Raul Penteado: Primeiramente, o meu muito obrigado pela sua disponibilidade, em cima da hora, entre seus compromissos de lazer em pleno fim de semana, nesse calor imenso aqui em Brasília. Em algumas entrevistas e palestras, e na própria descrição do escritório presente no site e em algumas revistas (1), vocês colocam que a relação direta com as condicionantes específicas seria o principal mote para os projetos. Relação esta que pode ser com a topografia, orientação solar ou orçamento da obra. Eu gostaria que falasse um pouco sobre a origem dessa abordagem projetual. Foi na universidade, foram professores, foi alguma leitura, foi a observação da obra de alguns arquitetos? O que você poderia dizer a respeito disso, das obras indivisíveis das condicionantes e contextos?
Daniel Mangabeira: Raul, ninguém nunca nos fez essa pergunta. Da universidade não foi, apesar de termos tido bons professores, grandes professores, não fomos formados por professores que atuavam na construção. Atuavam muito na teoria, grandes professores, como a Silvia Fischer, a Cristina Jucá, mas não tivemos nenhum arquiteto de obra, a não ser arquitetos quase aposentados, como o Marcílio Mendes Ferreira, que é autor dos edifícios residenciais mais bonitos da cidade, mas que já não estava tão presente. Então, não houve uma sequência, talvez, de projetos que indicasse para nós um certo norte a respeito do que poderíamos fazer. Tanto é assim, que eu acho que isso é reflexo do que consideramos a parte mais interessante da nossa produção, que é a de dez anos para cá.
Então, acho que talvez esses treze anos, dos vinte e três anos que temos juntos, tenham sido de formação pessoal, de uma observação do que fazíamos mesmo, e de leituras, e de viagens etc. Eu fiz mestrado fora, o Matheus fez mestrado fora, em projeto na Bartlett, numa abordagem completamente diferente do que a gente tem no Brasil. Então, a bagagem que ele trouxe era quase que impossibilitada de usar no Brasil por questões técnicas e econômicas. E eu também quis promover uma abordagem totalmente diferente, porque eu fiz em teoria. Então, eu fui para Londres, fiz em Westminster, mas não fiz em projeto de arquitetura, não queria fazer. Então, essas duas abordagens completamente diferentes podem ter aberto os nossos olhos para alguma coisa que é muito pragmática a respeito da nossa própria produção.
Costumamos dizer que fazemos arquitetura de adequação. Adequamos todos esses agentes que estão contidos no processo de projeto antes da construção e durante a construção. Então, quando a gente lida com clientes de classe média, média alta, que é a nossa faixa de clientes, a gente tem que, de certa forma, extrair o melhor possível com o mínimo de recursos. E essa necessidade que tínhamos de olhar o ambiente antes de pensar o projeto passa por olhar o ambiente onde ele vai ser construído, ou seja, como ele pode ser construído, por quem ele pode ser construído e para quem ele pode ser construído. Tanto é que todos os nossos projetos foram construídos. Talvez tenhamos apenas um ou dois que não foram construídos. Temos alguns projetos que não foram construídos, mas que não têm relação com o projeto em si. Tem, por exemplo, um cliente que faleceu, um cliente se mudou…
Há um pragmatismo em todos os sentidos. Tem um livro, não vou lembrar o nome do autor agora, mas ele fala de dieta funcional. E essa dieta funcional a gente usa muito nos nossos projetos. É uma dieta de função. Tem função no projeto? Não tem função? Então tira. Então, essa pergunta de “por que” e “para que” fazemos o tempo inteiro na hora de projetar. E isso tem a ver com o entorno. Quando se coloca o entorno, não é só o entorno físico, é o entorno do cliente. Ou seja, quem é que está envolvido com esse cliente? É um cliente daqui do Brasil? É um cliente de fora do Brasil? Então, que tipo de demanda esse cliente coloca? Há, obviamente, um composto territorial muito grande dentro do nosso trabalho. E aí, nesse sentido, eu digo que Brasília é uma influência muito grande. Então, esse contexto histórico da cidade também influencia a nossa produção. Há também no nosso escritório uma curiosidade muito grande pela arquitetura latino-americana, como contexto geográfico, não necessariamente histórico. O nosso contexto latino-americano não é histórico como o europeu. É um contexto geográfico. Então, esse contexto geográfico também é importante dentro do que a gente acredita como sendo possível. A arquitetura que é feita na América Latina, de certa forma, reflete muitas vezes as condições climáticas, culturais, tecnológicas. Então, de um tempo para cá, a gente tem adquirido essa curiosidade de olhar o que a arquitetura latino-americana está produzindo. Quando você fala a respeito do contexto, e quando a gente coloca o contexto, não é só o contexto que está ao lado do terreno. É o contexto de tudo que envolve aquilo. Agora, quando isso começa? Não tem um tempo. Foi realmente um processo. Eu não sei te dizer quando foi que a gente começou a prestar atenção nisso. A gente sempre escreve a respeito dos projetos. Sempre. 100% das vezes que a gente faz, a gente escreve. Até para publicar. Se você olhar a nossa publicação de Instagram, no site, sempre tem um texto. O mínimo, que seja. É bom pensar por que a gente fez aquilo. E aí, de repente, você começa. É claro que esse texto que está no site, por exemplo, não é um texto que a gente escreveu aqui agora. A gente foi fazendo esse texto ao longo dos anos. Então, vamos analisando o texto e melhorando o texto.
