A realização de restaurações de obras do Movimento Moderno é muito recente e, além de ter despertado grande interesse, trouxe à tona novos problemas, seja em relação a critérios que devem ser adotados no caso específico desses bens, seja quanto à sua natureza específica e particular.
O primeiro aspecto a destacar é de ordem conceitual e refere-se à contradição presente no propósito de se preservar uma arquitetura que, de modo nenhum foi concebida com o objetivo de se perenizar. A arquitetura moderna devia ser, antes de tudo, a expressão de sua época. Devia, ademais, ser dotada da flexibilidade e da capacidade de se adaptar às mudanças que a vida contemporânea impõe, em conseqüência da dinâmica característica dos tempos modernos. Conservar, manter a configuração inicial era, portanto, algo absolutamente antagônico a uma concepção que reconhecia seu papel na mudança e no processo de transformação constante da realidade.
Hoje, porém, transcorridos mais de oitenta anos das primeiras manifestações do Movimento Moderno, se acentuou o distanciamento em relação aos seus preceitos fundadores. As revisões de que foi objeto aquele movimento e as críticas e questionamentos que sofreu, contribuíram para um afastamento gradativo do envolvimento direto na defesa de seus postulados iniciais, dando lugar, de um lado, a uma avaliação menos apaixonada e, de outro, ao reconhecimento de seus méritos. Os seus exemplares mais representativos, antes paradigmas polarizadores das discussões de seus contemporâneos, passaram a ser vistos mais como referências históricas de uma trajetória, do que como modelos operativos. Paradoxalmente, a arquitetura do eterno presente - para usar a expressão de Giedion - passou a ser objeto da história.
A partir daí, começou a entrar em consideração a necessidade de preservação de seus remanescentes mais importantes que, por ventura, estivessem sob risco de desaparecimento. Várias iniciativas para a preservação de exemplares significativos do movimento moderno foram levadas a efeito. Propostas extremamente polêmicas ou mesmo inaceitáveis tomando em consideração os parâmetros tradicionais de preservação – como a reconstrução do Pavilhão de Barcelona de Mies Van der Rohe e o Escritório do Conjunto Mathenesse de Oud – foram realizadas, sugerindo uma completa revisão dos critérios aplicáveis à preservação das obras da arquitetura moderna.
Além destes, outros exemplos podem ser citados como referência para a análise dos problemas que se apresentam quando se trata da conservação de obras de arquitetura moderna. A restauração da Piscina dos Pingüins no Zoológico de Londres, de B. Lubetkin, a Casa Schindler e a Casa Schroeder de G. Ritvelt são alguns dos exemplos de obras recentemente restauradas. Embora tenham sido tratadas a partir do conhecimento acumulado no campo da preservação, tais exemplos têm oferecido dificuldades que não encontram precedentes na experiência anterior neste campo. A obra de Lubetkin não apresentava grandes dificuldades em relação à sua configuração original. Mas a recomposição de seus elementos trouxe problemas inusitados. Lubetkin havia deixado impressa a textura corrugada da fôrma em sua parede de concreto. Já a restauração cogita a recriação da textura característica através de revestimento.(3) A casa Schindler, por sua vez, oferece desafios que certamente ocorrerão com freqüência no futuro. Trata-se da fragilidade intrínseca de certas obras do Movimento Moderno. Tais edifícios foram realizados, em geral, com o emprego de processos experimentais, com materiais trabalhando em seu limite. A conseqüência inevitável é a sua degradação precoce. O problema da restauração da casa Schindler é, simultaneamente, de recuperação do edifício mas também de correção das deficiências técnicas de sua fatura. Há neste caso, uma intervenção de restauração que poderá trazer alterações à concepção original, mas nem por isso menos legítima.
A casa Schroeder é, talvez, o exemplo que mais se aproxima do caso da Casa da Rua Santa Cruz em São Paulo, objeto de nosso interesse. Trata-se de um projeto concebido para permitir organização flexível e assimilar adaptações com o passar do tempo. Tais alterações foram de fato realizadas, de forma coerente com as características do projeto original, para atender às necessidades de seu único proprietário. Dir-se-ia que as alterações realizadas se incorporaram de forma legítima ao edifício. A restauração, contudo, optou por fazer o edifício retornar à forma primitiva, recompondo-o segundo a sua configuração inicial. Esta opção acabou por prevalecer dado o valor documental e paradigmático deste edifício e, por conseguinte, à importância de ser recuperado conforme o projeto original.
