Novo Mercado de Itaqui. Passeio pela Memória
Jorge Glusberg
Espaço e tempo são dimensões complementares da arquitetura da cidade, que não deve ser pensada como imutável, mas como algo que constantemente se refaz. Toda reabilitação, como prática recorrente na história da arquitetura, explora, no próprio conceito, as dimensões espaço e tempo, ou, pode-se dizer, espaço de tempo. O tempo carrega consigo significações históricas, que se imprimem no espaço arquitetural, sedimentando e estratificando lugares construídos. Um passeio através desses lugares traz no cerne a questão: a que tempo eles pertencem?
A herança do passado olhada à luz do presente e projetada para o futuro permite interromper o olvido do tempo com a resposta: o tempo é agora, mas a boa arquitetura perpassa todos eles sem invalidar-se.
Conceber um edifício com base no propósito que lhe dá origem é apenas parte da elaboração arquitetônica, que deve considerar a mobilidade com vistas à atualização, ou seja, o edifício sobrevive para além desse propósito. O Mercado Público de Itaqui, inaugurado em 1909, continua a existir como testemunho de um passado de pujança sócio-econômica favorecida pela posição junto ao Rio Uruguai. Porém, durante quase um século, seu potencial não pôde ser aproveitado efetivamente e a contento. Na época em que foi implantado, o mercado ficou superdimensionado em relação à escala da cidade. Mas um Novo Mercado, após a reabilitação do antigo, responde exatamente à demanda da população gaúcha de Itaqui e arredores: usufruir de um lugar que viva sua cultura.
O mercado público como equipamento urbano remonta ao tempo das trocas. Além da diversidade de cores e sabores das mercadorias expostas, misturam-se ali uma multiplicidade de costumes e tradições difusores da memória coletiva. O mercado sempre foi um importante centro de convívio do povo com suas manifestações culturais.
Os novos ares do antigo Mercado Público de Itaqui poderão ser respirados por toda a extensão do lugar recriado. A idéia do passeio pela memória permeia todo o projeto. A estrutura formal existente é mantida como sua alma; adentrando-se pela casca fechada vislumbra-se toda a leveza das estruturas novas, em diálogo franco com as velhas. O complexo é unificado através das passarelas, terraços e escadas, incorporados ao corpo sólido pré-existente. A síntese resultante expressa a sincronia da similitude com a diferença; a dialética transmite a essência, atestando a qualidade que lhe atribui a própria razão de ser do mercado.
Existente e proposto – preservação e renovação
O projeto está pautado pela idéia da reabilitação como instrumento de criação arquitetônica; assim, a importância recai sobre um problema próprio da disciplina, a arquitetura, e não sobre definições efêmeras de reciclagem, reconversão, remodelação ou revitalização. Há uma postura de respeito ao existente como testemunho do tempo e do lugar, mas como tal, e para manter a validade, não pode ficar inerte; um novo lugar não prescinde da ação humana sobre a construção que vai se degradando ou deixando de atender às demandas dos novos tempos. A proposta visa, portanto, não só dar condições materiais para resgatar a edificação do limbo a que esteve submetida esses anos todos, como também lhe restituir o significado, agora reinterpretado à luz dos anseios dos itaquienses em consonância com a escala da cidade.
A preservação foi determinante em quatro pontos principais: o corpo original do mercado, sólido e maciço, a estrutura metálica central, leve e permeável, os dois pátios laterais, abertos e arejados e a rua das Carroças, útil e estruturadora. As construções que ladeavam a cobertura central, de importância secundária, foram retiradas no projeto, delas conservando-se apenas um pequeno trecho na zona cultural, que apóia a passarela junto à escada de acesso. Outros alinhamentos dessas paredes são representados como metáfora do palimpsesto, através da diferenciação de materiais no desenho do piso, de forma que a leitura do estado anterior possa ser feita sem dificuldade.
O corpo principal, que configura o mercado tal como conhecido, abriga a maior parte do programa, complementado pelas novas construções junto à rua das Carroças. A estratégia de renovação baseia-se na visão de conjunto do complexo, sem falso mimetismo, tampouco sem demasiada preocupação com o contraste. Entretanto a atenção para com a coerência e a autenticidade relativas à época se faz necessária, na medida em que estas interferem sobremaneira nas diferenças de linguagem dos recursos técnico-construtivos empregados.
