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interview ISSN 2175-6708

abstracts

português
Nessa entrevista, o arquiteto Edson Elito relata o encontro em sua trajetória pessoal e profissional com o Teatro Oficina, principalmente no momento da elaboração do projeto da sede da Companhia, em parceria a arquiteta Lina Bo Bardi.

english
In this interview, the architect Edson Elito reports about how in his personal and professional trajectory has been the meeting with Oficina Theatre, mainly when the company’s building was being designed, in partnership with the architect Lina Bo Bardi.

español
En esta entrevista, el arquitecto Edson Elito relata como en su trayectoria personal y profesional encontró con el Teatro Oficina, principalmente cuando se estaba diseñando la sede de la Compañía, en alianza con la arquitecta Lina Bo Bardi.

how to quote

PIRES, Felipe Ribeiro; LUZ, Vera Santana. Oficina: do teatro à cidade (parte 2). Entrevista com Edson Elito. Entrevista, São Paulo, ano 24, n. 095.01, Vitruvius, jul. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/24.095/8840>.


Um teatro aberto para o céu da cidade
Foto Felipe Ribeiro Pires

Felipe Pires: Bom, vamos pra próxima então. O projeto do Oficina propõe algumas configurações bem radicais, se pensadas do ponto de vista de um teatro tradicional. Então é o caso dos camarins que se integram ao espaço cênico, várias dessas invenções, por assim dizer.

Edson Elito: Não é invenção.

FP: Invenção é um termo precipitado.

EE: Não, vou explicar porque não é invenção, mas continua a pergunta.

FP: Soluções seria a palavra, perdão. Então, pra chegar nessa configuração, foi preciso um esforço de desconstrução da ideia de um espaço teatral comum?

EE: Não. Porque a gente já tinha as ideias de que o teatro com a quarta parede não interessava, nunca interessou. Interessou até certo ponto, mas depois do que eles vinham fazendo desde a década de 1960, já tinham feito Galileu Galilei, Gracias Senõr, já tinham viajado pelo Brasil fazendo isso em espaços que não eram teatro. E a comunhão do espectador com a encenação, para formar o Te-ato, que é anterior ao nosso projeto, não admitia que houvesse uma solução de arquitetura teatral que só pudesse ser daquela forma, como no palco italiano — só mostra aquilo que o diretor quer. Você vê, então, como se fosse um plano. Então, isso não interessava mais. A concepção cênica do Zé pedia essa integração. Não haver distinção entre palco e plateia. Isso era o principal. Você falou de invenções. Não é invenção, sabe por quê? Não é que você falou errado. É que a gente partiu de estudar formas de arquitetura teatral. Arquitetura, porque se configura um objeto. Pode nem ter sido um arquiteto que fez. A gente estudou várias coisas. Principalmente a concepção cênica do Zé. A concepção cênica do Zé é que orientou tudo. E a concepção cênica dele vem de muitas coisas, inclusive de discussões dele com a Lina, desde antes, de?cadas… A Lina fazia cenários. Isso que eu falei de Nas selvas da cidade é cenário da Lina, por exemplo, que ela trabalhou com as sobras e resíduos do Minhocão e modificava a configuração do espaço cênico com cenário. A gente estudou, além disso, basicamente: uma coisa que influenciou muito foi estudar a configuração no Teatro Nô japonês. Então isso, os camarins e tal, é do teatro Nô. Não é invenção de arquiteto. Vem do Teatro Nô, que os atores do Teatro Nô se preparam na frente do público. Mesmo essa situação de passarelas é do Teatro Nô. Teatro Nô é isso, são decks que entram na plateia. É o despojamento das coisas associado a essa configuração. E também a peça As bacantes. A peça As bacantes evoca, entre outras coisas, a criação do teatro, que é como se fosse a criação da vida e que é, também, simbolicamente, a preparação do vinho. Tudo isso, essas duas coisas influenciaram muito. Fora tudo o que já vinha, todo esse cabedal de mistura e tal, do Zé Celso, Lina. E a outra coisa, é uma coisa estranha ao teatro, que não é mais estranha, porque também faz parte, que é o conceito urbanístico. Porque já existia aquele terreno lá no fundo. Não era tão grande. Silvio Santos foi comprando e derrubando tudo. Até derrubou a sinagoga que os pais dele frequentavam. E a estrela da Sinagoga ficou lá no Oficina. Não sei se está mais lá, ficou tudo jogado. Então, tinha já o terreno que era o estacionamento do Baú da Felicidade, que era um prédio que estava ali do lado. Então, aquela parede no fundo do Teatro era o grande leitmotiv do Zé, pra falar que queria quebrar, ultrapassar, e a Lina falava: “Eu não atravesso paredes, eu quebro paredes”. Então, tinha essa proposta de ligar o Minhocão, usar inclusive os baixos do Minhocão pra ter oficina de cenário, depósito… Porque o teatro propriamente dito é pequenininho. Ele tem 9 metros de largura por 50 metros. E atravessar e aproveitar aquele estacionamento, que era um estacionamento no meio do centro da cidade, para um espaço teatral, para ter uma praça, um espaço público. Todo esse conjunto de coisas, não sei se eu respondi tudo o que você precisa.

