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português
Carlos Eduardo Comas, crítico e historiador de arquitetura, comenta a desventura do Palácio Capanema, prestes a ser vendido pelo governo federal, e o compara em importância simbólica ao Centro Pompidou em Paris.
english
Carlos Eduardo Comas, critic and historian of architecture, comments on the misadventure of the Capanema Palace, about to be sold by the federal government, and compares it in symbolic importance to the Pompidou Center in Paris.
COMAS, Carlos Eduardo. Equipamentos, documentos, monumentos, desgovernos. A desventura do Palácio Capanema. Minha Cidade, São Paulo, ano 22, n. 253.10, Vitruvius, ago. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/22.253/8226>.
O Centro Pompidou vai fechar para restauro, anuncia a imprensa. O governo francês vai pô-lo à venda, com preço de liquidação? Pois parece que não. O Centro Pompidou vale seu peso em ouro. É um equipamento vivo, com museu, cinemateca, galeria de exposições, restaurante, loja, praça na frente. E claro, é atrativo turístico de primeira, para nativos e forasteiros. Tem gente que nem entra, mas usa a escada rolante para desfrutar da vista.
Nosso Palácio Capanema, antigo Ministério da Educação, Saúde e Cultura, também é equipamento vivo, embora vazio para restauro no momento. Tem galeria de exposições, auditório, um andar nobre com afrescos e murais integrados, bibliotecas, Escola de Patrimônio do Iphan, restaurante, loja e praça-com-pilotis que é atalho e encruzilhada. Não precisa entrar no edifício para desfrutar dos azulejos de Portinari, da escultura de Bruno Giorgi ou dos jardins de Portinari. Ah, e tudo o que ali funciona está pagando aluguel de momento.
O Centro Pompidou é documento também, valorizado pelo Governo Francês enquanto testemunho dos anos 1970 em que se projetou, levantou e começou a operar. Máquina metálica concebida por arquitetos ingleses e construída por engenheiros alemães, fala de um certo estado da tecnologia de construir, quando as instalações prediais importavam tanto ou mais que a estrutura resistente, e a ausência de colunas internas traduzia a aspiração a uma flexibilidade funcional ilimitada da arquitetura e podia tomar-se por contrapartida do "é proibido proibir" que as demonstrações de maio de 1968 tinham como lema.
Erguido entre 1936 e 1945, em parte contemporâneo de uma Segunda Guerra Mundial arrasadora, nosso Ministério tem também um quê de brinquedo de armar, mais para bloco de madeira (o proto-Lego) que para peças metálicas perfuradas (tipo Meccano). A estrutura de ponta é em concreto armado, e emprega lajes cogumelo em balanço que incorporam tubulações antecipando os pisos elevados atuais. Os pilares são espaçados o suficiente para garantir uma planta livre com divisórias. A construção leve é exemplo pioneiro de edifício alto com corpo envidraçado protegido por brise-soleil, a expressão popularizada por Le Corbusier, que tomou a ideia dos muxarabis muçulmanos e até então só a tinha esquematizado no papel. O pé-direito folgado se conjuga às janelas guilhotina para permitir ventilação cruzada eficaz por cima dos tabiques divisórios. Original sem dúvida o Ministério, na medida em que ser original é fazer melhor o que outros fizeram bem. É astuto também, porque ladrão de rouba de ladrão tem cem anos de perdão. E ainda oportuno, reivindicação de geração que, cansada de uma vida e arquitetura em tom de discurso patriótico, reclamava uma vida e arquitetura em tom de conversa civilizada. Octogenário, o Ministério documenta a esperança apesar de tudo.
