“Decifra-me ou te Devoro, Devora-me que Decifro!”
O Dois de Julho
Palco das batalhas pela independência da Bahia, morada de personalidades ilustres como Castro Alves e Jorge Amado, famoso por sua história boêmia, o Dois de Julho tem como principal característica a sua diversidade humana e de usos.
Situado no centro antigo de Salvador, é hoje um local de encontros, de consumo, de diversão, de subversão, de barulho e caos visual. Acolhe desde a melhor padaria da cidade aos mais populares motéis, além de ser dono de uma generosa paisagem para a Baía de Todos os Santos.
Nele convivem pacificamente velhinhas, prostitutas, espanhóis, chineses, capoeiristas, traficantes, profissionais liberais, universitários, músicos e jovens artistas que, apesar da perda de beleza e importância de outrora, não trocam o Dois de Julho por nenhum outro bairro.
Essa proposta sugere desde a ocupação de ruínas e de alguns vazios por usos que potencializem a atração da população citadina ao bairro, à criação de eixos de conexão com equipamentos vizinhos de grande importância, como o Museu de Arte Moderna da Bahia (restaurado por Lina Bo Bardi), o Museu de Arte Sacra da Ufba e a Praça Castro Alves. A esquematização de um calendário de eventos que promove e intensifica a vida cultural, a diversidade e a vocação do bairro de local de encontro e diversão, seja ela lícita ou ilícita.
Diante dessa multiplicidade de informações e acontecimentos, o Dois de Julho nos convida a conhecê-lo melhor, a mergulhar a fundo nessa mistura de cores, cheiros e sentidos.
Decifrá-lo é se deixar devorar.
Mapeamento dos diferentes usos e concentração de pessoas
Observando que cada componente da equipe tinha uma percepção diferente do bairro, já que conhecia ou freqüentava o Dois de Julho por razões distintas e em horários diferentes, resolveu-se partir para uma análise que permitisse observar, conhecer e descobrir melhor a diversidade que o lugar oferece através da percepção temporal.
Foi realizado um mapeamento do bairro, focalizando os pontos de concentração de pessoas e seus respectivos usos em diferentes momentos do dia (manhã, tarde e noite) durante dias úteis e finais de semana. Buscou-se sempre observar a concentração das pessoas, conseqüentemente, as atrações do bairro. O resultado foi uma surpresa! Percebeu-se que o Dois de Julho vive intensamente em todos os momentos, e o mais interessante é como os pontos se intensificam e se espalham por todo o bairro no decorrer do dia.
Toda a proposta teve como ponto forte potencializar essa riqueza de uso e diversidade que o bairro tem como característica em vários momentos.
As propostas
Convite ao Decifra-me
O largo do Mucambinho, margeado pela rua Carlos Gomes, é hoje um dos importantes acessos ao Dois de Julho. A situação atual mostra uma grande confusão entre veículos e pedestres que, não tendo onde circular, transitam pela pista. A grande maioria das edificações é voltada para o comércio/serviços. Muitas delas têm seus espaços sub-utilizados e estão sem trato, arruinadas pela falta de cuidados.
Para que as pessoas possam se integrar ao Dois de Julho, este quarteirão será trabalhado como uma primeira atração, funcionando como um convite sem descaracterizar o que já existe. Buscou-se então uma permeabilidade dos espaços com a criação de caminhos que percorrem lugares diversos, atraentes ou curiosos até chegar ao Largo Dois de Julho.
O projeto propõe a criação da Rua do Consumo – retirada do trânsito de veículos da atual rua do Cabeça e potencialização do diversificado comércio local – e do Beco das Flores. Estes dois novos calçadões fortalecerão o espaço já consolidado de consumo e revigorarão uma tradição do lugar - o mercado das flores.
O Espaço Tudo, criado a partir da demolição de depósitos hoje vazios, será bastante diversificado. Com espaços para eventos efêmeros (festival das flores, bazares), locais de encontros, bares, lanchonetes, restaurantes e botecos, ele servirá como um lugar de apoio e lazer para muitos que moram, trabalham e passam por perto.