Vera Luz: Queria perguntar uma coisa, posso, Felipe? O filme que a gente viu recentemente eles fazem isso simbolicamente, vão lá com velinha, sei lá o quê. É superbacana, porque é a primeira vez que eu vi isso documentado em um filme, então ficou mais um acerto. Realizou-se esse negócio de atravessar parede. Esse negócio de Teatro Nô eu nunca tive notícia. Das Bacantes, sim. O Teatro Nô tem elementos simbólicos muito fixos, além dessa transparência na preparação. É quase como se fosse um circuito, né? O sujeito passa por uma peregrinação, até chegar ao ápice. Mas tem elementos simbólicos fortes, que tem nome e tudo. Lá no Oficina, tem um pouco isso, que eu assimilo principalmente aos elementos fundamentais. Tem o buraco na terra, a cachoeira que tem água, o fogo, a árvore, que é quase uma epifania. Tem umas coisas que eu associo a elementos simbólicos do mundo ocidental, lá do universo grego e eu achei que isso ficou misturado. Então achei interessante isso que você falou.

EE: Muito misturado, o pensamento do Zé Celso é um pensamento antropofágico. O que é antropofágico? É você absorver, comer tudo. E deglutir aquilo e transformar em alguma outra coisa. Então isso é o básico. Tudo, tudo que aparece. Você já viu uma peça lá no Teatro?

FP: Já.

EE: Que peça você viu?

FP: Roda viva, no começo de 2020.

EE: Roda viva, é. Toda peça que ele faz é assim. Você tem personagens na mesma cena, ou em cenas em sequência, que você não imagina que poderiam estar na mesma cena. Nem na mesma época, nem no mesmo lugar. Ele une Santos Dumont, Cacilda Becker, Oswald de Andrade, [Jair Messsias] Bolsonaro. Todos têm lugar, inclusive Bolsonaro, [Paulo] Maluf. Quem quer que seja está lá. De uma forma ou de outra está lá. E se for necessário ele dialoga com eles também. O Maluf não deu até dinheiro pra fazer o Oficina? Eu estava naquela época. Teve uma reunião, por exemplo, com o Secretário da Cultura, que era o João Carlos Martins. Era pra apressar a desapropriação. Então, tinha uma agenda com ele, marcada. Então, ao invés de ir o Zé foram umas cinquenta pessoas, com uma banda. Saímos do Oficina, eu fui gravando tudo, já era com vídeo, na época. Fomos gravando tudo, a banda tocando, um carnaval na rua. O prédio era aquele prédio art decó do largo São Francisco, naquela esquininha. E subimos de escada, carnavalizando tudo e entramos no gabinete. Era feito assim, as coisas. Por exemplo, eu gravei uma reunião do Condephaat, que o presidente era o Aziz Ab’Saber. Essas imagens que você vê do Ab’Saber, da Lina, do Zé, foi eu que gravei. Uns closes assim na reunião do Condephaat. Era uma forma de pressionar. Eles sabiam que estava gravando, a câmera na cara e o conselheiro tinha que dar a opinião dele. Era um pouco agressivo, mas era uma forma de pressionar.

VL: Olha aí o elemento do arquiteto que virou cineasta na resistência.

