Uma estância sem fronteiras
Um breve histórico
A cidade de Itaqui é datada da época das Reduções Jesuíticas, período no qual propriedades eram configuradas na forma de Estâncias. Possuidoras de arquitetura e tipologias características garantiam seu auto-abastecimento a partir de uma autonomia produtiva. Dessa forma, o "Portal do Rio Grande" nascia sobre a antiga estância Rincão da Cruz, a extremo oeste do estado do Rio Grande do Sul.
Com a contínua utilização do leito do Rio Uruguai para navegação, Itaqui passou por transformações econômicas, deixando de sustentar-se somente da pecuária e agricultura, e passando a viver também das trocas e do comércio. Este período foi de suma importância para o desenvolvimento da região, que teve seu apogeu diretamente ligado as questões fluviais.
O mercado público surgiu da necessidade de haver um local adequado para a comercialização das mercadorias produzidas na região, industrializadas ou importadas, sendo ponte para os grandes centros comercias argentinos e uruguaios, aproximando o Rio Grande do Sul das cidades européias, atuando como pólo para o intercâmbio econômico e sócio-cultural entre os povos.
A proposta contempla um setor cultural (biblioteca municipal, laboratório de informática e espaço memória), um comercial/gastronômico (lojas, restaurante, lancherias, cafés, bares...), podendo abrigar eventos e atividades multidisciplinares em um setor de transição constituído por um centro de convenções, com salas multi-uso e cinema-auditório. Acrescentamos atividades que ajudam a resgatar a memória e a tradição do lugar, como a feira de artesanato e produtos locais, a discoteca e a ludoteca, além do Cyber-café e das Tv's do Mundo (onde podem ser vistos programas de diversas partes do mundo) que demonstram o perfil da sociedade contemporânea, dinâmica e com rápido fluxo de transmissão de informações através da tecnologia e dos meios de comunicação.A reabilitação do edifício do antigo mercado público de Itaqui tem neste projeto, o resgate de características históricas, tanto da Cidade e de sua formação, surgida a partir de uma estância, como da própria edificação em debate. Utiliza-se então uma “leitura contemporânea” do conceito de estância e de seus elementos mais marcantes e característicos. O projeto respalda-se também no tradicionalismo arraigado do Gaúcho, a fim de reforçar o caráter de integração social e intercâmbio cultural, importantes e desejados pela população local, e existentes na época em que o mercado de Itaqui ainda funcionava comercializando produtos em suas bancas.
A “leitura contemporânea” passa pela investigação de um passado e de como as estâncias gaúchas funcionavam. Resgatamos e atualizamos alguns de seus aspectos físicos e simbólicos, retomando a discussão, agora, sob o enfoque econômico - antigo poderio mercantil x atual potencial sócio-cultural - para lembrar da importância das nossas origens, de nossa memória e da consciente e necessária preservação e valorização do patrimônio cultural e arquitetônico.
O corpo principal do edifício do mercado comporta-se como o “sobrado”, que historicamente abrigava as peças de “dignidade da estância: parte íntima e de convivência, proporcionando a animação entre seus usuários. Destacava-se por sua solidez. A Praça Coberta, espaço central e do mercado, com sua estrutura metálica, é comparada ao "salão nobre" dos sobrados tradicionais, é também o principal ponto de encontro e de convívio do novo mercado, para onde todos os fluxos convergem, possibilitando a integração/conexão entre o setor de alimentação e demais atividades comerciais e culturais vinculado às áreas abertas de lazer.
Os pátios, originais do edifício do mercado, contíguos ao Restaurante e a Biblioteca, servem como espaços de contemplação e reunião e foram entendidos como os antigos “jardins” das estâncias. Já os pátios de caráter fulgáz, de pouca permanência – o arborizado e o dos serviços, ala norte do edifício – configurar-se-iam como os antigos “pomares”.
O complexo Cinema/Salas Multiuso, construído em edifício anexo ao mercado, será responsável pela geração e divulgação da "cultura" como matéria-prima essencial ao funcionamento do empreendimento, sendo comparada a “atafona”, que nas estâncias funcionava como instalação industrial para o fabrico da farinha e derivados (matéria) que seriam consumidos pela própria estância.
Na estância, a “senzala”, através dos escravos, era a força motriz por traz da produção, vital para o funcionamento adequado da mesma. Deste modo, identificou-se na Administração, o setor que garantirá e perpetuará as atividades oferecidas pelo novo centro cultural.
Baseando-se na idéia de que a senzala e a atafona, nas estâncias, localizam-se afastadas do sobrado pelo Pátio de Serviço, optou-se pela colocação do cinema e salas multiuso em um edifício anexo, separado do mercado pela rua interna, que serve de interface. No novo mercado de Itaqui, a Rua das Carroças (rua interna ao terreno), que abrigará algumas atividades de serviços, e atividades de encontro e convívio (como feiras de produtos locais), realiza este papel
Procurou-se ao máximo a realização de intervenções pontuais que realçando espaços abertos e recintos, mantivessem as características volumétricas e estéticas do prédio antigo, conservando-o, quase que integralmente, em sua forma original. As principais alterações realizadas dizem respeito a questões de gradientes de permeabilidades e enquadramentos visuais, com o intuito de vislumbrar novas perspectivas, delimitações, maior integração, fluidez espacial e promenades seqüenciais, em alargamentos ou estreitamentos, ora de maneira mais direta, ora por caminhos um pouco mais sinuosos.