Pode-se dizer que não haveria Centro Pompidou sem Ministério, embora a presença de Oscar Niemeyer no júri do primeiro possa ser apenas acidente. Mas a conexão não se esgota na condição de equipamento e documento. Ambos são monumentos intencionais, marcos memoráveis celebrando, entre muitas coisas, o Estado como coisa pública e comum, instituição que assegura a soberania de um território e promove suas artes e ofícios, técnicas e ciências – cooperando para a criação de um mundo humano mais longevo que a vida do indivíduo, em oposição à mutabilidade do mundo natural tanto quanto à esfera privada da intimidade familiar. Do ponto de vista simbólico, alienar Ministério ou Centro Pompidou equivale a mutilá-los na essência, e atentar contra a cidadania que os fez nascer. Patrimônio da nação, mesmo a passagem de sua titularidade para província ou cidade seria vivenciada como degradação. O governo francês sabe disso muito bem e não lhe ocorre nem torrar o Centro Pompidou, nem rebaixa-lo a órgão departamental.
O Macron pode ser de direita, mas para mentecapto não serve.
notas
NE 1 – o documento “Heritage under siege in Brazil – the Bolsonaro Government announced the auction sale of the Palácio Capanema in Rio, a modern architecture icon that was formerly the Ministry of Education building”, redigido pelo Docomomo Internacional e Brasil, pode ser lido e assinado no link <https://bit.ly/3D7bglQ>.
NE 2 – sobre o tema, veja a série de artigos:
CAU/BR, Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil; et. al. “O MEC não pode ser vendido!”. Manifesto contra ameaça de venda do Palácio Capanema. Drops, São Paulo, ano 21, n. 167.06, Vitruvius, ago. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/21.167/8203>.
COMAS, Carlos Eduardo. Equipamentos, documentos, monumentos, desgovernos. A desventura do Palácio Capanema. Minha Cidade, São Paulo, ano 21, n. 253.10, Vitruvius, ago. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/21.253/8226>.
CURTIS, William J. R. A destruição da memória. Contra a privatização de um importante monumento histórico e cívico. Minha Cidade, São Paulo, ano 21, n. 253.07, Vitruvius, ago. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/21.253/8220>.
DANOWSKI, Miriam. Memória ameaçada. Governo federal continua evasivo sobre o destino do Palácio Capanema. Minha Cidade, São Paulo, ano 22, n. 254.01, Vitruvius, set. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/22.254/8239>.
FRAMPTON, Kenneth. Carta de Kenneth Frampton a Ana Tostões e Renato Gama-Rosa Costa, presidentes do Docomomo International e Brasil. Palácio Capanema em risco. Minha Cidade, São Paulo, ano 21, n. 253.06, Vitruvius, ago. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/21.253/8218>.
HATOUM, Milton. Palácio Capanema. O difícil processo de alfabetização. Minha Cidade, São Paulo, ano 21, n. 253.12, Vitruvius, ago. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/21.253/8234>.
LIERNUR, Jorge Francisco. Lembrete para autoridades sem memória, e sem juízo. O Palácio Capanema não é mercadoria. Minha Cidade, São Paulo, ano 21, n. 253.08, Vitruvius, ago. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/21.253/8223>.
MONTANER, Josep Maria. A venda do Palácio Capanema é um ultraje e uma insensatez. Carta aos arquitetos Carlos Eduardo Comas e Abilio Guerra. Minha Cidade, São Paulo, ano 21, n. 253.09, Vitruvius, ago. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/21.253/8225>.
ROLNIK, Raquel. Feirão de um sonho de país. Palácio Capanema à venda. Minha Cidade, São Paulo, ano 21, n. 253.03, Vitruvius, ago. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/21.253/8204>.
SCHLEE, Andrey Rosenthal. Oportunidade perdida (mais uma...). Ignorância e ignorância assolam o Palácio Capanema. Minha Cidade, São Paulo, ano 21, n. 253.11, Vitruvius, ago. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/21.253/8235>.
TOSTÕES, Ana; COSTA, Renato da Gama-Rosa; INTERNATIONAL, Docomomo; BRASIL, Docomomo. Patrimônio sob cerco no Brasil. Palácio Capanema à venda. Minha Cidade, São Paulo, ano 21, n. 253.04, Vitruvius, ago. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/21.253/8216>.
sobre o autor
Carlos Eduardo Comas é arquiteto e professor emérito da UFRGS.