Revitalização do Setor Cultural Sul de Brasília-DF
Brasília, inaugurada em 1960, concretizou um sonho há muito idealizado, desde meados do século XVIII, quando a ocupação do interior território brasileiro tornou-se uma questão nacional. A construção da capital democrática representava os anseios da Nação, frente ao esperado progresso, na figura de milhares de candangos, trabalhadores pioneiros que vieram dos 4 cantos do país para erguer a nova cidade. Esta desempenharia o tríplice papel de centro político-administrativo, pólo de desenvolvimento da pouco povoada Região Centro-Oeste e base de uma efetiva integração cultural das diversas regiões brasileiras.
Passados mais de 40 anos desde a inauguração, Brasília ainda encontra-se desatada dos anelos do criador-maior Lúcio Costa a respeito da concepção do Setor Cultural da Capital. Apenas recentemente retomou-se o projeto do conjunto arquitetônico, de autoria de Oscar Niemeyer, abrigando um museu, salas de cinema, biblioteca, restaurante, lojas e um centro musical.
Reiterada a importância do complexo, no entanto, a construção do mesmo desconsidera a existência do Edifício Touring Clube, situado próximo ao terreno destinado à Biblioteca Nacional, no Setor Cultural Sul. Projetado em 1963, também por Niemeyer, sua história confunde-se com a saga da construção da própria cidade caracterizando-o por si só, um valioso Patrimônio Edificado, registro de um período da história nacional.
O prédio era destinado às exposições automobilísticas do Clube e ao posto de abastecimento de combustíveis, ainda ativo. Atualmente, face à lenta falência da instituição Touring Clube do Brasil, o edifício apresenta-se abandonado, com poucas atividades, tornando-se um local de alto potencial de criminalidade. Devido à falta de manutenção, o monumento apresenta diversas patologias que indicam uma necessária e urgente intervenção.
É neste contexto que se insere a proposta apresentada para a revitalização do espaço urbano bastante degradado, mas que possui histórico e qualidades justificativas de sua preservação, tendo em vista que está indicado para demolição. A sede do Touring Clube e o posto de combustíveis devem ser transferidos para o Setor de Oficinas e Abastecimento da cidade, local mais apropriado para tais atividades.
O propósito
Anterior a qualquer idéia que viesse a delinear o partido da intervenção era necessário repensar o edifício relacionando-o à sua história no passado e no presente, mas antevendo suas futuras atividades. Originalmente, Lúcio Costa imaginava para aquela privilegiada área um “ambiente adequado ao convívio e à expansão”. Nas suas próprias palavras, no Relatório do Plano Piloto:
“Nesta plataforma onde, como se via anteriormente, o tráfego é apenas local, situou-se então o centro de diversões da cidade(mistura em termos adequados de Piccadilly Circus, Times Square e Champs Elysées). A face da plataforma debruçada sobre o setor cultural e a esplanada dos ministérios, não foi edificada com exceção de uma eventual casa de chá e da Ópera(...)”
A proposta, então, deveria ser pensada sempre respeitando os anseios originais de Lúcio Costa, mas encarando os desafios atuais de Brasília, 43 anos após sua inauguração.
Com a transferência das atividades do edifício, a intervenção propõe uma nova utilização do espaço: a Sede da Casa da Cultura da América Latina (CAL). Esta instituição possui rico acervo incluindo trabalhos de Alfredo Volpi, Tarsila Amaral, Pablo Oliva, Tomás Sánches e tantos outros. Porém, tais obras estão guardadas em depósitos por não terem local apropriado para exposição, privadas da visitação pública. Além do acervo permanente a CAL promove exposições de arte, palestras e cursos difundindo a cultura brasileira e latina para diversos segmentos da sociedade.