Em termos gerais e com uma postura contemporânea, a idéia é que a obra de arquitetura possa sobreviver ao problema que lhe deu origem.
Zoneamento – cultura e comércio
As funções originais do Mercado Público de Itaqui incluíam, além do abastecimento da população, o desenvolvimento de um centro de atividades culturais e sociais. O mercado reestruturado contemplará essas funções através do estabelecimento de duas zonas principais: uma comercial e outra cultural. As duas juntas têm um ramo dedicado aos eventos, embora estes também possam ocorrer em todas as áreas de intersecção, já que a grande praça interna, resultado da integração entre os pátios menores laterais e a parte coberta central, passa a configurar o espaço de convivência por excelência do mercado.
A fluidez espacial, alcançada com a demolição das partes não previstas no projeto original, é priorizada em relação à compartimentação, em favor intercomunicação entre as diferentes zonas. Estabelece-se assim um circuito, a partir da rua das Carroças (cinema) em direção à área comercial, passando em seguida pela praça central, depois pela área cultural e finalizando nas construções novas destinadas aos eventos, fechando na mesma rua das Carroças (salas multiuso). Essa leitura resgata a idéia do todo unificado, colocada desde o início do trabalho como um objetivo a ser perseguido na reabilitação do mercado.
Programa – tradição e atualização de usos
A rua Independência, uma das principais do centro da cidade, é o eixo conector de importantes equipamentos urbanos, como o mercado, ligados por ela ao porto e à praça central de Itaqui. Conseqüentemente, os itens do programa que melhor respondem ao caráter desta via são o restaurante [1], as lojas [2] e serviços de atendimento ao público, como o banco 24 horas [3], junto à divisa, acessível mesmo fora do horário de funcionamento do mercado. As lojas têm porte variado, algumas podendo destinar-se a usos específicos como padaria [4], por exemplo. Assim, cria-se um forte atrativo junto a essas atividades de maior caráter comercial. À medida que se penetra no mercado em direção à ala oposta o ambiente torna-se mais fluido.
A ala central do mercado, ao longo da Av. Oswaldo Aranha, abriga a recepção do conjunto, no acesso principal [5]. Ao lado do restaurante, localizado na esquina, distribuem-se mais três lojas [6]; à direita da entrada há a cafeteria [7] e o laboratório de computação [8], que se comunica com a biblioteca [9], no volume mais alto simétrico ao do restaurante. Todas estas funções abrem-se diretamente para a ampla praça central [10].
A biblioteca estende-se pela ala lateral junto à rua Domingos Lacroix, e comunica-se ao fundo com a administração [11]. Esta via, de caráter local, menos movimentada, adequa-se à instalação do núcleo cultural, composto principalmente pela biblioteca, que já ocupava a esquina há anos. Na divisa do lote junto à travessa, localizam-se os novos blocos construídos para abrigar cinema [12] e salas multiuso [13], união das atividades comerciais e culturais respectivamente. A diretriz da flexibilidade de arranjos viabiliza a conversão do cinema em auditório, que pode ter sua platéia dividida; facilita também que as salas multiuso, separadas por painéis móveis, possam ser unidas de quatro em até uma única grande sala. Configurações variadas permitem a constituição de um pequeno centro de convenções.
A conexão com a praça central ocorre igualmente a partir desta ala, mas um anteparo em forma de vitrine, que define o espaço-memória [14], funciona como filtro entre a área mais reservada do programa em direção à mais movimentada. Parte deste espaço-memória será atendido pela última sala existente na ala, contígua à administração. O espaço-memória interpõe-se entre a estrutura central e o espaço que antes definia um dos pátios laterais; tal pátio fazia par com outro, rebatido, simulado nesta proposta através da configuração estabelecida pelos três pequenos volumes independentes destinados ao comércio alimentício de pequeno porte [15].