EE: É isso mesmo, isso aí. Vou fazer mais um parêntesis. A Vera falou um negócio. Nessa época de 1980 tinha sido concluído o filme O rei da vela. Paralelamente, o [Paulo César] Saraceni tinha concluído um filme chamado Ao sul do meu corpo. Ambos os filmes tinham sido objeto de censura. Tinha um conselho de censura em Brasília, dentro do Ministério da Justiça, era uma reunião que tinha vários conselheiros, inclusive o Cacá Diegues fazia parte. E eram analisados. Ouviam uma música e falavam: “A música da senhora Marina Lima, no parágrafo tal, fala tal coisa, que não pode”. Então, eles censuraram algumas cenas de O rei da vela, que só poderiam obter… que tinha um certificado naquela época, assinado. Aparecia antes do filme, o certificado, aprovado, liberado. Então a gente fez, o Gofredo, Gofredinho, Gofredo da Silva Telles Neto. Filho do Gofredão. O Gofredinho morreu muito moço, teve um negócio do coração, lá, e morreu. Ele era muito amigo do Saraceni, que era daquela turma, Paulo Emílio [Salles Gomes], Sarraceni, Gofredo, tal, Lygia Fagundes Telles, era filho dela…

VL: Acabaram construindo a Cinemateca depois.

EE: Era uma tribo aquilo. E tinha até o presidente, que eles chamavam de presidente, que eu esqueci o nome dele. Daí como todos os filmes estavam no mesmo pacote, nós resolvemos fazer um vídeo argumento. Então, em vídeo, eu e o Gofredo, fomos entrevistando todo mundo que participou do filme, as pessoas na rua, e fizemos um vídeo argumento, muito interessante, chama “Abra a jaula”. Abra a jaula é uma frase de O rei da vela, “Abra a jaula” é porque ele enjaulava os pobres. Então nós fomos e fizemos esse vídeo argumento e levamos em uma reunião do conselho de censura. Acho que era Conselho Superior de Censura. E gravamos a reunião, que estava passando o filme. Então, tudo isso a gente fazia dessa forma, era um negócio bem… Esse “Abra a jaula”, se vocês puderem ver, é muito interessante. Uma das coisas que queriam censurar, é porque em O rei da vela aparece uma sequência que tem como trilha sonora superposta, três faixas. O Hino Nacional, a Bateria de Padre Miguel e uma terceira, que eu não lembro qual era. Três faixas. Se você isolar, você ouve. As três faixas juntas, dá uma outra coisa. Tinha uma lei na época que dizia como que tinha que ser executado o Hino Nacional. Você não podia mudar os compassos, a letra, o andamento. Tinha uma regra. E eles queriam cortar, porque diziam que a gente tinha mudado. Aí, nós fomos ler a lei, e vimos que como eram faixas separadas, a gente separou a faixa e mostrou. “Olha, o Hino Nacional está na íntegra, a bateria de padre Miguel está na íntegra”. Tudo isso no vídeo. Depois, foi liberado o filme.

VL: Que legal essa história! Muito bacana isso, são os instrumentos de luta mesmo, dentro do universo cultural.

EE: O vídeo, essas interferências, no processo. A luta também se dava nesse campo. Antes que as coisas tivessem uma solução, era uma interferência para que a solução se desse o melhor possível.

VL: Eu queria fazer uma pergunta, então, Felipe.

FP: Fica a vontade

VL: No universo da documentação e da filmagem, que é mais que documentação, está no momento da coisa. Transportando para arquitetura, tem hora que você teve um processo com a Lina. Você falou lá, na mesa, não sei quê, e as vezes, obviamente a partir de tudo do Zé Celso, o projeto transporta o Zé Celso para o espaço arquitetônico. No processo de projeto, você e a Lina, como é que se dava, porque é uma coisa muito íntima essa relação com as ideias do Zé Celso corporificadas. Então, duas pessoas em um diálogo, não é uma coisa convencional. Então, como se dava o jeito de estudar, debater, misturar o Teatro Nô com não sei o quê lá? Como é que isso foi levado, porque é uma química aí, particular.

