muito dessa sua narrativa sobre a questão das obras. Outra questão que me inquieta, acho que a gente não falou ainda, eu queria saber qual a influência do barroco na sua produção? Se é que há influência. E como você entende o barroco, como que você entende a atualização do barroco vamos chamar “mineiro”, como a gente conhece, e como isso se insere na sua visão de mundo e não apenas na sua perspectiva como arquiteta.
Jô Vasconcellos — Entendi. Antônio. Eu não sabia muito no início que eu tinha uma influência barroca, não. Custei a perceber isso. Porque a gente vai tocando a vida e depois que você vai refletir sobre o que fez. Eu faço muito, depois eu vou refletir. É claro, eu faço e eu vou refletir antes no conceito do projeto. Mas depois da obra pronta, eu gosto de analisar um pouco mais o resultado final, sabe? Então, eu acho que descobri uma coisa que foi bem recente, porque a minha parte barroca não está em plantas, não está em fachadas. A influência do barroco na minha obra, na verdade, é que eu gosto de brincar muito com a luz e a sombra. Todo projeto que eu faço, eu me preocupo muito com a luz e a sombra, com o recorte que o objeto vai ter ao fundo na relação com o céu. Essa brincadeira assim, eu gosto mais de olhar o recorte e o volume do que olhar apenas uma fachada em si. E esse recorte, eu acho que é a parte que eu gosto, da luz, eu gosto de brincar com a sombra. Fiz com a Joana Magalhães o concurso do Museu de Congonhas e trabalhamos com o barroco nesse lance de luz e sombra, que o barroco para mim é o jogo de luz e sombra, sombra do volume e do vazio. Então eu descobri depois que os meus projetos têm uma coisa de brincadeira com o recorte da silhueta no céu, da luz entrando enviesada, da luz entrando direta, as sensações que essa luz natural cria dentro do ambiente.
AAB — Excelente resposta e a partir daí me abre também para pensar o seguinte: você também fez muitos projetos, alguns que foram executados ainda em parceria com o Éolo e outros que você já me narrou, posteriores, só de sua autoria. Foram algumas capelas e edificações religiosas, vamos dizer assim. Como é o lugar dessa religiosidade para você? Eu queria que você me contasse um pouco como é que é essa experiência de ter feito igrejas, capelas e a partir desse horizonte do barroco que você menciona e da sua visão de mundo pessoal, da sua religiosidade, e com essas mediações com a igreja também. Colocando a igreja agora no jogo das mediações.
JV — Sim. Na verdade, eu não sou muito religiosa. Claro, eu fui criada na educação católica, eu já te falei que a minha mãe era espírita, mas sou batizada, sou crismada, aquelas coisas de miscelânea brasileira. Todas as religiões, sincretismo. É o próprio sincretismo, né? É, eu não frequento igreja, eu não frequento nada, mas eu gosto desses projetos porque eles me dão a possibilidade de criar sensações nas pessoas pelo espaço, pela luz, pelos símbolos. Porque assim, não é a coisa do santo, da imagem, é o que aquilo simboliza para as pessoas. Então, se eu puder valorizar algum símbolo que é adorado e idolatrado eu valorizo. Se eu puder realmente iluminar ou valorizar um símbolo que é da igreja ou se for de um centro espírita ou o que for, não importa, eu procuro valorizar, porque eu sei que vai trazer para as pessoas ali uma reflexão maior sobre a sua religiosidade, sobre a sua fé, sua crença, que pode não ser a minha. Então amplia a possibilidade de você explorar mais os sentimentos das pessoas, mais do que um prédio comercial, por exemplo. Muito mais. Porque eles geram ali uma quantidade de sensações, uma quantidade de conhecimentos que, às vezes, você não vê muito por aí. Poder ver se aquilo ali funciona, se não funciona. Então, esses ambientes, eu gosto de trabalhar nisso. Eu gosto muito. E as capelas que eu faço, sempre foram capelas, não são igrejas, nunca fiz igrejas, catedrais. Mas elas são projetadas com muita sensibilidade para que as pessoas sintam muitas sensações lá dentro.
