São múltiplos os sentidos para Making City. E quais teriam pertinência para uma metrópole latino-americana que é a 7ª mais populosa do planeta, que pertence a um país cujo PIB acaba de alcançar a 6ª posiçãoe cujo IDH ocupa o 84olugar no mundo?
São Paulo é rica, pulsa em ritmo intenso e exerce um forte poder de atração. Mas o cenário que a caracteriza como a maior metrópole industrial do hemisfério sul está em franca transformação. Manter ativa sua expressiva dinâmica produtiva vem sendo uma tarefa difícil, mas os investimentos históricos têm garantido a sua força econômica. Contudo, esses mesmos investimentos não têm logrado atingir uma aspiração básica: a construção de um cotidiano digno para a maioria da sua população. A vida em São Paulo é árdua. A qualidade ambiental, a mobilidade e a segurança são problemas crônicos e sistêmicos que afetam todas as camadas sociais.
Logo, um sentidopossível para making São Paulo é enfrentar as diversas formas de desigualdade e investir também no progresso da população.
A modernização parcial
Pese a aparente falta de ordenação, São Paulo ainda ocupa o protagonismo do desenvolvimento do Brasil. E qual teria sido o espaço para o planejamento em um contexto onde a velocidade do crescimento foi sempre muito superior à capacidade de investimento do estado?
O processo de urbanização foi violento. A população cresceu 8.000% entre 1893 e 2000, em grande parte devido à imigração estrangeira e ao êxodo rural. Essa população migrou para a cidade sem uma vivência urbana prévia. Sendo assim, quais os sentidos de urbanidade advindos com ela?
A instabilidade monetária durante o século XX foi caracterizada por períodos inflacionários que chegaram a atingir 82,4% ao mês. Então, como construir uma cultura de projeto quando o tempo nele dispendido acarreta fortes perdas financeiras?
Entretanto, São Paulo se fez uma grande metrópole industrial moderna. Como explicar esse fenômeno?
De um lado foram investidas grandes somas na construção da base técnica de suporte da dinâmica produtiva. Esses investimentos foram aplicados, evidentemente, a partir de ações planejadas, tanto por agentes públicos quanto privados.
Por outro lado, a cidade também foi sendo construída a partir de investimentos individuais espontâneos, necessários para suprir as necessidades básicas da população. Cerca de 30% dela habita em condições subnormais onde, ainda que precária, a vida se desenrola.
Esses dois processos históricos coexistem de forma dicotômica, perversa e complementar. O desafio para São Paulo é associar a lógica que pauta os investimentos produtivos arbitrários e as formas de pulsão de vida que resistem na metrópole.
A condição de emergência
As últimas quatro gestões federais implantaram sólidas políticas macroeconômicas e sociais no Brasil. O equilíbrio monetário e programas distributivos possibilitaram que,entre 2003 e 2009, cerca de 29 milhões de pessoas ingressassem à condição de classe consumidora, definida como “nova classe média”. Isso soma-se ao fato de que a taxa de crescimento populacional desacelera. Na metrópole a taxa de crescimento ainda é de 1,0% ao ano enquanto na capital é de 0,8%. Emergência econômica e baixo crescimento demográfico invertem o cenário anterior. A capacidade de investimento pode finalmente acompanhar o movimento demográfico.
A modernidade incompleta avança para um novo estágio onde a cidade industrial terá que construir outras vocações. O planejamento passa a ter efetividade e vem a posteriori ao surto de crescimento da cidade. Acontece que o modelo de planejamento autoritário e tecnocrata que imperou durante o período militar não é um modelo a ser resgatado. A estabilização democrática exige outros procedimentos.
Uma hipótese é que a nova classe média poderá representar um importante papel. Souza & Lamounier propõem que a formação dessa classe é um “fenômeno que tende a produzir portentosos impactos não só na economia, mas também na estrutura governamental, através, por exemplo, da demanda de serviços, nos valores sociais, na vida política e até no meio ambiente.” A pergunta é se esse fenômeno trará a construção de valores e formas de organização política que construam outras formas de urbanidade e, consequentemente, outros sentidos para Making City.
A oportunidade em se fazer cidade
Em 2008 o país atravessou a crise mundial de forma suave. A demanda por commodities, principal pauta de exportações do país, foi garantida pela China. E o acesso da nova classe média ao consumo manteve ativo o mercado interno.
Uma das estratégias do governo para se enfrentar o atual momento de crise é o estímulo da economia através do Plano de Aceleração do Crescimento. O PAC financia a construção das redes de infraestrutura do país necessárias ao desenvolvimento. Um dos itens desse programa é o Minha Casa Minha Vida. Sua ambiciosa meta de produção de 2 milhões de unidades habitacionais pretende diminuir o déficit habitacional do Brasil de cerca de 5,5 milhões de unidades. Esses dados corroboram com a idéia central da 5ª IABR que indica a “cidade como oportunidade”.