EE: Esse processo é assim. Cabeças de arquiteto e cabeça do Zé Celso. Eu e a Lina de certa forma tínhamos uma formação modernista, de você fazer coisas claras, limpar de tudo que fosse símbolos. Todos os símbolos, limpar. Deixar a coisa mais limpa possível. Uma simplicidade, menos informação, mais objetiva. Menos informação, menos ruído. O Zé Celso vinha com um outro tipo de… embora ele circulava nessas mesmas ideias que a gente, ele tinha outras, a mais, que era o simbolismo. Se você viu o Roda viva, você viu que não tem nada de clean. Não é clean, uma coisa clean que você compreende no primeiro lance de olhar. Então, ele vinha com o simbolismo, tanto com a iconoclastia, quanto com a sacralização. É paradoxalmente, mas é. Sacralizava e ao mesmo tempo derrubava os ícones.

VL: É bem Baco o negócio. Não tem apolíneo. Tem Baco.

EE: Tem também. É a luta entre Eros e Thanatos, Apolo e Dionísio. Ele se colocava como Dionísio e colocava o Silvio Santos, o Maluf, em Apolo. E nessas reuniões ele fazia isso, ele transformava num teatro. Ele fez o Maluf ler o negócio do Apolo. O Zé Celso, não existe outra pessoa igual. Ele tá com oitenta e poucos anos. Tem pessoas lá no grupo que são muito legais. Mas ele tem um dom. Ele capta a coisa que vai acontecer, que está acontecendo. É uma espécie de antena social. Ele capta e cria alguma coisa com aquilo. É antropofagia.

VL: O Tadeu Jungle tem um filme que vai muito bem nisso. É o Zé Celso. É bonito esse filme, porque ele está lá. Esse filme é o cara.

EE: É uma coisa que é filmada lá na Grécia também.

VL: É muito bonito esse filme do Tadeu, acho que está nas entranhas.

EE: Então o Zé tem esse dom, também tem esse despojamento. Ele é uma pessoa atemporal. Então, o processo de fazer o projeto era assim. Eu me reunia com a Lina na casa dela porque ela já estava um pouco doente na época. Eu nunca soube direito o que ela tinha naquela época, mas vtava um pouco doente, tomava uns remédios. Mas estava assim perfeita para as nossas conversas, lúcida e tudo. Não era nada disso. Era uma certa fragilidade em termos de saúde. Então eu me reunia na casa dela, ou na lareira ou na sala de jantar dela. Ela servia macarronada, fazia lá, tomávamos chá, acendia a lareira. A irmã dela conversava com a gente, a Graziela, quando ela estava ali, acompanhando. E com o Zé, eu ia lá conversar com o Zé. As vezes nós conversávamos os três. Mas eu mais que conversava com o Zé, “É assim, assim, assado”. E ela conversava, fazia uns croquisinhos na hora, as vezes ela me mandava uns croquis também, o motorista vinha trazer no escritório. Uma época eu tinha um escritório junto com os colegas. O Afonso foi meu sócio. E também depois eu tinha escritório em casa.

VL: O Afonso Risi né? Você, o Afonso e tinha mais um.

EE: O Léo! E isso já foi em [19]85. Esse processo vai de [19]84 a [19]93, [19]94. Ela fazia umas aquarelas, inclusive tem um livrinho. Muita coisa que eu estou falando aqui está naquele livrinho lá, que eu escrevi.

VL: O da Blau? Da Editora Blau?

FP: Eu cheguei a ler também.

EE: O que eu estou falando aqui, ao vivo, está lá escrito, muita coisa. Não é tudo, mas tem muita coisa. Então essas conversas, era dessa forma. Ela fazia umas aquarelas, que estão nesse livrinho, que não foi aquilo que foi feito depois. A preocupação dela era proteger o Zé Celso, de que ele entrasse em uma coisa que não ia terminar. Ela queria fazer uma coisa mais baratinha, econômica. Não era aquilo que está lá. Ela queria manter a maior parte das coisas, fazer ali, na parte onde tinham plateia e palco antiga, fazer uma coisa aberta e lá no fundo manter. Tanto é que tem aqueles buracos. Buracos da guerra de Espanha. Então era isso. Mas depois mudou. Mas aí então tinha essa…

VL: Dinâmica?

