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português
Na sua reabertura depois de dois anos de interdição, as belas marcas do velho Vale Anhangabaú que impregnam os edifícios, a Praça Ramos de Azevedo, a Galeria Prestes Maia e a Praça do Correio são assombradas pela pobreza e abandono dos moradores de rua.
SAMPAIO, Celso Aparecido. Anhangabaú. Uma praça nova assombrada pela velha pobreza. Minha Cidade, São Paulo, ano 22, n. 253.01, Vitruvius, ago. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/22.253/8191>.
Olha as pessoas descendo, descendo, descendo
Descendo a Ladeira da Memória
Até o Vale do Anhangabaú
Quanta gente!
Vagando pelas ruas sem profissão
Ladeira da Memória, Grupo Rumo
Hoje, domingo, dia primeiro de agosto, visito o novo Vale do Anhangabaú me deslocando até o local de automóvel. Depois de dois anos fechado, com investimento na casa dos R$ 105 milhões e entrega adiada por sete vezes, o vale reabriu ao público no último domingo do mês de julho.
Entro no centro antigo pela Praça da Sé, tomada por pessoas em situação de rua. O logradouro também atrai a visitação pública, com seus espelhos d’água, chafarizes e a praça seca defronte a catedral, onde fica o marco zero da cidade ladeado por palmeiras imperiais – marco que mede as distâncias em relação ao centro. A praça está hoje tomada por pessoas sem casa, que se acomodam como podem para se esconder do frio e da chuva, algumas nos acessos da estação do metrô.
Sigo para o Pátio do Colégio, outro ponto de atração a visitação pública onde mais pessoas em condição de rua se acomodam. A seguir, pela Boa Vista – rua onde particularmente gosto de andar mesmo que a calçada seja estreita – chego ao Largo São Bento, onde os decks de madeira do programa Centro Aberto ajudam a aquecer as inúmeras pessoas que se alojam sobre sua estrutura. Estaciono o carro na Rua Libero Badaró em frente ao Edifício Martinelli, onde mais pessoas em situação de rua ocupam o térreo do prédio e a Avenida São João, no trecho entre a Libero Badaró e o Vale do Anhangabaú.
O Vale hoje se transformou em uma grande laje em cota mais elevada que a anterior, com bancos, estares e canteiros guardando uma vegetação ainda a se desenvolver; ao centro, linhas de esguichos distribuídos regularmente, alguns quiosques e escadas de acesso conectando a rua Formosa. Poucas pessoas utilizam o espaço: pais com crianças, pessoas cruzam o espaço, casais olham as exposições e o amigo professor Fabio Mariz dá uma entrevista – não ouso incomoda-lo, afinal iria distraí-lo.
Olho com mais atenção: talvez haja mais pessoas contratadas pela prefeitura do que visitantes; para entreter os usuários, um grupo de palhaços encenam brincadeiras com os passantes enquanto funcionários controlam os acessos e cuidam do cercado feito com cavaletes metálicos e sinalizado com placas indicativas de entrada, saída e saídas de emergência.
Balanços pendurados a partir do viaduto do Chá estão em um segundo cercadinho exclusivo, com controle de entrada e saída. Confesso a tristeza que me acomete, não sinto vontade de usar o balanço ou de desfrutar daquele lugar; um sentimento de não pertencimento me abate. Observo ao redor e me vejo cercado por muitas pessoas, andando a esmo, ou sentadas nos bancos, ou deitadas em barracas cobertas por plásticos. O Vale se assemelha a uma ilha cercada por cavaletes metálicos, com uso controlado e com prédios vazios ou ociosos em seu entorno, talvez pela pandemia, quem sabe pelo abandono.
Anteriormente, a falta de ligação entre o Vale e as ruas lindeiras e seus edifícios era um problema flagrante; hoje, os novos quiosques implantados com a reforma e ainda sem uso criam uma barreira. Quem sabe no futuro ajudem a estabelecer uma relação com os prédios, definindo um caminho de caráter urbano e local, mas podem se transformar em fundos inóspitos voltados para estas ruas.
Os chuveiros estão desligados, a manhã está muito fria. Com o grande espaço ainda desconectado dos espaços de cultura e a Praça das Artes fechada, são nas duas ruas paralelas e longitudinais que acontece a fruição e a ligação entre os pontos significativos e de uso cotidiano, como as estações de metrô.
As grades de isolamento não permitem os deslocamentos longitudinais e estabelecem uma divisão clara entre espaços segregados: a praça Ramos, a laje e as ruas lindeiras. Aberta, a Praça do Correio está cheia de vida, com os skatistas se divertindo ali e também nas escadarias que ligam a Libero Badaró ao grande Vale.
Para uma avaliação mais aprofundada, melhor aguardar uma ocupação efetiva, sem cavaletes, sem cancelas, sem entradas e saídas, sem hierarquia. Mas o que vi me faz lembrar o mau agouro presente no significado de Anhangabaú na língua tupi: “rio ou água do mau espírito”. Da minha parte, gostaria que na cidade toda a população pudesse ter espaços públicos de qualidade para usufruir e que as pessoas sem casa tivessem casa para morar.
nota
NA – Agradeço a amiga Luciene Covolan pela sugestão de usar como epígrafe a música “Ladeira da Memória”, do Grupo Rumo.
sobre o autor
Celso Aparecido Sampaio é arquiteto e urbanista pela FAU Mackenzie, 1988, mestre pelo IAU USP São Carlos, 2000 e doutorando pela FAU Mackenzie. Foi Diretor do Instituto dos Arquitetos do Brasil Seção São Paulo (2010-2011) e como gestor público atuou como diretor técnico da Cohab-SP (2015-2016), diretor de habitação na Prefeitura Municipal de Santos André (2005-2006). Atualmente é professor de Projeto na FAU Mackenzie.