E, de fato, esse ciclo de investimentos acarretará um novo ciclo de urbanização do país, pois “atrás de cada novo porto haverá que haver uma cidade”. Contudo, o modelo de urbanização não está na pauta das discussões públicas, apenas os dados quantitativos de produção de unidades habitacionais, megawatts e vias pavimentadas. Sendo assim, esse ciclo de investimentos em infraestrutura será suficiente para garantir que se faça cidade?
No caso específico do Brasil, caberia um jogo de palavras, pois o crescimento econômico deveria trazer consigo a “oportunidade em se fazer cidade”.
Test Site São Paulo
O Test Site São Paulo nasceu de uma aliança entre o IABR, a Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo (SEHAB) e o escritório MMBB. Essa aliança vem sendo construída desde a 3ª IABR,quando o MMBB recebeu o Best Entry Award pelo seu trabalho “Watery Voids”.Por sua vez, o módulo “Squat” da 4ª IABR introduziu a parceria com a SEHAB através da discussão dos trabalhos realizados em Paraisópolis. Nesta 5ª edição foi formalizada a co-produção de um Test Site em uma área chamada Cabuçu de Cima.
Cabuçu é o nome de uma bacia hidrográfica que se localiza em uma das franjas periféricas da cidade, sujeita a um processo de urbanização informal que avança sobre áreas de proteção ambiental. Essa região se situa na zona norte, ao pé da Serra da Cantareira,que contém uma reserva que é considerada uma das maiores florestas urbanas do mundo. O recorte de estudo abrange 1100 ha onde hoje habitam 220.000 pessoas, sendo 80.000 em um perímetro definido como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS).
O Cabuçu caracteriza-se por um conjunto desconexo de fragmentos espaciais, sociais e regulatórios. Nele se encontram os desafios que a SEHAB enfrenta no seu dia a dia. Entretanto,a área também está sujeita aos impactos dos novos investimentos de expansão da infraestrutura de articulação entre São Paulo e o conjunto de aglomerações urbanas vizinhas que conformam uma rede macrometropolitana. Entre esses investimentos estão a construção de novos anéis viários, tais como o Rodoanel e o Ferroanel. Essas obras de grande impacto passarão entre a Reserva da Cantareira e as áreas de ocupação informal.
O entroncamento do Rodoanel com a Rodovia Fernão Dias criará um dos 11 nósestratégicos de conexão entre os fluxos macrometropolitanos e os tecidos urbanos locais. O Cabuçu, hoje um dead end, será convertido em um dos principais gates de São Paulo e, com isso, diversas potencialidades emergirão.Através do Rodoanel o Cabuçu se conectará ao leste com o Aeroporto Internacional de Guarulhos, em processo de expansão, e ao oeste com Pirituba, área escolhida para a construção do que se pretende ser o maior Parque de Eventos e Exposições da América Latina, com o qual o governo disputa ser sede da EXPO 2020.
Nesse contexto, oTSSPbusca aprimorar os instrumentos urbanísticos em São Paulo. Sugere o desenvolvimento do projeto urbano como campo de articulação e negociação de políticas públicas setoriais e interesses privados. Introduz camadas que estão fora do âmbito municipal de responsabiliade da SEHAB, assim enriquecendo o processo.
As redes sociais e as cadeias produtivas
O Programa de Urbanização de Favelasda SEHAB visa“transformar favelas e loteamentos irregulares em bairros, promovendo a inserção da população residente no contexto legal da cidade”.Logo, a primeira aliança a ser efetuada deve ser com a própria população.É a eles que se destinam os trabalhos.
A SEHAB tem como procedimento iniciar suas açõescom o trabalho social de campo. Esse trabalho identificaa diversidadedeagentes interessados no local: organizações comunitárias, associações de bairro, ONGs etc. Um dos objetivos é fortalecer os seus vínculose organizá-los na forma de uma ampla rede social.
No caso do TSSP, destacou-se um workshop destinado a dar voz as populações locais. O conteúdo deste workshopsensibilizou-as“para as questões coletivas e ambientais presentes em seu território de forma a gerar confiança e empoderamento, estimulando-os à participação na construção do futuro da sua comunidade”.
O workshop atestou o elevado nível de articulação política das lideranças locais. E para surpresa geral,a questão de geração de renda não foi apontada como principal demanda. O “verde” surgiu unanimemente como um valor inestimável a ser recuperado para o local. Ou seja, a qualidade da paisagem e do meio ambiente é um direito a ser garantido para além dos serviços básicos usuais.