EE: Essa dinâmica. O Zé Celso com as suas propostas de configuração cênica, que foram mudando também. Um dia no meio da coisa toda, nós fomos num domingo lá e a gente percebeu que o espaço podia ser dessa forma que está lá hoje. Sem a Lina. E pra explicar isso pra Lina foi difícil. Ela falava, “Não”. Porque ela costumava exigir do interlocutor argumento, pra ela se convencer daquilo que você estava propondo, se era uma coisa diferente do que ela pensava. Ela falava, “Não”. Aí você argumentava, ia embora. Daí ela mandava o motorista trazer um desenho daquilo pra que ela tinha falado “não”, resolvendo a questão. Então eu ia pra prancheta, não tinha computador, e resolvia. Dava concretude àquelas aquarelas, às ideias, e aí foi indo assim. Vamos parar por aqui, depois você faz mais uma pergunta.

FP: Eu vou aproveitar. Você citou essa questão da formação sua e da Lina, mais atrelada a uma tradição moderna e o Zé Celso com uma questão simbólica, diferente. E essa era uma pergunta que, inclusive, eu estava prevendo fazer. Eu queria entender melhor, qual que é, na configuração atual, no projeto construído, qual que foram as medidas disso. Em que parte se colocou ali a formação da tradição moderna e em que parte se colocou a questão mais simbólica, ritual.

EE: Então, Felipe. Na configuração arquitetônica não existe essa separação, do que é simbólico, do que é isso, o que é aquilo. Tem, a Vera até já falou. Tem esses simbolismos todos, mas o Zé não é um neocolonial, neo-eclético, nem nada. Ele é moderno, ele também faz parte do modernismo. Não é uma coisa que ele queria uma coisa barroca. Tanto é que o que está lá é mais despojado, mais livre, mais planta livre, pra falar em termos de arquitetura, do que aquilo que inicialmente eu e a Lina estávamos pensando, mais por causa dela, que era manter umas coisas e tal. Tanto é que quando nós fomos lá, em um domingo juntos, ele, na verdade foi ele que viu, gostou do que estava, da ruína, porque estava uma ruína desgraçada lá. E tem um desnível no terreno. E estava tudo demolido e aquele desnível estava lá com entulho, tudo. E ele teve essa visão que poderia ser o palco, mesmo em rampa, tudo livre, demolir tudo lá no fundo. Então, também não é que ele queria… veio dele o negócio. Então água, terra, ar e fogo. Isso foi ele que quis. Pelo menos foi ele que me falou. Se alguém falou pra ele eu não sei. Claro que alguém falou pra ele. Os deuses devem ter falado com ele. Mas ele falou. Então, vamos fazer. Eu e a Lina pensamos: vamos fazer aqui um espelho d’água. Tanto é que, no desenho dela, tem uma gárgula. E quando eu fiz o projeto eu fiz outra coisa, que depois eu vou te explicar. A terra é uma pista de terra, que hoje já não tem mais, porque foi cavado um túnel para fazer efeitos subterrâneos. Aí eu consultei como fazer. Procurei uma empresa que fazia quadra de tênis. Aí nós trouxemos terra de Barueri, que era um saibro específico. Tinha todas aquelas coisas de quadra de tênis, camada disso, camada daquilo. Então tinha uma pista de 1,5 metros e mais 1,5 metros de cada lado e por toda extensão, cobertas com pranchas de madeira. A terra, a água, o ar é a cobertura deslizante. Aquela cobertura deslizante, nos projetos da Lina, nas aquarelas, era uma lona amarela, que era o sentido do provisório, das bacantes, do teatro grego. Tudo é provisório, nada é fixo. Como fazer esse negócio deslizante? Só um parêntesis, eu tinha 34 anos. Em 1984 eu tinha 36. Então, como fazer o teto móvel? Aí eu, o Zé e não lembro agora, acho que foi o Noilton… O Marcelo. Eu, Zé Celso e Marcelo Drummond. Eu falei, preciso fazer uma pesquisa e falei: “Isso tem em motel, muito”. Aí, o Marcelo conseguiu um motel, falou com o dono, que falou: “Voce? pode vir ver aqui”. Porque eles não querem que você veja. Aí o cara permitiu, a gente foi no motel, vimos como funcionava. É tudo barato, precisa ser barato. Eles fazem barato. Se eu fosse procurar uma empresa que faz coisa, aí… Daí nós fomos procurar a maneira mais barata, que é uma abóboda de aço, com roldanas, uma engrenagem, que aperta um botão, o motor funciona…

VL: Igual portão da garagem.