Elemento fundamental da revitalização urbana, o intuito maior é promover o rico convívio social através da cultura, resgatando para o espaço de intervenção o propósito da construção da própria cidade — a tríplice função — ligando o centro político(Esplanada dos Ministérios), o pólo de desenvolvimento(Rodoviária, Setores Bancário,Comercial e de Diversões) ao Setor Cultural(CAL/Biblioteca e Museu Nacional), o elo que faltava.
O projeto
Intervenções em áreas que possuem caráter histórico constituem um grande desafio. O projeto deve manter as características originais do edifício mesclando-as com as demandas atuais, sendo imperativo que as novas ações não descaracterizem a obra existente.
Um estudo analisando os problemas e os potenciais da área foi fundamental na definição do partido. A simples criação do anexo, sede da administração da CAL, e restauração do prédio principal não poderia resolver as questões do “isolamento social” do Complexo Touring e nem sequer foi pretendida. Estava claro que os riscos preliminares deviam considerar um aspecto mais profundo da qualidade urbana sustentável: a acessibilidade (reputando uma sustentabilidade que pressupõe o desenvolvimento econômico aliado ao social e inclusivo). O enfoque foi concentrado na condição de um grupo de pessoas diferentes e com dificuldade de locomoção, normalmente excluídas dos espaços da maioria das cidades contemporâneas.
A intervenção, mais do que a concepção do anexo, engloba toda uma área adjacente que reclamava por determinado tratamento. No projeto, esta premissa traduziu-se nos principais acessos criados através de generosas rampas, ligando os Setores Bancário e de Diversões Sul, a Plataforma Rodoviária à CAL. No cruzamento dessas verdadeiras rotas de pedestres gerou-se então, quase que naturalmente, o “espaço de convívio” desejado por Lúcio Costa: a praça, elemento fundamental da intervenção. Logo em frente, foi criado um local para feira de artesanato regional e outra calçada para pedestres conectando a Biblioteca Nacional, promovendo a almejada interação com o Setor Cultural.
A remoção da pequena construção, de estrutura praticamente condenada à ruína, destinada ao posto de abastecimento e borracharia cedeu espaço para a criação de uma grande escadaria e do anexo da CAL. O novo prédio, além da parte administrativa da instituição, abriga áreas para exposições dispostas em rampas circundando todo o volume do auditório. Aqui, novamente, retomou-se a questão da acessibilidade principalmente dos portadores de dificuldade de locomoção, fazendo da própria área de exposição de arte a circulação.
A proposital transparência do anexo resume o caráter lúdico da intervenção. Com efeito, o objetivo é conectar as visuais não só do edifício com o entorno, mas principalmente das pessoas quando da apreciação das obras nas rampas, àquelas presentes na praça e aos transeuntes de passagem pelas rotas. A edificação, então, rende sua imponência à circulação dos pedestres, interagindo no espaço apenas como moderador das visuais, onde a cada passo pelas rampas, transforma-se também a percepção do ambiente em que está inserido – uma nova perspectiva do entorno.
Quanto ao prédio principal do complexo, além do tratamento das patologias detectadas, novas instalações foram propostas para melhor servir aos usos da galeria principal, de bolso e do espaço para as oficinas de arte. Numa mesma linguagem do anexo, a transparência, principalmente do 1º pavimento, foi mantida removendo-se paredes que pudessem bloquear a vista do Setor Cultural Sul e da Esplanada dos Ministérios pela Plataforma Superior Rodoviária (translucidez que Lúcio Costa desejava para a área de acordo com o Relatório do Plano Piloto). Depósitos, salas das oficinas, elevadores de serviço, banheiros públicos e recepção foram projetados num só bloco. O intuito foi concentrar todas as necessárias atividades diminuindo o impacto da intervenção no edifício original. Esse artifício também foi utilizado no prédio da administração da CAL.
ficha técnica
Equipe
Daniel Koji Miike; Joana Alcântara; Rodrigo Biavati
Orientador
Andrey Schlee
Co-Orientador
Oscar Luiz Ferreira
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília