Um grupo de arquitetos reuniu-se em 13 de maio de 2011 no Instituto dos Arquitetos em São Paulo para debater a preservação da memória relativa ao espaço do Cine Belas Artes. Com a presença de uma plateia bastante significativa, o debate foi conduzido por Eduardo Carlos Pereira, coordenador do Grupo de Trabalho de Patrimônio Histórico do IAB-SP e contou com a presença de Rosana Ferrari, presidente do IAB-SP; Cecília Rodrigues, professora da FAU Mackenzie; Fernanda Falbo Bandeira de Mello, presidente do Condephaat; Nadia Somekh, conselheira do IAB-SP no Conpresp e professora da FAU Mackenzie; Nabil Bonduki, professor da FAU USP, e Walter Pires, diretor do DPH.
Ainda não há consenso sobre o que é mais adequado a se fazer. A questão é complexa. A esquina do cinema, da Rua da Consolação com a Avenida Paulista, recebeu benfeitorias e investimentos públicos, sendo que até no subsolo do local, há a implantação do cruzamento de duas linhas do metrô. Mas, a ênfase em relação àquele espaço é o valor histórico peculiarmente significativamente. De todo modo, o interesse despertado pelo tema da preservação da memória, por profissionais tão competentes com foco na questão das identidades urbanas ainda não deixa de ser um fato inédito em São Paulo.
Sobre a esquina da Rua da Consolação com a Avenida Paulista, a do Cine Belas Artes, assim como houve um tempo em que a música Sampa eternizava a esquina da Avenida Ipiranga com a Avenida São João, é impossível esquecer a do Belas Artes. Em frente, na outra calçada da Rua da Consolação, estava o Riviera Bar, onde servia Juvenal, o discreto e democrático garçom de bigode fininho. Ao lado do Riviera havia o Ponto 4, um bar, bem em frente ao cinema, cuja calçada, em fins dos anos 1970, era um ponto de aglomeração de estudantes universitários, onde se debatiam temas políticos e de uma pequena, mas significativa multidão, num momento onde tais aglomerações eram proibidas.
Naqueles anos, nem o presidente da República, nem o governador do Estado, nem o prefeito eram eleitos pelo povo. Tinha madrugada com mais de mil pessoas apinhadas entre a calçada e o meio fio. Apesar das temíveis “leis” que proibiam as aglomerações, como, por exemplo, o Ato Institucional nº 5, ninguém deixava de parar por lá. Muitos dos que ali conheci estiveram presos nos porões do Dops (o Departamento de Ordem Política e Social) ou no DOI/CODI. Outros, subitamente, desapareceram para sempre. Era mais seguro ficar no meio da multidão. Ali os universitários e gente que hoje faz parte do governo do Brasil bebiam cerveja ou água e de pé na calçada. Camburões e veraneios pretos, da polícia política “à paisana”, sempre circulavam ao redor. Havia os dedos-duros (da polícia política) sempre a espreita “em busca de trabalho” e o problema maior era quando decidiam “criar condições para um novo trabalho” ou seja; incriminar (quase sempre em falso) alguém com barba, cabelos longos ou menina de tranças e jeans, por “subversão e terrorismo”. E estes “sumiam”, eram presos no meio da noite sem chance de defesa, sem cometer crime algum.
Ninguém sabia muito bem quem era quem. E o Cine Belas Artes exibia em seus luminosos os títulos de filmes de Luis Buñuel, O discreto charme da burguesia, de Alain Resnais, Ano passado em Mariembad, de Ingmar Bergman, O silêncio, de Glauber Rocha, Deus e o diabo na terra do sol, ou do cinema novo, com cenas bucólicas da caatinga inerte e desesperançada, como o São Bernardo de Thomas Farkas. Eram tempos perigosos.
Bem sabemos que São Paulo não é uma cidadezinha. É uma metrópole universal, mundial, um cosmos com gente em trânsito de todos os lugares. E que influencia o mundo inteiro. Não fossem os eventos que testemunhei naquela esquina, com certeza, a vida em nosso planeta hoje seria um pouco pior, para não dizer muito, mas muito pior! Muitos dentre aquelas mil pessoas aglutinadas ali nas noites da semana não eram completamente indiferentes à Guerra no Vietnã, nem aos assassinatos no Camboja. As notícias da Europa dividida por fronteiras armadas e a chamada “Cortina de Ferro” não saiam das conversas e preocupações. A ameaça do fim do mundo ou da deflagração de uma guerra nuclear entre as duas superpotências nunca sumia por completo das noites insones dos presentes. Ninguém estava certo de haver um dia seguinte. Lembro quando os letreiros luminosos do Cine Belas Artes anunciavam o filme-documento Corações e mentes e da cena capturada ao vivo do vietnamita sendo fuzilado a queima-roupa por um soldado com um tiro na cabeça. Na tela, o sangue dele jorrava para o alto, como uma fonte. Impossível esquecer os que de algum modo morreram por nossa sorte. Choro quando me lembro.
A memória humana é algo tão volátil. Portanto, penso que devemos fazer valer aquela esquina de São Paulo em memória de alguns momentos felizes que, a duras penas, de qualquer modo conseguimos desfrutar. Eram tempos terríveis. O que será posto no lugar dos letreiros luminosos do Cine Belas Artes? Será pelo menos de igual importância? E se por acaso, no futuro algo tenebroso, assim, como o que ocorreu venha a acontecer novamente? Quem pode garantir que a memória de tudo o que se passou será suficiente em nossas mentes e na dos que nos sucederem para que a história de horror do passado não venha a se repetir?
Relembro-me jovem, com o copo descartável de cerveja na mão, e no outro lado da rua os letreiros do Cine indicando que “O sonho ainda não havia acabado”, embora tudo levasse a crer que o futuro nos reservava apenas outro mandatário uniformizado, “mão de ferro”, com seus ajudantes de ordens, profissionais da tortura e da intimidação. E o nosso dinheiro de então, que nada valia sob aquela inflação de 120% ao mês. Salários que compravam nada. Tudo se desvalorizava tão rápido! A própria vida, parecia não ter muito valor naqueles anos! E ai de quem realmente se manifestasse em oposição. E o Cine Belas Artes ali a exibir filmes de conteúdo político. Mesmo cortados, censurados. Alguma coisa sempre conseguia furar o cerco e aparecer iluminando as noites na nossa frente!
Naqueles tempos, não fazia muito que Martin Luther King havia sido assassinado, a Ku Klux Klan ditava regras racistas. Vindas da Argentina, ouvíamos notícias que jovens e universitários estavam sendo jogados vivos de aviões militares em alto-mar.
Sinto certo orgulho quando cruzo a esquina da Rua da Consolação com a Avenida Paulista e ainda vejo os luminosos (mesmo apagados) do Cine Belas Artes diante de mim. Quando penso, sem saudosismo, sobre o futuro do qual nós de fato, nos livramos. Quando me lembro da persistência, da teimosia, sim, eu me sinto bem. Mas, endosso que não podemos deixar de agradecer “aos mortos por nossa felicidade”, e nem a importância daquela esquina cuja memória é patrimônio histórico não somente da cidade, mas de todos. Há inúmeras formas de preservação que podem ser sugeridas. Sem dúvida, vale a pena debatê-las.
sobre o autor
Ricardo Vaidergorn é arquiteto,urbanista e mestre em literatura pela FFLCH-USP.