AAB — E tem o caso do projeto da Capela de Santana de Gogô, que foi uma capela roubada. Tem o caso do projeto do Memorial ou Capela em Bento Rodrigues, que é oriunda do crime da Barragem de Fundão em Mariana em 2015. Que sensações, eventualmente, “positivas”, poderiam surgir dali? Porque as sensações ruins a gente já sabe quais são. Muita destruição por conta da mineração.
JV — Na primeira, que é a Gogô um projeto que fiz com o Altino Caldeira, a intenção era um resgate espacial para quem perdeu tudo. Era apenas um resgate espacial, que a pessoa quando entrasse, relembrasse aquilo que um dia foi. Um pouco também sobre isso em Bento Rodrigues que fiz junto com o escritório Estilo Nacional, mas eu queria que as pessoas sentissem dentro a tragédia que aconteceu, não só ter boas sensações, do tipo “Ah! que bonito”. Mas também sentir a opressão de quem ficou debaixo da lama ou perdeu tudo. Então, você está lá dentro, você escava aquilo, é como se fosse uma arqueologia, você escava o barro, e você encontra uma luz, uma esperança, essa foi a minha ideia ali. Eu trouxe a luz natural e eu trouxe novos ambientes para as pessoas se sentirem acolhidas. Mas na hora que entra também no Memorial é um momento opressivo também, a rampa é baixa, ela é muito baixa. Ela não é larga, e você vai vendo ali os resquícios peneirados no rio dos pertences da capela e dos moradores. Não é só olhar e falar “Gente, que lindo, que beleza”! Tem que sentir todo processo de destruição que aconteceu com aquela população. De certa forma, a arquitetura pode mostrar isso, né? Então, é para o bem que você pode renascer ali, rever a luz, e (re)encontrar o seu espaço, mas você também tem que entender que ali houve uma grande tragédia. Não podemos esquecer da tragédia e fazer uma linda capela toda de vidro olhando a paisagem em volta. Eu não fiz isso, e nem faria, entendeu? Acho que tem que ser contundente. Tem que ser. Essas ações têm que ser contundentes. Quando é proveniente de uma coisa como essa, você tem que ser contundente, para que você não saia dali alegre e faceiro. A pessoa tem que sair refletindo sobre aquilo, tem que encarnar aquele momento, ele existiu você não pode abstrair isso.
AAB — Mas você acha que todo mundo que for visitar teria essa capacidade, essa percepção? Ou isto que você propõe com esta arquitetura seria, na falta de uma melhor expressão, para um “público seleto”?
JV — Eu não acho que todo mundo vá entender, eu acho que quem vai entender é a comunidade que foi atingida. Quem está de fora talvez não. Se for lá um ricaço, um bacana, ele pode até gostar do recorte da luz e tal, mas ele pode também sair de lá sem sentir nada, assim sem sentimento nenhum, infelizmente.
AAB — Ele pode não ser afetado por essa experiência das sensações que você, enquanto arquiteta, imaginou oferecer com seu projeto?
JV — Pode, pode. Ele pode não ser afetado. Tudo bem é assim mesmo. Para mim, é assim, eu estou atendendo mais à questão da população, da comunidade, que eu sei o que eles esperam. Imagino que eles esperam alguma coisa que dê a eles uma esperança, uma lembrança e que eles não vão esquecer nunca, independente ou não daquilo que eu fizer, nunca vão esquecer. Eu só não queria trazer um monumento muito leve, muito suave, porque eu acho que tem que haver uma certa compressão nisso aí, sabe? Para poder ver se as pessoas se sentem melhor, as vítimas, as pessoas entendam melhor as suas questões. Eu tenho essa expectativa, sinceramente.
AAB — Achei uma resposta bem interessante. Porque eu penso que liga também ao que você falou anteriormente, até da própria experiência da cultura do barroco, da visão de mundo do barroco. Vamos dizer aquele barroco mineiro do século 18, do ciclo da mineração, ele foi gerador de beleza, no caso da arquitetura e da arte sacra também, e foi gerador de opressão e destruição ao mesmo tempo.
JV — É, ele é super opressivo. Acho que minha parte barroca está aí, a minha influência barroca é essa. Não é apenas física, é mais sentimental. Por exemplo, no projeto da orquestra filarmônica. Por que a pessoa vai num lugar para ouvir uma orquestra? Vai ouvir música clássica, vai ouvir música boa. Agora, você sempre quando entra numa orquestra, numa sala de orquestra ou quando vai num teatro como o Municipal, essas coisas assim, você vê muito luxo, uma coisa até ostensiva, né? A pessoa sempre acha que vai entrar numa orquestra e vai ter granitos e mármores etc. Fizemos uma orquestra que não tem nada disso. Quando você entra na sala, aí sim, ela é uma sala sofisticada. Não é sofisticada em termos de materiais. Ela é sofisticada acusticamente. Para isso que ela serve: para os seus ouvidos, para o ouvido da pessoa que gosta de boa música, para o ouvido absoluto. Tem gente que tem ouvido absoluto, eu não tenho. Então, a sala está ali para isso. E o resto é para você chegar e falar “gente, aqui não tem um mármore, não tem um granito” não tem ostentação. As pessoas me perguntaram “Por que não tem nada”? É assim, primeiro, porque não tinha recurso [risos] e, segundo, porque eu também não queria fazer uma coisa ostensiva, porque lá vão pessoas de todas as classes sociais. Eu não coloquei um muro, deixei a praça aberta. Eu tive que brigar porque eles queriam cercar. Aí eu falei assim: “só vai colocar grades se for em cima do meu cadáver”. Ninguém fecha isso, só se eu morrer, porque eu quero que fique a praça toda aberta, as pessoas vão lá andam de patins, de bicicleta, vão lá e fazem piquenique, é isso que eu quero: um espaço aberto. E se você quiser entrar, pode entrar, não tem nada ostensivo.
AAB — Eu queria que você me contasse um pouco como é essa experiência de parceria. Porque esse é um projeto que você assina com o Rafael Yanni e o Nepomuceno, eu queria saber como que se deu essa costura e essa necessidade dessa parceria para esse projeto da Filarmônica.
JV — A necessidade da parceria é real. Impossível você fazer o projeto de uma orquestra sem ter antes na equipe uma pessoa especializada em acústica. Ai vem o Nepomuceno. Ele tem uma parceria nos Estados Unidos com um pessoal fera na Acústica. Então, eu tive a humildade de entender qual é a necessidade daquilo. Vieram com um programa de necessidades prontinho feito por ele e pelo maestro, as exigências foram deles, nós atendemos todas as exigências para que se desse no final um produto de qualidade internacional para a orquestra. Cada lugar que você senta você tem uma sensação de audição diferente, diferenciada. Eu, para falar a verdade, não consigo diferenciar tanto. Mas quem tem um bom ouvido diferencia. Tudo isso muito estudado, planejado acusticamente. Então, nós entramos para colaborar com eles na arquitetura como um todo. Sendo que a orquestra é dele. Lá dentro é ele, ele e a equipe dele. E nós, então, fizemos todo o arcabouço que faz o apoio para a orquestra. Eu tive dificuldades com o Nepomuceno? Tive. Ele é uma pessoa difícil? Sim, bem difícil de trabalhar, mas a gente tinha que dar conta porque ele precisava de recursos técnicos, que a gente mais leiga na área de acústica não compreende.
AAB — Vamos falar desse projeto que é impressionante e que é considerado por muita gente como um dos projetos mais importantes, me corrija se eu estiver errado, da década de 80 no Brasil que é a Capela de Santana do Pé do Morro que você fez em parceria com o Éolo Maia, certo?
JV — O Éolo trabalhava na Açominas como funcionário e ele levava trabalhos para o escritório, já que ele não dava conta de fazer todos os trabalhos por lá. Aí nós fizemos a restauração da Fazenda do Cadete, e aí veio a Fazenda do Pé do Morro e que tinha uma ruína que era, provavelmente, onde ficavam os escravos. Provavelmente, porque eu contratei uma historiadora, ela pesquisou em todos os cartórios de Ouro Preto, Mariana e Ouro Branco e não encontrou muita referência sobre aquela ruína.
AAB — A senzala, seria a senzala?
JV — Sim, seria a senzala. Então fizemos a restauração da fazenda primeiro, as autoridades da Açominas pediram que se fizesse ali naquela ruína uma “capela colonial”. Bom, fazer uma “capela colonial” em pleno século 20 é difícil, né? É um pedido do arco da velha [risos], é do arco da velha! Aí nós tínhamos que arrumar algum argumento muito bom para que não se fizesse um “colonioso” por ali. Porque a gente não ia fazer, mas eles certamente poderiam contratar outro arquiteto e fazer, né? Ou um artesão, não sei, qualquer pedreiro etc. Aí a nossa fundamentação foi a seguinte: “Essa ruína será consolidada e continuará como ruína, porque a gente não sabe se era uma senzala, não dá para fazer uma reconstrução, não temos nenhuma documentação sobre ela. Mas nós vamos protegê-la. E como que nós vamos proteger essa ruína? Vocês vão fabricar aço. Então, é a Açominas protegendo uma ruína do século 18, é como um “abraço”. Então, com esse argumento fechamos essa história. Nós deixamos todas aquelas referências dos perfis de aço Corten que vieram, não pintamos, não interferimos. A ruína não foi tocada não fizemos nada, o que tinha de escrito ou raspado, ficou. Ficou intacta, e ela virou o altar para que referenciasse ali uma senzala. E o resto é uma estrutura leve, com telhado simples, e usamos cristal nas laterais, porque a Fazenda do Pé do Morro está ao lado. De frente para a Capela a Fazenda do Pé do Morro está do lado esquerdo, ao lado direito está a Serra do Ouro Branco que nós tombamos, pedimos para tombar, porque se não tivesse tombado hoje já teria lá uma grande quantidade de construções. Aí usamos madeira no forro, aquele forro especificamente é detalhamento do Éolo, como se fossem umas bandeirolas, reverenciando o Volpi. Desenhamos o mobiliário, os bancos, que são de madeiras encaixadas, sem pregos, só encaixes, dois tons de madeira escuro e claro encaixados, simples, tudo bem simples, uma pia batismal que a gente colocou à direita de quem entra, e erramos, ela tinha que ser à esquerda, que é o lado do coração, mas já estava colocada [risos] e ela está no lugar que não é correto, ela teria que ser do lado esquerdo. Então, a Capela é muito simples, aquele cruzeiro que tem na frente, foi baseado em um existente em Ouro Preto. Enfim, a Capela é muito simples, tem uma base em pedra e quando o Éolo morreu, eu levei as cinzas dele para lá. Eu espalhei as cinzas do Éolo em volta da capelinha. O ciclo se fechou ali com ele.
AAB — A capela foi tombada?
JV — Foi tombada pelo Iepha. O Éolo estava no hospital quando ela foi tombada. Ganhou prêmios do IAB. Ganhou milhões de publicações e o mais importante que eu acho é que ela hoje se encontra no acervo da Casa da Arquitectura em Matosinhos -Portugal. Eu acho que, para mim, foi o mais importante. Ela está lá toda cuidada, no ar condicionado, o projeto está todo restaurado. Então, para mim, isso é o reconhecimento maior, eu acho que foi este. Graças ao Nuno Sampaio, ao Francesco Perrota, ao Guilherme Wisnick e ao Fernando Serapião que escolheram. Eles escolheram os projetos do Brasil para levar para Portugal, acho que foram 90 projetos, e a Capela foi um deles.
AAB — E o Museu da Cachaça? Você pode falar um pouco? Em Salinas. Ele foi construído, certo?
JV — Foi construído às duras penas. Muito mal construído. Eu estava no governo do Estado fazendo o Circuito Cultural, a secretária de Cultura, a Eleonora Santa Rosa, uma pessoa culta, uma pessoa de mente aberta, me chamou para fazer o Museu da Cachaça. Ela queria implantar um Circuito Cultural em Belo Horizonte, e um Circuito Cultural em todo o Estado de Minas Gerais. Fazer vários museus em Minas Gerais, principalmente no norte de Minas, que é uma parte do estado muito pobre com vasta cultura, que tem muitas dificuldades, as pessoas são muito vulneráveis. Então escolheu Salinas para fazer o primeiro museu desse circuito do interior.
AAB — Ele seria composto de outros museus, de outras coisas?
