Por pertencerem ambos ao seleto clube dos arquitetos de renome internacional também chamado de star-system, Peter Eisenman e Rem Koolhaas deveriam ser mais parecidos. Não o são. Dois arquitetos, dois homens brancos, dois discursos completamente distintos. O primeiro esteve em Michigan em novembro de 97, falou de si e não deu espaço para perguntas. O segundo esteve aqui em fevereiro de 98, falou dos outros e no final ninguém conseguiu perguntar nada.
Eisenman chegou 45 minutos atrasado, vestia sua tradicional camisa azul clara com gravata borboleta bourbon e suspensórios. Contou piadinhas de futebol e disse que graças ao seu conhecimento esportivo acabara de ser contratado para projetar um estádio no Arizona (projeto aparentemente engavetado).
Koolhaas chegou meia hora antes, vestia paletó e calças pretas com camisa branca. Arrumou ele mesmo os slides e nem mencionou que naquela tarde tinha sido selecionado para projetar o anexo do famoso prédio do IIT em Chicago, obra prima de Mies Van der Rohe. A primeira imagem projetada: Singapura. Clamando pela necessidade de relativização dos conceitos de modernidade e modernização, Koolhaas mostrou diversas imagens de cidades do sudeste asiático, onde segundo ele o processo de modernização está acontecendo em tempo real e comprimido. As transformações sofridas pela Europa em 200 anos (de 1750 a 1950) estariam se dando em uma única década, tendo Hong Kong como eixo. As imagens continuam, cidades erguidas do dia para a noite, arranha-céus convivendo com campos de arroz, capitalistas especulativos lado a lado com os excluídos camponeses. Segundo Koolhaas, é ali que o mundo atual se revela, é somente através daquela arquitetura aparentemente aleatória que podermos entender o que acontece no mundo real.
Eisenman, ao contrário, começou falando de Mies e reforçando a diferença entre a transgressão Miesiana e a imitação daqueles que o seguiram. Mostrando slides de seus próprios projetos, Eisenman explica que os melhores arquitetos foram e serão aqueles que superam as normas. Projetando imagens da renascença e barroco italianos, passou a falar das transgressões em Alberti e Bramante, incluindo a si mesmo como o último dos transgressores. Seu discurso trata das normas de composição formais, e qualquer questão fora delas é irrelevante (2). Em nome de um humanismo supostamente perdido, Eisenman resume a falência da arquitetura moderna em quatro lições: uma promessa social exagerada e nunca cumprida, o arquiteto como super-herói, a ausência de popularidade e a facilidade com que foi consumida pelo capitalismo internacional.
Nesse último ponto Eisenman se aproxima de Koolhas que vai dissecando a realidade urbana do sudeste asiático, fronteira entre a China milenar e o capitalismo atemporal. Continua mostrando fotos, gráficos e planilhas (nenhum desenho ou maquete), e discutindo o papel da arquitetura no mundo contemporâneo sem contudo pretender ditar soluções ou sequer apontar caminhos. Seu discurso é diagnóstico, reflexivo e quase apocalíptico. A prática tradicional da arquitetura como arte, diz Koolhaas, não funciona na escala do enorme (3).
Apesar de apontar com suspeita segurança as razões do fracasso da arquitetura moderna, Eisenman insiste em trabalhar dentro das mesmas regras. Desdenha a aprovação popular, faz piada da popularidade de Frank Gehry e diz que o Guggenheim de Bilbao foi a última catedral do milênio. Colocando sempre a si mesmo como criador capaz de tudo resolver, explica que hoje num estádio, o replay no telão é mais importante que o gol, por isso a imagem do edifício é mais importante que sua função utilitária. Arquitetura para Eisenman é a simulação da simulação. As imagens projetadas são extremamente sedutoras, mas o discurso insiste na idéia de que a arquitetura tem valor apenas em si mesma.