EE: Igual portão da garagem. Mas, no motel, eu vi como é que eram os detalhes da coisa. Então, era tudo assim. O ar. O fogo era uma instalação de gás que a gente fez, que levava da rua até um ponto central do terreno. Ali tinha um subsolo, pra sair, aparecer, tal. Depois foi abandonado esse gás aí. Eles fazem com gás de botijãozinho, quando precisa. Aliás eles fazem fogo de tudo quanto é jeito, quando precisa. Pólvora, com coisa. Então os quatro elementos eram uma coisa do Zé.

VL: É engraçado, Edson. É engraçado, porque lá no Sesc [Pompeia] também tem. E a gente costuma associar que seria uma coisa de primeira, uma premonição da Lina, não do Zé. Mas quando você falou tem tudo misturado, é tudo em um grau de abstração impressionante. Tanto o simbólico, quanto o espaço. Tem um grau de abstração. Não é uma coisa traduzida: Olha, isso aqui significa aquilo. É uma coisa abstrata. É muito doido. É concreto, mas não é.

EE: Porque também tem uma coisa que não é “agora vamos fazer a água”.

VL: Não é representação.

EE: É como a Vera falou, vem mais ou menos tudo junto, o conceito, a forma, a técnica. Quem fala muito disso é o Paulo Mendes da Rocha. Ele diz: “É o seguinte, não se ensina arquitetura e você não faz arquitetura pensando em uma coisa ou outra. Ou você faz arquitetura pensando em tudo ao mesmo tempo”. Porque é o que ele falou. Não adianta fazer uma coisa sem pensar em como aquilo vai ser construído. Se for fazer assim é mentira. Tem que primeiro saber como que vai ser construído, ao mesmo tempo que você quer fazer aquela coisa. Bom. A Lina, quando eu falei de deuses, eu me referi à Lina. Eu não sei se a Lina falou pro Zé, se eles falaram juntos, mas eu sei que veio do Zé, pra mim. Por isso que tinha que falar com o Zé. E tem também um jardim ali. Eu acho bom que tudo seja atribuído à Lina. Muitas vezes eu sou colocado de fora e ninguém sabe que eu existo. É a Lina que fez aquilo lá. É normal, isso. Se você for dar crédito, sempre vai ficar um negócio interminável. Mas eu acho até bom que seja dado o crédito. A Lina pensou no fogo. A Lina pensou na água. A Lina pensou no janelão, porque na Casa de Vidro também é de vidro.

O janelão, se eu te contar como surgiu o janelão, é engraçado, até. No nosso desenho, como atitude meio porra-louca, o intuito era deixar tudo aberto e chover dentro do teatro. Era chover naquele jardim… Aí o projeto estava no Condephaat. E o presidente era o Paulo Bastos, que era meu amigo, porque foi meu professor, eu gostava, tal… E estava meio parado ali e eu fui falar: “Paulo, você não quer olhar, pra ver o que está acontecendo, porque eu não sei se alguém foi lá no patrimônio”. Aí ele falou: “Tá, vou lá”. Ele adorou, porque não estava pronto, já estava construindo e ainda estava em aprovação no Condephaat. Daí ele falou: “Não, isso aqui é muito legal, mas isso aqui, vai ficar aberto? “E eu falei: “Vai”. “Como é que você vai deixar o negócio aberto, vão roubar as coisas que estão aqui dentro". Tinha um murinho de 1,6, 1,8 metros. “Não vai dar certo, vão roubar tudo, o Estado não vai querer; porque você não pensa em um fechamento de vidro?”. E foi embora. Aí eu falei, “Ele tem toda razão”. Imagina, deixar tudo aberto. A contratação do projeto executivo… O Fernando Morais nessa época era o Secretário da Cultura. Que é da cultura, aquilo lá. Não é do Zé Celso, é patrimônio público, imobiliário e a Secretária da Cultura do Estado não é proprietária, mas ela que cuida. É patrimônio público, acho que até da fazenda. Patrimônio público do Estado, não da Secretaria. Mas é a Secretaria que faz a gestão. Mas ele cacifou, falou: “Vamos construir”. Porque até aí vinha um dinheirinho do Maluf, um dinheirinho de não sei quem.