Casa da Rua Santa Cruz
Projetada em 1927 e concluída em 1928, entre os atributos assinalados para o tombamento desta residência, destaca-se, sem dúvida, o pioneirismo da iniciativa de construção do primeiro edifício moderno do Brasil. Embora não se trate de ação isolada, se considerarmos os primeiros projetos de Flávio de Carvalho, os artigos de Rino Levi, e a ação quase simultânea de outros arquitetos menos conhecidos, não se pode negar a Warchavchik os méritos do ato inaugural de construção do primeiro edifício moderno no Brasil. Mas o que caracteriza esta obra como representativa dos princípios do movimento moderno?
Na verdade, não há muito mais do que um volume prismático, desprovido de elementos decorativos. A distribuição interna não traz muitas novidades e a composição da fachada ainda guarda vínculos com os procedimentos de composição tradicionais, de desenho absolutamente simétrico com a porta principal no eixo central do conjunto. A forma geométrica esconde, por traz de sua aparente pureza, uma cobertura tradicional de telhas cerâmicas, que termina numa prosaica varanda na face lateral e posterior. É o próprio autor da obra quem afirmou:
"Não tive coragem de construir a casa com cobertura de terraço-jardim, como teria desejado. Ainda não existiam na praça os materiais isolantes adequados. Cobri o telhado, embutido entre as paredes, com telhas coloniais." (1)
Além disso, o arquiteto argumentava em defesa de sua concepção que o uso deste elemento correspondia a uma adaptação às condições locais conferindo um caráter brasileiro à obra. Independentemente dos méritos de tais justificativas, o que se verifica é que a intenção de realizar uma obra moderna, foi de algum modo traída, se observarmos, por exemplo, alguns expedientes como a janela de canto fingida, junto à extremidade da mencionada varanda. Esse tromp l’oeil em três dimensões só tem sentido para manter a simetria da fachada. Não há nenhuma outra razão que justifique a sua presença.
Aliás, a adoção destas janelas de canto só foi possível a custa de muito artifício, pois a estrutura utilizada no edifício é ainda a tradicional caixa de alvenaria com o pavimento superior e cobertura realizados com estrutura de madeira.
Há vários outros aspectos que denunciam vínculos com a arquitetura tradicional. As janelas do pavimento superior ainda mantêm proporções predominantemente verticais e os detalhes decorativos não foram eliminados integralmente, uma vez que há elementos de gosto Decô como a grade da porta de acesso, "...o reboco rústico de cimento branco caolin e mica", o forro pintado com "esmalte prateado a duco" e a moldura da escada interna, a qual, além disso, mantém o característico degrau de convite.
Além da casa, o jardim é o outro aspecto importante dessa obra. A sua concepção teria surgido em consonância com o projeto da casa, o que lhe daria a condição de ser o primeiro jardim moderno no Brasil. De fato, a escolha predominante de cactácias e espécies pouco usuais nos jardins convencionais, supostamente características do ambiente tropical, acabou por conferir um caráter particular ao paisagismo moderno e brasileiro. A fórmula, influenciada com toda certeza pela simplificação cromática e figurativa da pintura de Tarsila do Amaral, se mostrou bastante eficaz, estabelecendo, a partir daí, uma identidade clara para o desenvolvimento do paisagismo moderno. Mais uma vez, porém, a concepção do arranjo das massas de vegetação e de sua distribuição estão comprometidos com os procedimentos tradicionais, seja por força da presença condicionadora da arquitetura, seja por quaisquer outros fatores. Se as espécies têm atributos próprios, o jardim é absolutamente simétrico, numa seqüência de distribuição perfeitamente hierarquizada das massas. Mais que isso, a vegetação aqui não tem autonomia e não estabelece nenhuma relação de contraponto à arquitetura, como mais tarde virá a acontecer, mas tão somente emoldura o edifício.