O TSSP realizou ainda consultorias e pesquisas de campo em mobilidade e economia que indicaram a existência deuma complexa articulação de setores produtivos que se desdobram entre a formalidade e a informalidade.
Os estudos partiram do entendimento das principais macrotendências econômicas e demográficas da área metropolitana onde o Cabuçu se insere. Coube analisar “as características da população alvo do projeto, seus modos de inserção produtiva e condições de vida, buscando identificar os tipos de atividade mais presentes e os seus significados na hipótese de alterações importantes na estrutura produtiva atualmente existente”.A maior preocupação é que o processo de desconcentração industrial em curso pode acarretar perdas significativas de emprego.Portanto, a questão passa a ser apontar novas dinâmicas produtivas que possam garantir novas alternativas econômicas.
Uma das principais questões do TSSP é promover possíveis sinergias entre as redes sociais e as cadeias produtivas, ou seja, indicar formas de associação entre as demandas produtivas e as formas de organização social,e vice-versa.
O mapa de oportunidades
O horizonte do Plano Municipal de Habitação abrange os próximos 12 anos, com um total de investimentos necessáriosna ordem de R$ 58,67 bilhões. Os números indicam a força da SEHABna promoção de uma importante cadeia produtiva que é a da construção civil. Nessa força encontra-se a primeira oportunidade que se pode reconhecer para o Cabuçu:a associação dos planos de obra em habitação e infraestrutura urbana com programas sociais de formação e geração de renda, estruturados a partir do próprio processo de produção da cidade.
As pesquisas realizadas apontamque cerca de 40% da população é pobre e “20% do total de trabalhadores entrevistados declararam ter seu local de trabalho principal no próprio bairro ou em seu domicílio”, o que demonstra que dependem de estratégias de sobrevivência relacionadas aoespaço doméstico. Para essa população vulnerável, o conceito de moradia deve incorporar o espaço produtivo, o que traz implicações diretas nas investigações tipológicas. Esses espaços devem oferecer suporte às atividades de geração de renda, assim como às atividades de formação pessoal e de organização comunitária.Essas investigações estão sendo propostasàs equipes selecionadas por concurso público focado nos projetos intitulados de Perímetros de Ação Integrada (PAI).
Evidentemente, os demais órgãos de governo responsáveis pelas grandes obras também são importantes players.Anteriormente, essas obras eram financiadas e geridas pelo poder público. Mas torna-se cada vez mais frequente o uso de modelos de Parceira Público Privada ou de Manifestação de Interesse Privado. O uso desses modelos demanda oaprimoramento dosTermos de Referência que os arbitram. Contrapartidas, medidas compensatórias e sistemas de monitoramento dos impactos vêm sendo paulatinamente aprimorados.Os Termos de Referência podem oferecer um possível instrumento de articulação entre os efeitos metropolitantos e os efeitos locaisdessas grandes obras.Mas sua elaboração ainda é regida por visões setoriais e, consequentemente, parciais. A descrição hipotética de ações contidas em um Termo de Referência não tem a mesma potência de um projeto em formular problemas espaciais e sugerir negociações que se estabeleçam pelas formas de uso do espaço.
O TSSP experimenta justamente estabelecer o projeto como um dos mais efetivos meios para a formulação de questões e de associações entre agentes, territórios e programas. Seu esforço de síntese visa a articulação de diversas ações – pesquisas, consultorias, trabalho social, o PMH, o Plano Urbano, PAIs – na elaboração de um Mapa de Oportunidades.Trata-se de uma investigação programática e espacial que anuncia as potencialidades existentes na associação das diversas escalas de projeto que incidem sobre o Cabuçu.
Entre as oportunidades identificadas, recebe destaque a zona buffer entre a Cantareira e o tecido urbanizado. Nela convergem os principais interesses, o que expõe com maior retórica osconflitos sociais, econômicos e ambientais. A proposta é a construção de um complexo de parques, equipamentos de saúde e de manejo ambiental que tenham capacidade de trazer uma escala metropolitana de atividadese aproximar a população local a novas fontes de emprego. No fundo, trata de conciliar as dinâmicas econômicas com as demandas ecológicas que caracterizam a pauta do século XXI.
O direito ao verde revelou-se já nas vozes conscientes da população do Cabuçu, e deve ser passível de expressão por um conceito de paisagem. Essa noção um tanto abstrata é de difícil definição hoje em São Paulo, mas é um interessante tema a ser investigado. Se for plausível a hipótese de que a emergência de uma nova classe média pode trazer consigo outros valores urbanos, então é capaz também que desse contexto emerjam outras idéias de paisagem e outras formas de se fazer a cidade.
sobre o autor
Fernando de Franco Mello é arquiteto e doutor pela FAUUSP e sócio diretor do escritório MMBB Arquitetos. Foi nomeado pelo IABR curador local do Test Site São Paulo