RP: Daniel, ainda dentro desse assunto, mas tratando especificamente agora de algumas obras. A Casa Cavalcante parece perfeitamente integrada na paisagem, a partir da escolha da cor da estrutura. Como surgiu essa ideia de integrar esta obra à paisagem a partir da cor?
DM: Eu vou ser bem sincero com você. A cor não foi só uma demanda relacionada à paisagem. A justificativa da cor era, inicialmente, desassociar a estrutura metálica do que a gente costumava fazer: cinza, naquela linguagem mais dura… Então, já queríamos colocar uma cor na estrutura. É muito simples. A escolha da cor rosa veio por causa disso. Primeiro, por causa da paisagem. O cerrado, na época da seca, ele é alaranjado, ele fica marrom. Você deve ver ali (aponta para a paisagem através da janela do escritório). Olha, todo o terreno é marrom. Então, você não vê verde. Só que, ao mesmo tempo, na época da chuva, é muito florido. O cerrado tem essa característica, em que agora você vê os ipês, você vê essa explosão de cor acontecendo. O rosa veio disso, atrelado a dois quesitos que são interessantes: a esse céu rosáceo que a gente tem no cerrado durante o finalzinho de tarde e também ao fato de serem duas mulheres as donas da casa. De maneira contrária ao que rosa é feminino e azul é masculino, existiu ali, sim, um reforço do rosa como um aspecto delicado. E, nesse sentido, como característica feminina.
Então, houve esse respeito e essa abordagem foi, de certa forma, leve, assim como a própria estrutura da casa, feita com o perfil mais barato disponível. E aí eu vou entrar um pouquinho no quesito da escolha da estrutura. Porque a casa foi feita em um terreno muito distante de qualquer centro urbano. Estamos mais ou menos a uma hora e pouco depois de Cavalcante, numa estrada de terra que, em época de chuva, só se acessa com [pick-up] 4x4. Então, é de um acesso nada fácil. Todo o material utilizado ali tinha que ser possível de ser transportado num caminhão que se chama caminhão toco, que é um caminhão pequenininho. O tamanho das peças, o tamanho da telha, tudo isso definiu a forma da casa. Atrelado a isso, é um clima muito quente. Digamos assim: em doze meses, temos oito meses de um clima muito quente e quatro meses de um clima ameno. Então, por estar num centro de um platô cercado de montanhas, uma chapada, um chapadão ao lado, é um clima realmente muito… não vou dizer insalubre, mas é muito quente. A água, por exemplo, dos rios, quando a gente entra, a água é quente. Diferente do que se vê muito na chapada. Então, por que a gente pensou essa estrutura pré-fabricada? Primeiro, por causa da dificuldade de mão de obra local para uma construção. Então, a estrutura pré-fabricada é rapidamente montada. Foram três dias de montagem dessa estrutura inteira. E segundo, porque, fazendo essa casca estrutural e cobrindo já com a telha sanduíche, a gente fez com que os trabalhadores trabalhassem à sombra. Isso também é muito mais confortável para quem constrói. E foi uma coisa que eles não sabiam. A gente também não falou com eles que ia ser assim. Foi uma experiência bem bacana quando íamos visitar a obra e eles: “Cara, é muito bom trabalhar aqui, meu Deus! Temos que fazer todas as casas assim agora”. Porque é muito quente. Não, você não imagina. É muito. Então, por isso, é tudo ventilado. Por isso tem tela em todo lugar. Nos dois sentidos da casa, tanto por cima, como pelo lateral, tem proteção solar. Por isso aquela cobertura é muito maior do que a projeção da casa. Você tem um brise de eucalipto, né? Que permite a ventilação constante, mas protege do sol poente maior do que no sol nascente. Porque você tem a visão da muralha, digamos assim. Então, foi uma casa muito difícil de ser construída, mas muito rápida. Não, muito difícil de ser construída, mas muito prática nas soluções. É uma casa off-the-grid, ou seja, não tem energia, não tem esgoto, não tem água, não tem nada. É tudo solar, sem qualquer fornecimento, com fossa ecológica.
RP: É uma casa de final de semana?
DM: É de final de semana. Durante a pandemia elas conseguiram morar lá durante um tempo, porque tinha internet via satélite. Mas não tem telefone, não tem sinal de nada, nada, zero.
