“Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras.”
Ítalo Calvino
O desafio da cidade
Nada pode ser mais instigante que “desdobrar” as camadas físicas da história.
A realidade desta somatória edilícia aparentemente caótica é conseqüência da superposição cumulativa de centenas de fatos e decisões do decorrer da história, um complicadíssimo palimpsesto, resultando numa riqueza de fragmentos e residuais (entre o território da permanência e o território da impermanência) que, evidenciados, podem se transformar em um “ensamble” urbano de rara qualidade formal.
A cidade sempre foi construída por atores concretos, portadores de interesses, culturas e imaginários específicos. A cada vez eles encontraram, assim como nós, hoje, condições físicas locais e conjunturas históricas e políticas específicas.
Cada mudança faz emergir do fragmento, da heterogeneidade e da dispersão, aspectos fundamentais da cidade, palco de um eterno fazer e desfazer de bens e artefatos materiais; a cidade expressa, como nenhum outro fenômeno, a passagem irreversível do tempo.
Reflexão metodológica
Fazemos do urbanismo e da arquitetura uma coisa simples, duradoura, ordenada, precisa e necessária; construímos com a tradição uma relação mais de conhecimento que de obediência; pensamos o projeto como mudança crítica, eventualmente polêmica, em relação à topografia e ao construído; pensamos o projeto como reinvenção do lugar.
Negando-nos a considerar o mundo como concluso, colocamo-nos na esteira da pesquisa incessante, como uma reelaboração e melhoramento de alguns materiais urbanos fundamentais junto com a reconstrução crítica das regras e das práticas da construção e da composição.
A nossa intervenção não agrega novas arquiteturas, ocupa as frestas sugeridas pela realidade física, permanecendo alheia ao abuso do bombardeio ao consumismo dos sentidos. Ela se concentra prioritariamente na valorização gentil e solidária do entorno e na redefinição precisa dos espaços público e coletivo.
Metodologia
As soluções expostas não representam apenas uma arquitetura definitiva, representam uma indução para as ações de modificação, desenvolvimento e construção.
Desenvolvimento sustentável
As ações de preservação cultural integram-se hoje aos paradigmas de desenvolvimento sustentável das cidades: ações de mobilização coletiva de educação patrimonial, sensibilizações sobre a história, a memória e a identidade local, regional e nacional formam parte dos objetivos para que possam se concretizar no espaço físico.
Patrimônio
O Projeto apresentado considera os fundamentos e critérios estabelecidos pelo EPAHC, de acordo com o Programa Monumenta.
Projeto
Volumetrias: Invertemos as opções de crescimento em altura sugeridas pelas bases do Concurso:
- O Anexo III terá a mesma altura do edifício do Arquivo Público Estadual, anexo, e será integrado por um pergolado que servirá como elemento intermediário na perspectiva entre o pátio do Arquivo e o Edifício Garagem.
- Já o Anexo I será substituído por um edifício que, além de integrar a volumetria do entorno, irá definir uma nova frente (fachada), emoldurando o espaço verde aberto inserido na área central da intervenção.
Desta forma, propomos a construção de 2 edifícios de pequeno porte, com baixas solicitações estruturais, dimensionados de forma a propiciar uma planta que permita uma melhor ocupação do espaço e melhores possibilidades de layout. As novas áreas propostas para os edifícios Anexo I e III somam, aproximadamente, 9.103m² (4.733m² e 4.370m², respectivamente), área solicitada para atender o programa do concurso. Acrescentando à isso, a área a ser reconstruída do antigo edifício Anexo I e os estacionamentos em subsolo totalizam uma área nova a ser construída de 16.149 m².
A organização geral dos espaços úteis internos e externos será redefinida basicamente da seguinte maneira:
Palácio Farroupilha: Reformulação geral dos layouts dos gabinetes, modulação apropriada para coincidências com a estrutura portante do edifício, caixilhos e reestruturação dos elevadores e sanitários públicos e privativos para receber:
Atividades parlamentares
Espaços ligados à Mesa e à Superintendência Geral.
(Gabinete dos Parlamentares, Coordenadorias das Bancadas, Presidência/Superintendência Geral, Superintendência Legislativa)
Para este edifício, já incorporado ao imaginário coletivo e integrante do patrimônio cultural da cidade, não propusemos nenhuma alteração externa significativa, somente a substituição dos vidros da fachada por vidros duplos térmicos de alta performance; substituição da escada de incêndio, incorporada posteriormente, e sua realocação em local mais adequado em relação à circulação geral do edifício, sem que isto se configure como um volume externo, de forma a não criar nenhuma interferência negativa no pátio do Solar dos Câmara e na volumetria do conjunto do Palácio.
