As ruas do Rio: entre o público e o privado
Andando pelas ruas de Copacabana é interessante notar como o espaço da rua é utilizado, pois “há uma diversidade de indivíduos, grupos e formas de apropriação, neste cenário, que é para ser vivenciado, onde todos fazem papel de ator e espectador” (1). Nesse espaço urbano de Copacabana dentre outras coisas, o que chama atenção é a proximidade com a praia. Embora o Rio seja uma cidade rodeada por mares e montanhas, a praia de Copacabana, sempre foi uma referência, por ser um lugar de grandes polifonias. É o lugar das turmas, de todas as idades, de todas as procedências, nacionais ou estrangeiras; dia e noite encontramos pessoas nas ruas. Copacabana é um bairro que dorme pouco! E é essa uma das características que faz do bairro um dos lugares mais procurados por pessoas desacompanhadas, que vêm em busca de companhia e de um bom bate-papo.
Copacabana é um bairro, agitado, frenético e jovial que convive com prédios antigos, inumeráveis idosos, o que impregna com certa lerdeza melancólica, e é esta ambivalência do cotidiano junto a essa paisagem tropical difundida pelas mídias nacionais e internacionais, que faz de Copacabana um dos bairros mais carismático do Rio de Janeiro. O bairro, em verdade são duas praias: Leme e Copacabana, que ocupam uma extensão de 4,15 km.
Frequentada tanto de dia quanto à noite, a praia possui quiosques, ciclovia, bicicletário, postos de salvamento com chuveiros e sanitários, hotéis, bares e restaurantes. Além de contar com dois Fortes Militares, um em cada extremidade, com vistas panorâmicas e abertos à visitação. Contudo, é esta polifonia do bairro que em vez de criar territórios delimitados, como existiram décadas anteriores aos anos 80, acabam criando espaços que não conservam uma identidade.
Uma das questões que define uma paisagem urbana é não só sua arquitetura, suas vitrinas, mas o movimento das pessoas que ocupam esses espaços, com suas roupas, seus penteados, suas conversas de padaria, de botequim, e de calçadas. A apropriação dos espaços públicos pode definir determinado espaço, por exemplo, nos bairros do Rio que têm calçadas, onde as pessoas cruzam com as outras, sejam andando, correndo, ou mesmo passeando, configuram um tipo de relacionamento social diferente daquele que encontramos na Barra da Tijuca, onde a ausência das calçadas tipificam de outra maneira os encontros pessoais ou sociais. É a qualidade de um espaço que determinam os tipos de relacionamentos entre as pessoas, assim, é a conformação urbana um dos fatores que caracteriza a forma e o tipo de uso que o espaço adquire. Assim, o que determina se o espaço é público ou privado é o uso que se faz dele. Mesmo que um espaço seja destinado a um fim específico, nem por isso desempenhará a função para a qual foi construído. O tipo de uso ou o não-uso serão determinados pelos valores da população que o utiliza.
No Rio de Janeiro, a distinção entre espaço público e espaço privado, é um tanto diferente, não há uma separação entre o uso dos espaços da rua (públicos) e os espaços privados, pois na cidade, e muito em Copacabana, as ruas foram sempre espaços privados; isto é, o carioca sempre fez da rua uma extensão da casa, seja através de encontros com os vizinhos, com desconhecidos; festejos particulares comemorados nas ruas ou então nas praias; brigas e desavenças amorosas ou não que sempre saíram da esfera do privado e chegaram às ruas. Há uma mistura promíscua que iguala e nivela as possíveis hierarquias simbólicas dos espaços urbanos.
Na sociedade atual – a interculturalidade é uma questão que absorve quase todos os espaços de relacionamentos entre pessoas de diferentes culturas – se repensa o uso destes espaços em função da utilidade econômica, e, portanto, estes são apropriados de maneira desigual pelos diferentes elementos da sociedade. Para João do Rio, “a rua é um fator da vida das cidades; a rua tem alma! E mais, a cidade fala através das suas ruas. Estas são seres vivos, dotados de personalidade, algumas austeras, outras malandras, quase todas misteriosas”, e, para outros, pode ser o lugar das brincadeiras, “do lazer, traduzido por bares, cafés, restaurantes e teatros”, mas também, dos encontros e da emoção.