A edificação anexa possui traços bastante sóbrios, com o intuito de não competir nem ofuscar o exemplar histórico, respeitosamente preservando sua imagem. Optamos pela criação de uma circulação coberta (parte da antiga Rua das Carroças) que garante ao usuário proteção contra a intempérie, “conectando” esta ao edifício histórico, além de uma passarela que leva o pedestre do edifício histórico ao segundo andar do anexo (salas multiuso), possibilitando um novo percurso ao longo do edifício, bem como uma inusitada visual da estrutura metálica da praça central do mercado a partir de um ponto mais elevado, em seu segundo andar. Estas intenções ficam ainda mais realçadas pelo aproveitamento do desnível existente entre o mercado e a rua interna.Intencionalmente, muitas atividades foram acondicionadas física e conceitualmente no corpo histórico da edificação. Além das já citadas, incluem-se: discoteca, tv's do mundo e feira de artesanato e produtos locais. Estas resgatariam o intercâmbio de "mercadorias", outrora tão importantes para o desenvolvimento da região. O objetivo principal é proporcionar um intercâmbio entre as “antigas” atividades do mercado, residentes no imaginário coletivo e nos costumes da população, com a situação atual, com rápido e fácil fluxo de informações através da tecnologia e dos meios de comunicação, com serviços de internet, música e televisão, ligadas a várias redes de canais no mundo, agora, como uma Estância sem Fronteiras.
Estratégias de restauro (a serem aprofundadas na etapa de anteprojeto):
Estrutura: A estrutura metálica do pátio central, assim como outros elementos metálicos originais, serão mantidos, evidenciando-os sempre com a mesma cor branca. Nas intervenções, na estrutura do edifício anexo (que também será metálica) e das coberturas dos pátios frontais será usada a cor bronze marcando claramente a intervenção.
Paredes – aberturas: A intervenção a ser feita nas paredes será moderada, evitando a descaracterização do edifício. Para as fachadas serão estudadas as cores originais. Internamente propõe-se a retirada de algumas paredes, proporcionando espaços mais amplos e melhor fluxo de usuários. Alguns vãos foram alterados, melhorando aspectos visuais e de iluminação. As novas esquadrias inseridas no interior do mercado terão ritmo e modulação semelhantes às originais.
Iluminação: Sugere-se que a fiação elétrica pública seja subterrânea para toda área de preservação histórico-cultural. Com isso, é possível desobstruir as fachadas do mercado, melhorando sua visualização. Propõe-se a troca do posteamento para um tipo de luminária especial que ilumine tanto a calçada (pedestres), quanto às vias (veículos). Para a iluminação noturna do mercado, serão instaladas luminárias no piso.
Vegetação: Sugere-se também a retirada dos pequenos exemplares vegetais que se localizam na calçada do mercado uma vez que também contribuem como elementos de obstrução visual do edifício histórico.
Pisos: Sugere-se a manutenção dos pisos originais em bom estado de conservação. Os pisos novos a serem colocados serão evidenciados. Será também mantido o calçamento original da rua interna, utilizando-se nas áreas novas de pavimentação junto a esta, da mesma pedra, variando apenas a sua modulação e disposição.
Publicidade: A programação visual (externa e interna) será padronizada de forma a não interferir na compreensão do edifício do mercado. A publicidade externa será em placas de chapa metálica 30x50cm.
Pátios internos: No pátio onde existe a cobertura (beiral em mão francesa) original, optou-se por mantê-la. O pátio junto ao restaurante também será mantido sem cobertura. Nos pátios junto às esquinas serão colocadas coberturas translúcidas articuláveis, proporcionando ventilação constante pelas laterais, protegendo o pedestre da chuva e, possibilitando melhor circulação e maior integração entre os espaços internos.
Drenagem: Considerando a concentração de sais e umidade nas fachadas será necessária uma análise mais aprofundada das possíveis infiltrações de esgoto de edifícios próximos ao mercado. Nos pontos mais críticos, poderá ser implantado um sistema de drenagem com bombas para retirada d’água nas fundações - controle de umidade e infiltração nas paredes por capilaridade.
Materiais: Em relação aos principais materiais de revestimentos utilizados optou-se pela pedra grês para as fachadas do anexo, por sua abundância e tradição no local, e pela utilização de vidro nos principais planos a serem criados, tanto no anexo quanto no interior do mercado, uma vez que sua presença marca claramente a intervenção atual e permite permeabilidade visual nos interiores e também no exterior.
ficha técnica
Arquiteto João Marcelo Carpena Osório (RS).
Equipe
Arquitetas Carolina Cabrales, Carolina Schrage Nuernberg e Lúcia Camargo Melchiors.