As intervenções ficaram restritas às seguintes áreas:
Adaptação da escada interna que será pressurizada e sem antecâmara, com porta isolante, e eliminação do elevador, antes integrado a esta escada, que poderá ser usado como duto de instalações.
Reorganização dos setores existentes dentro do edifício, por uso, e sua redistribuição dentro do próprio Palácio e Complexo da ALERGS, além do aumento da quantidade dos gabinetes dos deputados totalizando: 54 gabinetes de dimensões variáveis, mais 5 gabinetes extras, e 4 salas de reuniões; sendo todos os espaços devidamente modulados e que poderão ser futuramente convertidos em outros gabinetes. Atingimos assim uma área media geral de 90 m² por gabinete.
Definição de novos layouts internos, sobre nova modulação, compatível com os pilares, estrutura dos caixilhos externos, núcleos de circulações verticais, luminárias e ar condicionado.
Incorporação das áreas anexas ao vestíbulo nobre e fechamento da abertura superior com cobertura transparente, criando um grande espaço vazio como poética, representativo do Estado do Rio Grande do Sul.
Criação do Café dos Deputados em uma nova área de lazer no 5º andar, transformando a cobertura em um terraço utilizável como extensão do café, o qual terá sua superfície pavimentada (aproximadamente 60%) com cobertura vegetal.
Acréscimo de uma nova escada de emergência externa metálica, atendendo a norma de segurança.
Duplicação da capacidade de vagas do estacionamento do subsolo por meio da realocação dos vestiários e refeitório dos funcionários para o Anexo I, deixando seu uso exclusivo para os deputados, além de prever a implantação de um novo estacionamento junto à rua Duque de Caxias, interligado ao estacionamento existente, e reorganização dos acessos e saídas.
Em relação ao conforto ambiental propusemos as seguintes medidas: Troca de todos os vidros do Palácio para vidros duplos térmicos de alta performance, para a radiação direta, e módulos com aberturas apropriadas para ventilação natural. Sobre esta condição física um sistema de ar condicionado poderá utilizar a temperatura da água do lençol freático como fator de economia. As unidades condensadoras estarão localizadas no forro da circulação da nova escada de emergência metálica e as unidades evaporadoras estarão localizadas dentro do forro.
Anexo III
Terreno da Rua Riachuelo: Edifício novo com 5 andares e área total de 5.339m² para receber:
Fórum democrático de Desenvolvimento Regional
Comissões Parlamentares
Áreas de Lazer e Cultura
Este edifício foi concebido como preenchimento de uma fresta, integrando-se ao conjunto edificado existente e configurando-se como uma extensão natural da massa construída da ala oeste do Arquivo Público Estadual, de forma a não criar um elemento independente a se acrescentar ou somar ao conjunto. O novo edifício se dissolve como volume sólido já que incorpora o espaço lateral aberto e pergolado, que se configura como um grande hall integrando o conjunto e marcando o acesso do público ao Plenarinho.
O pavimento deste pátio se apresenta como uma prolongação do passeio público externo, ou seja, uma extensão natural da cidade.
A fachada se completa, desde a rua, com uma parede cega em perfeita continuidade com a fachada histórica do Arquivo.
Em relação ao conforto ambiental propusemos as seguintes medidas: Este edifício foi concebido de modo a emitir a menor radiação para o exterior e a redução de 60% da radiação direta sobre a estrutura e a fachada envidraçada através de fechamento superior e lateral por um pergolado metálico, o qual servirá de suporte para uma cobertura vegetal que protege o edifício e o pátio bioclimático, hall de acesso ao Plenarinho.
Praça Aberta Solar dos Câmara: Reconstituição e recuperação da vegetação existente.
Esta praça de valor histórico formará de fato um conjunto unitário (reforçado agora com a eliminação de acréscimos como muretas, escadas, coberturas, etc) com a área verde aberta, estabelecendo uma escala de contraponto com a vegetação da Praça Marechal Deodoro (Praça Matriz).
Anexo I
Terreno da Rua Duque de Caxias: Demolição do edifício existente e construção de um novo, com área total de 10.810m², para receber:
Superintendência Administrativa e Financeira
Superintendência de Comunicação Social
Relações Institucionais e Empresas terceirizadas
Este edifício é curiosamente oposto ao Anexo III, não por formalismo, mas por uma conseqüência histórica da geografia subjacente. Enquanto o edifício do Anexo III se desenvolve no sentido “negativo”, o Anexo I emerge “positivamente” entre seus pares vizinhos formando um conjunto. No entanto, por suas fachadas neutras (é fechado com venezianas de alumínio de chapa perfurada), monomatéricas e monocromáticas, o edifício torna-se sólido desde fora e translúcido desde dentro, quase sem elementos de escala, integrando-se no conjunto como qualificador do espaço verde aberto e do Solar dos Câmara.