A rua das Carroças [16], antiga passagem de serviços, readquire importância não só pela manutenção das entradas de apoio e serviço nos horários de carga e descarga, mas também por ligar os extremos da edificação do mercado à praça central, e esta às novas edificações de eventos: cinema-auditório e salas multiuso. Ao longo dela conforma-se uma faixa estreita de pequenas lojas de prestação de serviços [17], como o já citado banco junto à fachada, chaveiro e xerox, além de telefones públicos e correio [18], e os sanitários [19] que atendem aos usuários da praça central. Outros blocos de sanitários distribuem-se pelo restaurante, administração, laboratório e cinema. O apoio técnico com centrais de gás, lixo, eletricidade e vestiários e sanitários de serviço [20] estarão localizadas junto aos fundos do terreno anexo, de forma que possam ser acessíveis pela rua das Carroças e alcançadas, ao mesmo tempo, pela travessa.
A praça central, formada agora pelo pátio coberto e pelos abertos laterais, é o átrio do mercado, que comunica e ordena ao mesmo tempo, e para onde convergem todas as funções que possam ali ocorrer. A predominância de um espaço livre, ocupado apenas com mobiliário, cria inúmeras possibilidades de organização em torno dos eventos sociais e culturais que têm lugar anualmente na cidade. A arena pode ser palco, visto inclusive de cima pelas passarelas e pelos camarotes, e pode ser platéia, que se abre para o movimento comercial e cultural periférico.
Materiais
A diferenciação entre as partes existentes e as novas aparece como pressuposto para uma postura de fidelidade ante as características intrínsecas aos materiais empregados, e não tanto como intenção de se mostrar um contraste temporal. A coerência com os sistemas construtivos é fundamental para a criação e a consolidação de uma identidade do mercado, diretamente conectada com a cultura de sua cidade, que embora resgate do passado valores patrimoniais perenes, nem por isso deixa de transformar-se continuamente.
Nessa mescla entre existente e novo, o aproveitamento do arenito, por exemplo, abundante na região, surge na base do volume das salas multiuso e no piso; as estruturas metálicas, já utilizadas com o devido conhecimento tecnológico na data da construção, aparecem reconformadas nas passarelas. No apogeu de seu desenvolvimento, pela posição estratégica junto ao rio Uruguai, e usufruindo, portanto, das vantagens da navegação fluvial, Itaqui pôde adquirir a estrutura metálica central importada da Inglaterra.
Com a perda de relevância advinda da desarticulação das atividades econômicas de então, o quadro muda paulatinamente e já no segundo pós-guerra a decadência suplanta a prosperidade, fazendo-se sentir na deterioração do prédio. Hoje, apesar da diminuição das distâncias, a política do bom senso apela para o caminho da tradição local: materiais disponíveis e encontrados na região que possam ser facilmente manuseados sem especialização indicam a linguagem adotada para os novos elementos sugeridos no projeto. Assim, os volumes-quiosque colocados sobre as antigas projeções, próximos ao núcleo comercial do mercado, assim como as saliências ou revestimentos adicionadas pontualmente ao corpo de alvenaria, são leves, estruturados em aço e revestidos de placas onduladas galvanizadas.
Uma variação destas placas são as telhas translúcidas em fibra, retroiluiminadas, fixadas na parte interna dos torreões de esquina voltadas para os terraços. Blocos novos alternam as mesmas placas com concreto e vidro, como no cinema. As texturas diferentes contribuem para a percepção das combinações e justaposições. Algumas paredes internas poderiam ser descascadas – na biblioteca e no café, por exemplo – numa tentativa de registrar-se a solidez da construção e a trazer para a superfície a propriedade no uso dos materiais. A marca do tempo é explorada em termos de reutilização e não como algo estanque, paralisado. A limpeza feita nas paredes, e que mostra com transparência a materialidade do edifício, foi motivada pela necessidade de eliminarem-se resquícios e cicatrizes impingidos ao longo do tempo ao edifício original. As referências aproximam o passado da cidade à atualidade, numa abordagem interpretativa das construções agro-industriais dos silos e armazéns que expõem a principal atividade econômica de Itaqui.
Passarelas
A idéia de preservar a forte imagem do mercado público de Itaqui na paisagem urbana, não interferindo nas suas fachadas, valoriza e surpreende quem entra naquela estrutura maciça e pesada, pois faz com que as novas arquiteturas e a remodelação do espaço sejam descobertas no seu interior como uma surpresa. Somente o novo uso é capaz de trazer sentido à abertura dos pátios e ao aproveitamento gerado pela intervenção e integração.