JV — Sim. Mas eu nem sabia muito das outras coisas. Eu não sei o projeto completo do Circuito do Interior do Estado, eu não participei muito, foi ela que elaborou esse projeto. Então, eu fui chamada para fazer apenas esse museu. Eu tive a minha primeira reunião com uma museóloga da UFMG, e com a diretora do Museu Mineiro. E elas estavam já discutindo a parte Museológica, porque tem uma parte museológica muito grande, muito intensa, um projeto muito bacana. E elas falaram do percurso, porque lá era um antigo aeroporto, o terreno era muito comprido, fino e plano. A ideia era que tivesse uma linguagem bem simples, bem linear, para que fosse contando a história da cachaça desde os primórdios até os dias de hoje.
AAB — Uma coisa cronológica e pedagógica, vamos dizer assim. Esses seriam os itens do programa, do que foi solicitado para você?
JV — Não, eles me passaram as salas que eles queriam. A sala do plantio, a sala da cachaça, a sala das garrafas. Então, me deram um programa mínimo. Mas tudo isso em reunião, foram aparecendo outros itens do programa. Depois elas queriam expor as cachaças fabricadas em Minas, todas as pessoas que fabricam na região do norte de Minas. E aí eu fiz aquele projeto usando a tecnologia local, que é alvenaria de tijolo, porque na região de Salinas eles têm uma boa fabricação de tijolos cerâmicos furados. E também tinha pouquíssimo recurso, tinha que ser uma coisa muito simples. O governo do estado repassou a verba para a Prefeitura de Salinas, que construiria e executaria a obra. Agora uma coisa interessante do Museu da Cachaça, que eu não falei, é que eu fiz uma arquitetura bem vernacular. Eu usei aquela cor, porque tudo lá é colorido, as casas são coloridas, eles gostam muito de azul, por isso que eu pintei de azul, eu fiz uma parede dupla, porque lá é um calor do capeta. Aquela cidade é dura. Em tempos de muito calor, lá tem ar condicionado, claro, porque não tem janela. Aliás o programa pedia que não tivessem janelas nas salas de exposições. Na sala dedicada a distribuição da cachaça eles queriam uma abertura e eu fiz uma abertura fininha, ainda usei um piso de terra batida para a pessoa passar em cima desta terra e ver a distribuição da cachaça pelos tropeiros. E essa parede dupla me deu a condição de ter cinco graus a menos, o que é relevante naquele local.
AAB — Você falou sobre o Museu da Cachaça que a obra foi mal feita. O que te incomoda mais, o que te constrange mais: é um projeto que nunca saiu do papel ou é um projeto seu que foi executado e que depois foi modificado?
JV — O projeto que foi executado e depois modificado. Eu prefiro guardar um projeto na gaveta do que ter um monstrengo, tenho responsabilidade civil e eu fico com ela para o resto da vida [risos]. Porque a Arquitetura fica. Você morre, morrem gerações, e fica lá o povo dizendo: “Ah, como é que essa mulher fez essa coisa horrível, fez esse projeto horroroso”.
AAB — Você me falou já em algum outro momento anterior que está organizando o acervo que deixou o Éolo Maia, certo? O que é esse acervo? Quem está te ajudando? Quais são as suas expectativas em relação a isso?
JV — É, ninguém está me ajudando. Na verdade, eu não posso ter ninguém me ajudando nessa organização agora, porque o acervo estava muito desorganizado. Nós guardávamos de qualquer jeito, ia empilhando, não nos preocupávamos com o futuro. A gente sempre foi assim do dia, viver o próprio dia. Amanhã era o máximo que a gente pensava. Então, agora eu estou organizando de forma cronológica. Então, por enquanto, eu consegui organizar mais ou menos dentro minha visão, porque eu sou péssima para organização. Eu consegui uns 250 projetos, que já estão cadastrados, separados em envelopes, com slides, fotos etc. Depois as pastas com projetos e cópias, e os tubos com projetos que têm em vegetal ou em papel manteiga, os croquis. E está me dando um trabalho imenso, porque eu tenho que fazer sozinha, porque só eu sei o que é aquilo. Porque têm coisas que não têm data, não tem nada, eu tenho que recorrer à memória ou recorrer a algum livro, a alguma coisa, entendeu? Isso me toma um tempo enorme. Estou fazendo isso absolutamente sozinha. Em breve eu pretendo ter uma pessoa aqui comigo, que vai me ajudar a organizar. É o Pedro Henrique d´Ávila um jovem pesquisador que defendeu uma tese e fez uma pesquisa muito grande sobre o meu trabalho. E eu fiquei muito bem impressionada com a pesquisa dele.