Apesar das limitações apontadas, não há dúvida que a casa da Rua Santa Cruz representa avanços significativos, particularmente se considerarmos que o seu projeto foi pensado de maneira integrada, não apenas com o paisagismo, mas incorporando também a preocupação com o desenho de móveis compatíveis com a nova arquitetura. Tais avanços, contudo, se dão de forma hesitante, sujeitos ainda aos compromissos com a herança do passado e às concessões impostas pelas limitações e disponibilidades locais.
Alguns autores afirmam que Warchavchik estaria, desde cedo, familiarizado com as teorias de Le Corbusier, a julgar por seu texto "Acerca da Arquitetura Moderna". Porém, se for considerada a persistência dos procedimentos tradicionais apontados, é mais provável que Warchavchik estivesse ainda sob a influência do período em que foi discípulo de Piacentini. Não é por outra razão que, mais tarde, Lúcio Costa se referirá ao "... romantismo simpático da casa de Vila Mariana data de 1928" (2)
Assim, o mérito da obra reside mais no fato de se tratar da iniciativa pioneira, do que nos atributos intrínsecos de sua concepção. A condição de exemplar de transição, por sua vez, ao invés de desmerecer sua importância confere-lhe um significado documental particular e é a partir dele que devem ser pensadas as alternativas de sua restauração.
Reforma
A obra foi revista pelo próprio arquiteto poucos anos após, em 1934. As alterações realizadas, porém, não trazem ganhos significativos. Houve apenas a ampliação da sala de estar, que avançou sobre a varanda e, no pavimento superior, o reagenciamento do quarto principal, ampliado sobre o terraço existente, a construção de um novo banheiro e, ainda, a substituição do telhado da varanda por uma laje, proporcionando a criação de um terraço à volta dos quartos. As demais alterações não acrescentam novas dependências, apenas alteram elementos construtivos e introduzem novos detalhes arquitetônicos, como a marquise lateral.
Esta reforma, embora realizada em época muito próxima à da construção, comprometeu sua concepção original. A adoção de novos elementos estranhos ao repertório até então desenvolvido, denuncia, de algum modo, uma assimilação superficial de certas influências. A introdução de uma parede curva numa volumetria inicialmente disciplinada e rigorosa, mais parece resultado de um capricho do que de uma reformulação dos elementos característicos de seu repertório. Mas há outras contradições ainda mais intrigantes, como a substituição dos caixilhos originais de ferro por janelas de correr de madeira, em conflito com a sempre propalada busca da utilização dos materiais e das técnicas mais avançados. A forma da nova marquise na fachada lateral também denuncia influências recém assimiladas de Le Corbusier que, todavia, parecem elementos estranhos e sem relação com a arquitetura de Warchavchik.
As alterações introduzidas trazem, portanto, uma série de dúvidas quanto a pertinência de sua adoção, o que leva a crer terem sido realizadas mais para atender as contingências da vida familiar do que com o propósito de promover revisões das concepções arquitetônicas do autor (4).
notas
1
Ferraz, Geraldo. Warchavchik e a Introdução da Nova Arquitetura no Brasil: 1925 a1940, São Paulo, MASP, 1965, p51
2
Idem, ibidem, p.50
3
Moore, Rowan. Il Mondo Moderno Invecchia in Abitare, 1991, n º 295, p. 255.
4
Os argumentos acima desenvolvidos embasam nossa proposta de restauro da Casa da rua Santa Cruz e que poderá ser lida em outra sessão de Vitruvius: CARRILHO, Marcos José. "A restauração da Casa da rua Santa Cruz". Minha Cidade, nº 009. São Paulo, Portal Vitruvius, dez. 2000 <www.vitruvius.com.br/minhacidade/mc009/mc009.asp>.
sobre o autor
Marcos José Carrilho é arquiteto (Universidade Federal do Paraná, 1978), mestre em História da Arquitetura pela FAUUSP (1994), visiting scholar na Graduate School of Architecture, Planning and Preservation, Columbia University (Nova York, 1995), professor das disciplinas de Projeto I e Técnicas Retrospectivas da FAU-Mackenzie e arquiteto do IPHAN - 9ºSR - São Paulo.