A cobertura central permite tanto a conversa entre todas as atividades quanto o acréscimo de outras, ligadas ao caráter da praça pública, como estar e convívio, apresentações e manifestações artísticas e culturais. As passarelas propostas – e que servem convenientemente também à manutenção da cobertura e estrutura metálica, articulam as funções, conferindo fluidez espacial. Ambientes antes isolados agora se relacionam horizontal e verticalmente, permitindo ampla visualização e vivência do espaço.
As passarelas configuram-se como galerias que se abrem para os pátios laterais, dando continuidade na estrutura central, abraçando-a. Dois balcões simétricos debruçam-se por sobre a arena fazendo as vezes de camarotes. Nesses dois pontos, o telhado é recortado para garantir a entrada por sob a cobertura. Uma escada parte dessa altura até a passarela mais alta que, circunda toda a cúpula. O sistema de passagens proposto foi pensado com o objetivo de diversificar os percursos e possibilitar o passeio por todas as partes. O ambiente projetado não visa restringir nem direcionar, mas sim oferecer escolhas, através do trânsito livre.
A memória está presente em todas as partes do edifício. O espaço memória, sob a passarela em frente à biblioteca, é apenas o mote do resgate histórico, em forma de vitrine, que encontra pares em outros pontos do mercado: no ambiente fechado do corpo existente, no fragmento da parede que resta sob a escada ou no módulo dentro da biblioteca. Além disso, a memória espalha-se nas paredes, no piso, nas portas e nas recordações impressas no mercado que revive.
Passarelas e passarela alta convergem na praça central, trazendo as pessoas para o interior. A arena completa o sistema do pátio criando um ambiente de contemplação junto às belas estruturas. As principais linhas de circulação ocupam as mesmas projeções antigas que impediam a fluidez e permeabilidade do espaço por serem muito fechadas.
Através da intersecção ou da sobreposição desses planos horizontais o visitante pode experimentar diferentes pontos de vista sobre o centro que vira palco ocasionalmente, ou simplesmente apreciar, de diferentes ângulos, o novo pólo cultural da cidade.
Mezaninos e terraços
O restaurante e a biblioteca, localizados nas esquinas do corpo construído do edifício, recebem mezanino, destinado a área de mesas extra, além de depósito e apoio no primeiro, e sala de leitura na segunda. O pé-direito e a altura das paredes externas nestes pontos permitem que o acréscimo seja feito sem detrimento da volumetria original da construção. Já as coberturas contíguas, no setor frontal do edifício, dão lugar a dois terraços com acesso público por escadas externas.
Equipamentos
A climatização é setorizada, possivelmente por meio de um sistema dividido – split. As unidades condensadoras estão locadas junto à platibanda interna do corpo principal, distribuídas de acordo com a necessidade dos ambientes situados abaixo. As máquinas não aparecem na fachada interna e são facilmente acessíveis em caso de manutenção.
Central elétrica – subestação e gerador – estão locados ao fundo do terreno anexo, com fácil acesso pela via pública, através de rampa. O mesmo ocorre com a central de gás e o acúmulo de lixo. O reservatório de água para consumo e incêndio está locado sobre a cobertura acima da administração, oculto pelas paredes altas que fazem parte do volume original.
Conclusão
Com a intervenção proposta, o edifício não perde o reconhecimento histórico que necessariamente acompanha a herança do patrimônio, mas resulta em algo novo; já não é mais o mesmo mercado, modifica-se o uso, muda o tempo. O envoltório de um espaço antes em branco recupera a grandeza de outrora, num lugar onde a vida acontece. Volta a estabelecer o intercâmbio sócio-cultural tal qual na época de seu apogeu, consideradas as novas demandas e situação da Itaqui de hoje.
Atualizam-se as funções, renova-se a arquitetura, convergem as expressões humanas numa fusão memória-vivência, passado-presente que traduz o espírito contemporâneo de Itaqui, alçando o Novo Mercado da escala local para inserir-se na global. Este lugar pertence ao passado, ao presente e também ao futuro.
ficha técnica
Arquiteta
Nathalia Cantergiani Fagundes de Oliveira (RS)
Equipe
Arquitetos André Jost Mafra, Bianca Pelicioli Riboldi, Cristiano Lindenmeyer Kunze, Márcia Heck, Micael Eckert, Nauíra Zanardo Zanin e os acadêmicos de Arquitetura Ana Cláudia Vettoretti, Patrícia Carraro e Rafael Fornari Carneiro.