AAB — E depois que você fizer essa organização, essa catalogação, o que vai ser desse acervo? Você pretender doar? Você pretende o quê?
JV — Ele vai ser doado para uma instituição que eu não posso falar ainda [risos]. Já temos um contrato assinado.
AAB — Quais são as sensações e emoções que vêm à tona quando você olha para esse acervo, que também é seu, né? É do Éolo, mas é seu também.
JV — É dureza, porque é muito fantasma que eu levantei. Eu tive que me colocar dentro de uma pirâmide azul, para não ficar contaminada com a poeira, os ácaros e com os fatos todos que aconteceram. Têm projetos que eu não lembro que eu fiz. Têm projetos do Éolo que eu não sei o que é ainda. Esses estão sem data, não sei o que é, vou ter que investigar, porque é anterior a conhecê-lo, então, eu vou ter que pesquisar, para poder organizar melhor. Mas é muito duro, é dificílimo. Eu fico ansiosa demais mexendo nisso. Eu sou muito ansiosa, eu fiquei mais ansiosa, fiquei mais estremecida com tudo isso, porque é uma coisa muito difícil levantar os seus fantasmas de quarenta anos, é muito difícil isso. É como se estivesse fazendo uma via crucis [risos]. Tem coisas que eu me pergunto: que projeto horroroso é esse? Aí eu abro as plantas e vejo que é meu [risos]. Às vezes vem uma autocrítica forte. Outra pessoa que fizer, tudo bem, mas eu ter que fazer, não é fácil. Eu vou falar que é uma surpresa atrás da outra, um sofrimento, sabe, uma alegria, uma tristeza, é uma mistura de muitos sentimentos. Mexer nesse material daria para fazer terapia, uma análise completa com um analista bem foda durante um bom tempo [risos].
AAB — E seus planos? Quais são seus planos?
JV — Meus planos? Eu tenho um plano assim, vou te contar. Eu gosto muito de viajar, sabe? Eu não me preparei para a velhice, porque eu sempre achei que eu ia ser jovem e que nunca ia morrer. Quer dizer, eu nunca pensei muito nisso. Agora já é hora de pensar, né? [risos]. Então, meu plano mais atual é fazer uma reforma no apartamento. Eu tenho um apartamento enorme. Vou trazer minha filha que é casada para morar, vou dividir em três unidades independentes, porém depois reversível. Eu vou morar no segundo, a minha filha no primeiro e vai chamar Condomínio Bolha, uma bolha [risos]. E o terceiro, que é o meu escritório, vai ser uma grande área de lazer futura, porque é um terraço grande e tem o escritório. Tenho outra filha que mora fora e eu pretendo visitá-la mais, porque eu vou um ano sim e um ano não. Um ano ela vem no outro eu vou. Mas a pandemia cortou esse barato, né? E aí eu estou pretendendo viajar um pouquinho, fazer mais projetos, porque eu não quero me aposentar nunca, não quero. Não quero ficar na prateleira, de jeito nenhum, quero estar sempre atuante, e enquanto eu tiver condições, eu vou trabalhar muitíssimo, porque o meu negócio é o trabalho [risos]. Eu sou uma formiguinha trabalhadora [risos].
AAB — Que maravilha! Olha, eu acho que foi uma belíssima conversa, que nós tivemos.
JV — Pois é. Eu até divido assim o profissional em quatro períodos. O primeiro período é mais o Éolo, que é de 1977 a 1980. O segundo período é o Éolo, o Sylvio e eu de 1980 a 1990. O terceiro período é até 2002. E o quarto, na verdade, não é um período, é um “movimento”. Então, eu estou no quarto movimento, que é o meu movimento que eu estou trabalhando com uma independência na minha maturidade com bastante liberdade. Estou me deixando com muita liberdade mesmo. Então eu estou atualmente no quarto movimento. Quem sabe eu chego quinto?