Pelas ruas do Bexiga
Foto Felipe Ribeiro Pires

VL: Quem falou?

EE: Falou “Vamos fazer”. O contratante do projeto era a CDH (1). Na época era CDH, não era CDHU (2). Fazia outras coisas também. Hoje CDHU, coitada. Então: “Vamos contratar”. Então precisa dessa documentação. Que era um contrato, né. Daí, eu cheguei pra Lina e falei: “Lina, você vai ser contratada”. Ela falou: “Não tenho escritório, nem quero ser contratada, isso é com voce?”. Daí eu falei “Mas Lina, eu também não tenho escritório”. “Então você se vira aí, porque eu não vou ser contratada, não quero ser contratada. Não tenho escritório, não vou assinar nada de contrato”. E eu também não tinha escritório. Daí eu fui falar com um amigo meu que tinha escritório. E precisava estar com a papelada em dia. Ele nunca teve, mas na época tinha. Era o, não sei se você conheceu, o Percival Brosig.

VL: O único CNPJ da turma.

EE: Era outro louco. Ele não assinou nada. Ele tinha que dar o nome da empresa dele, fazer uma procuração pra mim, pra eu ser tudo. Certo? Aí ele falou: “Claro”. Fizemos um contrato, chamava Arquitema, a empresa dele. O contrato, se você for ver, eu tenho o contrato, era em nome da Arquitema, só que eu tenho a responsabilidade total administrativa e financeira. Então, eu que assinei o contrato. Então, é tudo junto e de uma vez só.

FP: Eu vou aproveitar, fazer uma pergunta, aproveitando a questão dos quatro elementos. A gente tem uma situação de signos que representam uma questão primordial, uma questão de origem. E eu me pergunto se existiu alguma conexão entre a inserção desses signos de origem e o próprio território do Bexiga, como colocar a origem no Bexiga, naquele centro geométrico do Teatro.

EE: É isso mesmo, Felipe. A água, a terra, o ar e o fogo é você chegar na origem, você chegar no que é básico. É o chão, o chão original do Bexiga. Aliás esse negócio do ar, não é só ar no sentido esotérico. É porque também haveria a possibilidade de entrar coisas, balões, vir coisas de fora pra dentro, de dentro pra fora. É cênico. Aliás, a água é cênica, tudo era cênico. Não era só uma coisa religiosa, esotérica. O negócio é pra cena. Tudo é objetivo cênico. Mas a pergunta é essa mesmo. Você chegar no âmago das coisas. Aí tem uma confluência entre o simbolismo e o pensamento moderno. Você chegar, tirar tudo que é supérfluo e chegar na essência das coisas. Pisar na terra, na praia. Nesse filme tem muito disso. Tem até o negócio do vinho, que eles pisam. Então, é chegar no início das coisas, na origem das coisas, como você falou. E se você chega na origem, você pode criar um mundo, fazer o que você quiser. Você não precisa seguir nenhum padrão. Pro teatro isso é importante. Por isso o teatro, independente da arquitetura, onde ele sempre esteve, sempre foi uma coisa revolucionária. O Teatro Oficina é revolucionário mesmo em palco italiano. Aquelas peças de [Bertolt] Brecht, de [Anton] Tchekov, essas coisa. Só que depois houve um outro passo. Depois da década de 1960 e 1970, 1968 em diante.

VL: Mas, Edson, tem um paradoxo aí que é assim: o Teatro vai estar em qualquer lugar, você vai lá pro âmago do negócio, que ao mesmo tempo estar parafusado no Bexiga. Então, tem um centro de mundo lá e eu não saio de lá por nada, porque aqui é um centro do mundo. Ao mesmo tempo que tem esse grau de estar em qualquer lugar, vai lá no negócio do Maluf, grita e está tudo certo, aqui é um microcosmo que ninguém sai dali. Podem me trocar por quarenta lugares, eu vou ficar aqui. Isso é impressionante.