As ruas do bairro de Copacabana oferecem uma miscelânea de estilos, principalmente de estilos de vida e uma mixórdia de tipos humanos que criam no imaginário social sobre o bairro e sobre a cidade, permissividade, luxúria e atraso. As atividades na rua representaram marginalidade e exclusão, por oposição ao lugar da casa, lugar mais resguardado e de refúgio. No Rio, principalmente em Copacabana, como já foi dito, essa lógica começou a mudar, instituindo o lugar da rua num lugar seguro, onde as pessoas encontram outras para conversar nos botecos da esquina e para não ficarem sozinhas.
A solidão é uma das consequências mais dolorosas do excesso de individualismo, do crescimento e urbanização das grandes cidades. A extroversão popular no Rio responde historicamente à disponibilidade de espaços naturais abertos (a praia, a floresta, etc.), à exiguidade e esqualidez das moradias, à tradição de conquistar a subsistência em ofícios de rua, à instituição do compadrio e do cultivo de redes de vizinhança, à amenidade do clima tropical.
Desde o século XIX que o Rio de Janeiro se torna uma cidade que comporta experiências pessoais, sociais e culturais de toda ordem, que se por um lado facilita a identificação de sujeitos, por outro lado, cria novos sujeitos, que compartilham de um mesmo imaginário social sobre o espaço urbano e de uma mesma identidade. Muitos são os contrastes encontrados nessa cidade plural, fronteira entre o local e o global, entre o tradicional e o moderno, e são estes contrastes que vem nos permitindo visualizar alguns códigos de aproximação entre as pessoas, como uma maneira própria de ser.
A primeira lenda que se conhece sobre o bairro de Copacabana conta que duas baleias tinham encalhado na praia – há controvérsias – no final de agosto de 1858. E que o Imperador D. Pedro II junto á sua comitiva se deslocou até a praia, para vê-las. Os mais ricos seguiam de coches, puxados a cavalo, e levavam um grande farnel barracas para se acomodarem. Outros iam a cavalo, ou mesmo a pé. As baleias não estavam mais lá, apesar disso, quem ficou na praia divertiu-se muito, num piquenique que duraram três dias e três noites. Mas foi neste período do monarca D. Pedro II, conhecido como o Segundo Império, que se iniciou à construção de um ambiente cultural “carioca”; consagrando a imagem de nação brasileira fruto do diálogo entre elementos da tradição lusitana e outros da cultura local. Havia um projeto civilizatório em andamento de base territorial e material deste Estado monárquico que se representava através de elementos tropicais.
A modernidade carioca instalou no cotidiano da cidade notáveis mudanças principalmente as de uma nova “temporalidade”, uma maior rapidez nos deslocamentos no dia-a-dia das pessoas; os novos comportamentos visavam acompanhar esse novo ritmo, repercutindo na maneira de vestir, de andar nas ruas, no incremento de novas práticas esportivas, em novas formas de entretenimento, com danças e músicas ritmadas, a importância do rádio e do disco e, por fim, mas não menos importante, a popularização do cinema.
No início do século XX, a urbanização da cidade do Rio, influenciada pelos efeitos barrocos dos monumentais “Boulevard Haussmann”, abriu caminho para outra modernidade que tomava a direção da Zona Sul da cidade, mais precisamente, Copacabana. O “bota abaixo” daquele período foram às inúmeras demolições que não deixavam quase nenhum vestígio da cidade do passado, e transformou o bairro de Copacabana naquilo que este acabou se tornando, símbolo do próprio Rio de Janeiro.