Gostoso, desintoxicante, né? Inclusive elas tiraram o wi-fi. Agora só tem o telefone via satélite.
RP: Nas casas Morrone e Aresta, ao mesmo tempo em que há uma relação direta com a circunstância, com o entorno, com a orientação solar das obras, há um aspecto escultural, que lembra muito, ou que evoca na memória algumas arquiteturas internacionais, ibéricas ou portuguesas. O que você teria a dizer a respeito disso?
DM: Japonesas. A Casa Morrone tem uma relação com esse vazio. A maquete está ali em cima.
É aquela lá em cima. Tem uma relação com o vazio, que é muito presente, que colocamos como referência para a cliente. Tem uma relação com a arquitetura portuguesa, mas não tem uma poética aparente, sabe? Mais para o lado pragmático. Você tem, ao lado esquerdo, uma casa que rompeu irregularmente o gabarito. O gabarito é gigante, a casa é enorme. Você tinha a pré-existência de um pequi, que é uma árvore protegida, e você tinha uma outra condicionante que é distante, que é a vista para a ponte dos arcos, que é a Ponte JK. Então, a abordagem foi muito prática. Tinha outra questão envolvida também, que a cliente é relativamente conhecida. É uma jornalista, é a Giuliana Morrone, que é relativamente conhecida aqui. Então, ela queria uma certa privacidade da casa em relação à rua. Só que, ao mesmo tempo, a gente não queria que fosse uma casa murada, porque a gente queria aumentar essa conexão do terreno com a casa. Então, há uma certa transparência nesse volume, que é extremamente fechado, mas é uma transparência que não chega a devassar a casa. Nesse sentido, tem essa relação com a arquitetura japonesa, e no sentido de massa, de materialidade, talvez pela cor branca, esses volumes destacados, tem uma relação com a arquitetura japonesa, da qual somos fãs, obviamente. Tanto é que em nossas obras iniciais, na Casa Migliari, na Casa das Praças, e na própria Casa Aresta, você tem uma relação com a materialidade, com a simplicidade. Os portugueses também têm esse predicado de fazer muito com pouco.
Eu fui agora à exposição do Carrilho da Graça, lá na Casa da Arquitectura, que é emocionante, de emocionar mesmo, de você ficar extasiado com o que está sendo apresentado. E essa força que eles têm, de certa forma, influenciou muito a nossa produção no início do que a gente fazia. Não tanto agora. É interessante, porque a gente talvez tenha mudado. Há, de maneira geral, uma certa hipermetropia que eu vejo da arquitetura brasileira, agora não mais, mas isso existiu muito, essa hipermetropia arquitetônica, de você não ver o que está acontecendo perto, mas olhar lá para longe. Lá na Europa você consegue ver, mas o que tem aqui no Paraguai, no Uruguai, na Venezuela, você não consegue enxergar. Então, essa hipermetropia, de certa forma, a gente transformou em miopia. Lá longe não se consegue ver muito. Vamos tentar olhar mais perto para entender isso.
Então, talvez os caminhos tenham mudado um pouquinho no que a gente faz, mas também tem uma outra relação com produção. Por exemplo, o brasileiro sabe fazer, de certa forma, uma casa, com tijolo de oito furos, rebocado, simples, estrutura de concreto, que não precisa ser espetacular, porque o reboco vai cobrir, vai solucionar o problema de prumo, vai solucionar o problema de forma etc. Então, essa contingência, de certa forma, moldou um pouco as nossas abordagens, porque sabíamos que isso funcionaria bem. Sem muito esforço, sem muito controle na obra. Esse contato com a obra, de certa forma, nos levou a tentar arriscar um pouco outras abordagens: agora temos casas com concreto aparente, com tijolinho, que são processos mais complexos, mais artesanais, não são industriais. E agora temos essa abordagem, essa visão, não no sentido de futuro, mas de ver mesmo a produção através de uma pré-fabricação ainda incipiente, como é o caso da Casa Cavalcante, como é o caso da Casa Palicourea, porque ela é muito sutil dentro desse processo todo, desse tecido. Mas essa pré-fabricação já começa a aparecer em alguns aspectos. Ao contrário da Casa Vila Rica, de uma casa que estamos fazendo, ou da Casa Berezowski, que usam concreto e tijolinho, fruto do trabalho minucioso de um artesão maravilhoso que faz aquele tijolinho. Então, mudou essa abordagem portuguesa limpa, clean.
nota
1
Os projetos do Bloco têm relação direta com condicionantes específicos que podem ir desde a topografia e orientação solar de um terreno ao orçamento e mão-de-obra disponíveis. Os limites impostos por cada programa são encarados como oportunidades de criação. Acima de tudo, o escritório considera que cada projeto pode ser uma poderosa ferramenta de transformação de seu contexto. Descrição disponível no site do Bloco Arquitetos <https://tinyurl.com/4uk739jj>.