A mesma modernidade que Eisenman disfarça, assusta Koolhas. Na sua definição de Singapura como "Disneylândia com pena de morte", esconde-se um espanto, um estranhamento. Algo do mundo de urbanização acelerada e crescimento explosivo não cabe na janela da sua percepção e ele se esforça para escancará-la, para ampliar e multiplicar seus pontos de vista. Se busca um equilíbrio qualquer possível, este só pode ser dinâmico.
Ao contrário, Eisenman tem prontas e definidas suas convicções e certezas. Optando por fechar as janelas, ele se esforça para encontrar a coerência interna e imutável da criação arquitetônica (4). Reforça a idéia de que o arquiteto é um criador de imagens, e que o desafio atual é transformar mecanismos (funcionalismo) em organismos. Mostrando seus últimos projetos, um estádio de futebol onde a grama é retrátil e uma igreja feita de telas de TV, Eisenman provoca dizendo que não interessa mais o funcionamento, mas sim a simulação do funcionamento. Dentro da lógica Eisenmaniana nada interessa que não sejam as questões internas da composição formal. Less is less. Toda referência externa é dispensável e inútil dada a impossibilidade de comunicação por qualquer que seja a linguagem (Derrida). Eisenman quer saber do cerne, do que reside no eixo de sua formação formalista. O equilíbrio esperado é estático, apesar das imagens frenéticas.
Koolhaas, por sua vez, debruçado em estatísticas sobre a produtividade dos arquitetos, pergunta qual o nosso futuro num mundo onde edifícios de 30 andares são produzidos em 3 semanas por um único homem diante de um computador. Numa tentativa desesperada de entender a condição urbana, ele inventa o termo COED (Cities of Exacerbated Differences) para descrever as cidades atuais. Koolhaas quer saber do que esta do lado de fora, do que transborda sua formação eurocêntrica. More is more, parece ser a lógica da produção arquitetônica contemporânea segundo Koolhaas.
Entre duas perspectivas tão distintas reside um dos dilemas atuais da arquitetura. Concentrar-se na sua própria lógica voltando-se para dentro, correndo o risco do isolamento perpétuo; ou esforçar-se no desenvolvimento de relações externas, correndo o risco da perda da coerência. Eisenman defende claramente a primeira estratégia, que podemos chamar de less is less em substituição a ambos os paradigmas – Miesianos (less is more) e Venturianos (less is bore). Koolhaas faz a opção pela segunda, que poderíamos chamar de more is more, para usar um termo cunhado por ele mesmo. Nas palavras de Michael Speaks, um representa uma vanguarda de forma enquanto o outro representa uma vanguarda de processo (5). No discurso de ambos transparecem suas angustias, no caso de Eisenman disfarçado de certezas que sabemos serem provisórias, no caso de Koolhas disfarçado de incertezas que sabemos serem estratégicas. Less is less, more is more, entre os dois extremos oscila uma arquitetura que segundo Koolhaas, não dá conta de sua própria modernidade.
notas1
Crônica das palestras de Peter Eisenman (21/11/97) e Rem Koolhaas (06/02/98) no College of Architecture, University of Michigan, Ann Arbor, Michigan, EUA.
2
GHIRARDO, Diane. "Eisenman’s Bogus Avant-Garde", Progressive Architecture, novembro de 1994, p. 70.
3
KOOLHAAS, Rem. "Bigness", S,M,L,XL, New York, Monacelli Press, 1995.
4
LARA, Fernando; MECHKUNOV, Ivan. "Eisenman Parnasiano", Revista L.A., fev. 2000, www.puccamp.br/~fau/LA/artigos/fernando/fernando.htm.
5
SPEAKS, Michael. "It's Out There… formal limits of the American Avant-Garde", Architectural Design, 1998, p. 23-31.
sobre o autor
Fernando Lara é arquiteto, professor da PUC-Minas, doutorando pela University of Michigan, EUA onde é atualmente pesquisador residente do Institute for the Humanities