Nas chamadas “capitais culturais” mapas são traçados apontando para lugares e bairros que se tornarão centros modernos da cidade, com vitalidade artística, força política e econômica, inovando os estilos e os comportamentos e que variarão conforme as estéticas da época. O Centro do Rio chamou a atenção como local do modernismo afrancesado dos 1900; a Lapa, bairro estritamente familiar (séc. XIX), tornou-se, por volta dos anos 20, lugar da boemia, do “malandro”, das prostitutas e dos sambistas; e a Copacabana dos anos 50 se transformou numa versão estilizada da modernização à americana, fonte do consumo, de uma boêmia de classe média, de um estilo de vida com novos valores, cuja geografia se mantinha nos limites da orla da praia de Copacabana, sem chegar ainda a Ipanema. Capitais culturais são aquelas cidades que recebem grandes fluxos de populações migrantes do campo ou de outros recantos, o que aumenta o crescimento demográfico da região; geradores de tensões e contradições com os antigos habitantes, aqueles se vêem influenciados pela mentalidade, maneiras e estilos de vida da nova cidade. Onde mapas são traçados apontando para lugares e bairros que se tornarão centros modernos da cidade, com vitalidade artística, força política e econômica, inovando os estilos e os comportamentos e que variarão conforme as estéticas da época.
Com efeito, a Copacabana dos anos 1950 foi o retrato do novo e do moderno, influenciado pelo cinema americano, o rock`n roll e a cultura de massas. Tornou-se local de empreendimentos imobiliários em que das formas arquitetônicas aos materiais de construção tudo se transformou rapidamente (2). Reflexo do boom imobiliário especulativo, o bairro apenas algumas décadas depois sentiria o quão a falta de planejamento tinha sido inadvertida na esteira de desastrosas consequências decorrentes do processo de urbanização da cidade (3).
Era o governo do presidente Juscelino Kubitschek, que construiu Brasília, mudando a capital brasileira para o centro-oeste do país. Uma década em que imperou o otimismo nacional, em consequência de altos índices de crescimento econômico, do slogan “cinquenta anos em cinco”, dos incentivos à indústria automobilística, e de privilégios da burguesia. Neste contexto, Copacabana funcionou como a imagem da “cidade” heterogênea e cosmopolita, que “vira displicentemente as costas ao resto do país”. Um bairro-cidade dominado por uma burguesia voltada para o consumo, sonhando com um “estilo de vida”, baseado no “glamour”, num “chic” duvidoso – um estilo sem modelo predefinido, que se tornaria o protótipo do “Copacabana way of life” (4).
Naturalmente, novas construções abriram espaços para novos habitantes, que, impulsionados pela propaganda do “morar como gente bem”, expressão utilizada na época como referência às pessoas mais favorecidas economicamente, buscavam a modernidade a todo custo. O bairro, portanto, correspondeu a um novo modelo de convivência social, cujo cenário era por excelência, a praia, reflexo do clima descontraído e romântico de um “musical Hollywoodiano”, mais próximo do simbólico do que do real.
nota
1
AMADA, Ana Carolina Fackes. A alma da cidade. Personagens urbanos de Florianópolis. Minha Cidade, São Paulo, n. 05.050.02, Vitruvius, set. 2004 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/05.050/1998>. A expressão foi usada para descrever o centro histórico de Florianópolis, mas é adequada a nossa descrição.
2
CARDOSO, Elizabeth D. et al.. História dos bairros: memória urbana – Copacabana. Rio de Janeiro. João Fortes Engenharia/Index, 1986.
3
ARRUDA, Phrygia. Op. cit., 2002.
4
PEREIRA, S. A. Copacabana sem pecado. A invenção da Zona Sul carioca. Concurso de Monografia. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura. 1993.
sobre a autora
Phrygia Arruda é Professora Associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia. Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Memória Social / UNIRIO (2007/2008), com a pesquisa: "O jeito carioca de ser/um patrimônio cultural intangível?; Pesquisadora sobre os patrimônios culturais e paisagísticos do Rio de Janeiro.