Conforto ambiental: Este edifício foi concebido de modo a emitir a menor radiação para o exterior e a redução de 60% da radiação direta sobre a estrutura e os vidros pelo revestimento integral com chapas de alumínio perfuradas e pré pintadas de branco. Este material permite ser percebido como volume sólido desde o exterior e translúcido desde o interior. Sobre esta condição física um sistema de ar condicionado poderá utilizar a temperatura da água do lençol freático como fator de economia. As unidades condensadoras estarão localizadas na cobertura do edifício e as unidades evaporadoras estarão localizadas dentro do forro.
Espaço Verde Aberto: Passagem de pedestres comunicando os Anexos e o Palácio. Remodelagem do solo. Reconstituição, complementação, replantio e recuperação da vegetação existente.
O objetivo é transformar este grande parque interno em um “capão de mato urbano” com ramificações em distintos níveis – no Jardim do Solar, no terraço do 5º andar do Palácio, no pátio bioclimático do Anexo III, por meio da retirada de todas as coberturas, pavimentos e equipamentos que ocupam a área atualmente, apresentando-se com uma escala adequada e potente no conjunto, como uma grande massa arbórea, sobre um solo único e contínuo, literalmente e virtualmente.
Conforto ambiental: Será feito por meio do efeito chamado cânion urbano. O efeito da geometria do cânion urbano é alterar a absorção de radiação solar visível como um todo. Portanto, tentamos reduzir este efeito cubrindo as superficies (horizontais e verticais) que incidem diretamente neste espaço por um revestimento vegetal.
A impermeabilização dos solos devido à pavimentação reduz o processo de evapotranspiração urbana que é fundamental para o conforto térmico. Portanto, estamos aumentando sensivelmente as superfícies gramadas drenantes que cobrirão todas as áreas externas.
Topologia urbana
Estabelecemos uma relação topológica evidente concatenando sem solução de continuidade da Praça Marechal Deodoro – espaço verde aberto - Rua Riachuelo - Rua Duque de Caxias.
Fluxos de automóveis, estacionamentos e acessos verticais
Com a possibilidade de implantação de um estacionamento, em subsolo, junto à rua Duque de Caxias, e sua conexão com o estacionamento existente no Palácio Farroupilha, podemos obter uma clara simplificação, segurança e controle dos fluxos de entrada e saída do complexo, sem interferências, assim como uma interconexão direta de todos os núcleos de elevadores e escadas.
A implantação deste novo estacionamento poderá considerar a participação do setor privado, sob o regime de concessão, e poderá servir também como estacionamento para as atividades culturais do entorno, já que prevê a possibilidade de restrição de área destinada aos deputados e área destinada ao público e funcionários em geral.
Estrutura do verde
Dentro da hipótese do projeto, estas áreas verdes se formalizam em planos diferentes com qualificações também diferentes tanto de porte, coloração e floradas.
Esta solução gera uma espacialidade de concepção original que poderá ser um marco de identidade e de valor urbano para o local.
Sustentabilidade
Iluminação artificial e redução do consumo.
A iluminação artificial estará regulada com sensores que ativarão automaticamente os circuitos onde a iluminação natural é insuficiente, com conseqüente economia de energia. Todos os sistemas de segurança funcionarão com a energia produzida pelos painéis solares.
Reuso das águas cinzas e pluviais.
Reservatórios para as águas de reuso das pias e pluviais que receberão tratamento primário e filtragem para fornecer água para as bacias dos sanitários, limpeza e regado.
Painéis solares fotovoltaicos para energia suplementar
A nova cobertura do vestíbulo nobre e parte dos vidros que cobrem a fachada externa do Palácio Farroupilha poderão ser constituídos por células solares monocristalinas que transformam até 16% da energia solar em eletricidade mantendo a sua transparência.
Estratégia das etapas de construção
Foi previsto, preliminarmente, uma estratégia de mudança e construção de acordo com o cronograma de investimentos, transferências de departamentos e tempos de obra.
bibliografia
Bernardo Secchi. Primeira Lição de Urbanismo, Debates 306, Perspectiva 2006.
Sandra Regina Mota Silva. Tempos Urbanos, Cronos Ensandecido Org. Sergio Ripas EdufCar 2009.
ficha técnica
Arquiteto titular: Arquiteto Héctor Vigliecca
Co-autores: Arquitetos Luciene Quel e Ronald Werner Fiedler
Colaboradores: Arquitetos Fabio Pittas, Kelly Bozzato, Pedro Ichimaru, Neli Shimizu, Caroline Bertoldi, Thaísa Fróes e Aline Ollertz
Consultores: Engenheiro Agrônomo Rodolfo Ricardo Geiser, Arquiteta Christiane Ribeiro dos Santos e Engenheiro Paulo Arruda Serra