O Largo Dois de Julho
O projeto propõe transformar o largo em um lugar agradável e útil à população. As suas características singulares de riqueza arquitetônica, cultural e boêmia serão fortalecidas, pretendendo inseri-lo na cidade de Salvador e torná-lo auto-sustentável.
Para solucionar o grande problema de trânsito existente, será alterado o sistema viário, impedindo o estacionamento dos veículos ao longo das vias e aumentando assim o espaço dedicado aos pedestres. Serão criados um edifício garagem no largo e outros estacionamentos pelo bairro para atender a demanda de veículos. Para a área de carga e descarga de materiais propõe-se uma plataforma, facilitando o abastecimento do comércio e serviços no centro do largo.
A nova praça permitirá uma melhor relação com os bares, restaurantes e usuários locais pela sua integração com as calçadas. Os novos espaços criados, setorizados por usos, tornarão o largo um lugar especial a ser apropriado pelas pessoas em ocasiões diversas. Assim atividades de rotina como fazer a feira, apreciar a vida alheia, marcar encontros, brincar, fazer compras, jogar dominó, comer acarajé ou estar apenas de passagem, ficarão muito mais agradáveis.
A proposta também envolve a criação de uma fonte/palco permitindo a realização de pequenos eventos. O equipamento proposto para uma fonte luminosa possibilitará a sua utilização como um palco para recitais de poesia, apresentações de artistas locais e outras manifestações propostas ao bairro.
As Iscas
A criação de Iscas através de intervenções suaves, sem agredir esta área densa e predominantemente residencial, procura gerar atrativos não só aos visitantes como também aos seus moradores. Dessa forma, espaços estrategicamente posicionados, no entanto sub-utilizados, se transformarão em áreas que, associadas ao calendário cultural proposto, privilegiam a convivência, a cultura e o lazer.
A Praça das Artes Visuais transformará o terreno vazio em uma grande área destinada às diversas manifestações propostas ao bairro, com destaque para o cinema ao ar livre, seu principal acontecimento. Com funcionamento periódico, a tela de projeção será instalada não impedindo a utilização do mirante com a vista privilegiada à Baía de Todos os Santos.
Em outros momentos, uma arena servirá de palco a apresentações de capoeira, exposições culturais, espetáculos circenses e às brincadeiras das crianças, enquanto outros poderão descansar, apreciando a bela paisagem.
A Praça da Preguiça, situada entre a agitada rua Carlos Gomes e a rua do Sodré, conjugará um estacionamento com uma área de lazer destinada a pessoas de todas as idades, criando um novo acesso ao bairro. Seu posicionamento estratégico, voltado para uma via de grande importância, torna-a uma verdadeira isca para veículos e pedestres, atraindo-os ao Dois de Julho.
Aproveitando a inclinação natural do terreno, o estacionamento em três níveis se desenvolverá na parte inferior, enquanto na superfície uma praça com equipamentos esportivos, bancos, mesas para jogos e parque infantil ajudará a suprir a deficiência de espaços desse tipo na comunidade local.
A Nova Praça Castro Alves e o Parque da Encosta
A Praça Castro Alves no centro histórico e o Museu de Arte Moderna no Solar do Unhão, ambos privilegiados pela vista panorâmica para a Baía de Todos os Santos, são importantes referências histórico-culturais na cidade de Salvador. Pelo grande potencial turístico e manifestações culturais que aí se apresentam, estes dois pólos também se destacam como importantes “iscas” de atração e penetração no bairro Dois de Julho.
Explorando este potencial, propõe-se a recuperação de ruínas e a apropriação de espaços sub-utilizados para a implantação de equipamentos que permitam a conexão:
MAM x Dois de Julho x Praça Castro Alves
A vista privilegiada para a Baía de Todos os Santos é hoje o pano de fundo para o cruzamento de vias de grande fluxo na Praça Castro Alves. Focos de prostituição e drogas em áreas pouco aproveitadas, por entre ruínas abandonadas e habitações informais, dividem o espaço com um comércio ainda ativo e instituições de grande importância.