EE: Mas tem um negócio que é o seguinte. Essa ida ao Maluf, essa ida a quem quer que seja, é uma ida em defesa do espaço, daquele espaço. Não é porque o gabinete do João Carlos Martins será o teatro… É também.

VL: O que eu quero dizer é: “O eu não saio daqui”, apesar de eu poder fazer a peça no Brasil inteiro, aqui é o centro do mundo.

EE: É o laboratório. É onde a coisa é criada. É dali… Aliás, eu sempre conversei com o Zé que ali, eu fiz, nós fizemos, quando nós fizemos, eu digo que eu fiz porque eu que calculei o negócio do bombeiro e calculei que ali poderia ter 450 pessoas. Tem 4,5 metros de abertura ali. É pequeno. Porque o Zé pensa no teatro de estádio, pra milhares de pessoas. Que é uma coisa do Oswald de Andrade também, né? Então eu sempre falo: Aqui, o teatro é um laboratório. Aqui pode ser criado, experimentado, e depois pode sair para o Brasil, para qualquer lugar do mundo, como foi, como vai. Então é isso mesmo que você falou, aquilo é um lugar sagrado. No tombamento, o Flávio Império fez o parecer, que, por coincidência, na época do tombamento, ele era conselheiro do Condephaat, ele fez um parecer dizendo que… Agora, aí sim, é um paradoxo. Ele fez um parecer dizendo que o que ‘‘está se tombando é um espaço, porque é um espaço sagrado do teatro. Em toda transformação terá que ser mantida essa coisa do teatro. Não é tombar pra virar um museu, por exemplo, centro cultural, essas coisas. Teatro. E meio que dizendo, admitindo a possibilidade de transformação desse espaço a partir do tombamento. Para não engessar. Ele mesmo sabia que precisava da liberdade para ser transformada uma obra, que ele tinha feito o projeto. Porém, isso leva ao Condephaat ignorar o que está construído lá. Como ele tombou antes da obra, do projeto da Lina e meu, é invisível o que está lá. Isso é uma estratégia perversa. Porque não é verdade, isso. Eu falei com o último presidente, que é nosso amigo e ele falou “Não, não existe… o que existe aqui pra gente é o que está escrito aqui no tombamento”. Eu falei: “Mas existe lá, não é agregado?” Não é possível que você não agrega, aprovou a reforma. A perversidade está a muito tempo aí. Não é só Bolsonaro, não. Agora, em 2010, tombou tudo.

VL: Agora consagrou, mas antes disso estava tenso.

EE: Então o Iphan (3) tombou imaterial e materialmente. Colocou o Teatro no Livro de Belas-Artes. É isso que chama, não é? Um livro que diz que a obra de arquitetura é uma obra de arte e está inscrita no livro. Isso melhorou a situação. Outra.

Jardim do futuro
Foto Felipe Ribeiro Pires

FP: Bom, então vamos pra próxima. Agora eu estou olhando aqui o questionário, até porque já teve coisas que já foram. Estou reposicionando aqui. Bom, quando iniciaram a obra do Oficina, do seu projeto com a Lina, o Teatro já havia sido tombado e o terreno desapropriado. Então, não havia mais a ameaça do Sisan comprar o imóvel do teatro. Então de que forma você e a Lina enxergavam as influências do grupo imobiliário na região? E quais eram as ameaças impostas ao Oficina nesse momento?

EE: Na época do projeto, nós basicamente ignoramos o Silvio Santos. Nós fizemos o projeto ignorando o Silvio Santos, ignorando tudo, porque já havia sido tombado e desapropriado. E o projeto executivo foi contratado em 1989, ficou pronto em 1990 e em 1994 que terminou. Em 1993 eles fizeram peça, mas em 1994 que terminou com o Ruy Ohtake, que era o Secretário da Cultura na época. Então nós ignoramos, tanto é que tem um desenho, que você já viu, que eu fiz em 1987, a partir de coisas que eu conversava com a Lina, com o Zé e tudo, que já ocupa o terreno dele como se não existisse Silvio Santos. Que é esse aqui. Posso mostrar?

FP: Por favor.

notas

1
Contrato de Desenvolvimento para Habitação.

2
Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo.

3
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

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Arquitetura, estratégia e projeto

Rafael Schimidt

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