A proposta de alargamento e desvio da rua do Sodré permitirá o acesso direto ao Dois de Julho através da avenida Sete de Setembro, rua Chile e ladeira da Montanha. O novo sistema viário possibilitará também a ligação da Cidade Alta com a Cidade Baixa para carros, hoje inexistente. A atual Praça Castro Alves terá ligação direta a uma nova praça criada no grande espaço abandonado através de uma passarela. Ela será distribuída em dois níveis diferenciados e abrigará cafés/restaurantes e mirantes para a Baía.
Novos equipamentos são propostos, buscando a valorização e difusão da cultura musical baiana, dando atenção ao Museu de Arte Sacra, instituição quase esquecida dentro do bairro. Propõe-se a recuperação de dois sobrados para a implantação de um centro Cultural com uma escola profissionalizante de músicos, uma biblioteca e livraria especializadas, uma sala de exposições, um Museu da Música e um café no terraço. A escadaria que dá acesso a Cidade Baixa, hoje completamente abandonada, receberá uma pequena arena para apresentações musicais ao fundo dos sobrados da ladeira da preguiça.
A partir do nível inferior da nova praça, uma galeria subterrânea fará a ligação com a ladeira da Barroquinha e a feira de artesanato local será potencializada com a ampliação de novas lojas e ateliers de produção ao longo desta galeria.
A antiga Igreja da Barroquinha, hoje completamente em ruínas, será restaurada para abrigar um teatro com uma sala de espetáculos com capacidade para aproximadamente 400 pessoas.
O Parque da Encosta
O Museu de Arte Moderna e sua extensão, o Parque das Esculturas, localiza-se abaixo do nível da avenida Contorno com difícil acesso para pedestres. No alto da encosta, um hotel com péssimas instalações ao lado de um grande espaço abandonado desfruta da vista panorâmica para a Baía de Todos os Santos.
Através da criação de uma passarela associada a um elevador panorâmico, o visitante do Museu ampliará o seu percurso a um novo parque na encosta com novos atrativos. Bares e mirantes poderão ser o refúgio dos moradores do bairro e de outros usuários que terão estacionamento direto ao parque através da rampa agora revitalizada. O Parque da Encosta se prolonga até o hotel existente, tornando público seus grandes espaços arborizados.
O Calendário Cultural
Com o intuito de humanizar o Dois de Julho e torná-lo referência na cidade de Salvador, foram propostos pólos dinâmicos de atração nos diversos espaços do bairro.
Um calendário cultural foi criado onde cada estação do ano é caracterizada por um grande evento. As festas populares que já fazem parte da tradição cultural e histórica do bairro são destacadas, como o circuito do carnaval e a festa do Senhor do Bonfim, e outros novos eventos são propostos para os espaços projetados:
Primavera |
Festival das Flores (Largo do Mucambinho – Resgate da tradição local); |
Verão | Circuito do Carnaval e encontro de trios na Praça Castro Alves; Circuito da Festa do Senhor do Bonfim; |
Outono | Feira de Frutas e Verduras (Largo Dois de Julho); Feira de Peixes Ornamentais (Gamboa); |
Inverno | Parada Gay (evento que acontece com um circuito equivalente ao do carnaval e que vem ganhando força e expressão a cada ano); Mostra de Cinema (Praça das Artes Visuais); Festival de Fogos de Artifício (Baía de Todos os Santos a partir dos mirantes projetados). |
Aliado aos eventos “âncora” de cada estação, são também propostos para dia e noite do Dois de Julho outros pequenos eventos que igualmente trarão vida e animação aos moradores e usuários do bairro: a Feira de Artesanato, o Balaio Cult, a Feira Junina, as Artes Circenses, a Jam Session, os Recitais de Poesia, os Campeonatos de Jogos de Tabuleiro, as apresentações de Capoeira, assim como exposições culturais de artistas e projeções de filmes nos diversos espaços para este fim.
ficha técnica
Equipe
Akemi Tahara, Juliana Aragão, Manuela Góes, Ricardo Borges, Rômulo da Silveira Filho e Rosa RibeiroOrientadora
Ângela GordilhoCo-orientadora
Paola Berenstein Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia