Estas notas se referem às formas e possibilidades de aferição do saber projetar em função da inclusão do curso de Arquitetura e Urbanismo no “provão” do INEP no ano de 2002.
Descreve e tenta fundamentar a compreensão do que constitui o saber-fazer arquitetura e urbanismo e da impossibilidade de avaliar-se este saber-fazer, fora do projeto.
Questões fundamentais
Recentemente li o perfil do Arquiteto e Urbanista definido pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Maputo. Destacavam-se três categorias diversas para a definição deste perfil: o que o arquiteto deve conhecer, o que deve saber e o que deve saber-fazer. Estas três categorias podem-se aplicar, genericamente, a qualquer profissão; de fato, existem diferenças significativas entre o conhecimento, o saber e o saber-fazer.
O que importa para determinar a especificidade de cada perfil profissional é o estabelecimento das relações entre o conhecer e o saber e entre estes dois e o saber-fazer.
No caso do Arquiteto e Urbanista, esta relação é muito particular. Enquanto na maioria das engenharias a relação entre o saber e o saber-fazer decorre de uma relação entre teoria e prática, entendida esta última como aplicação da teoria, a relação entre teoria e prática em arquitetura e urbanismo decorre de uma posição metodológica diversa.
Enquanto nas engenharias, muito simplificadamente, a teoria se constitui em corpo homogêneo de leis que descrevem e permitem prever comportamentos na prática, na arquitetura e no urbanismo não parece haver outra teoria do que a reflexão crítica sobre a prática.
Todo esquema metodológico da profissão do arquiteto pode-se reduzir a um processo de análise-síntese-avaliação (1) onde não cabe um corpo teórico pré-existente. Lamentavelmente, o processo de síntese, central na atividade projetual, é suficientemente obscuro como para permitir as mais diversas interpretações: desde a super-valorização da “intuição” até os mais variados formalismos. Questões como “caixa preta” ou “caixa transparente” (2) trazem pouca luz sobre o assunto.
Daí que assuma caráter fundamental no processo metodológico do projeto a avaliação e a retro-alimentação. Isto constitui a afirmação de que, em arquitetura, a teoria é, basicamente, reflexão crítica sobre a prática. E esta reflexão crítica corresponde à toda a tríade vitruviana: questões de construtibilidade, de utilidade e estéticas.
É necessário aprofundar ainda na questão do processo metodológico próprio ao saber arquitetônico e urbanístico e às relações entre o conhecer, o saber e o saber-fazer.
Usando o esquema das “leis da hipótese” de Peirce (3):
DEDUÇÃO Regra ¯ Caso ¯ Resultado |
INDUÇÃO Caso ¯ Resultado ¯ Regra |
ABDUÇÃO Resultado ¯ Regra ¯ Caso |
||
Dentro destas três categorias metodológicas analisadas por Peirce podemos, grosseiramente, intuir que a relação entre o saber e o saber-fazer se modifica de forma substancial entre uma e outra.
Na dedução, sabida a regra (que de fato pode ser sabida) e aplicada a cada caso, obtêm-se um resultado. O que equivale dizer que entre o saber (a regra) e o saber-fazer (a aplicação da regra ao caso para obtenção do resultado) interpõe-se somente a prática da aplicação da regra.
Na indução, a análise do caso e do resultado conduz à regra, conseqüentemente, o saber constitui-se no método de análise e na sua relação com a regra. O que equivale a dizer que entre o saber (o método) e o saber-fazer (a aplicação do método para a elaboração da regra) interpõe-se, também, somente a prática de aplicação do método.
Na abdução, somente pode-se saber o resultado para elaboração da regra como hipótese a ser confirmada no caso. Mas como o resultado é, por definição, sempre novo e objeto de partida ele não pode constituir saber e, sendo a regra hipótese (a ser confirmada) deve ser projeto, intenção, tentativa. O saber constitui portanto a “Ciência do olhar atento” (4) e o saber-fazer a prática da elaboração de hipóteses que não é decorrente mas paralela àquele olhar atento.
É evidente que todo conhecimento humano constitui-se de uma composição variável dos métodos sucintamente descritos acima. Mas cada tipo de saber, e cada profissão correspondente, possui uma ênfase especial numa das três categorias.
Parece óbvio que as engenharias são eminentemente dedutivas; o seu saber-fazer corresponde à aplicação de regras que constituem um corpo teórico coerente.
Parece também evidente que boa parte da pesquisa biológica tem uma incidência significativa dos processos indutivos regidos por métodos precisamente definidos.
Igualmente, parece evidente que o saber arquitetônico e urbanístico (e de resto boa parte do saber das ciências humanas) possui um forte caráter abdutivo.
O projeto é, por definição, hipótese.
Em relação à aferição de conhecimento, enquanto nas primeiras situações a aferição do saber corresponde a uma parte significativa da aferição do que virá a ser o saber-fazer, no caso da arquitetura e urbanismo, pode não significar nada relevante.
Centrado na transformação, o projeto utiliza uma vasta área de saber e uma mais vasta área de conhecimento; mas não é por elas determinado. O saber das diversas técnicas e o conhecimento dos diversos processos sociais são condição necessária à arquitetura e ao urbanismo mas não são condições suficientes.
O ensino de arquitetura e urbanismo
O ensino de arquitetura, decorrente destas características referidas, assume uma particularidade: paralelamente ao acúmulo de conhecimentos e saberes específicos durante todo o curso, exercita-se, desde o início até o final do curso, a prática projetual a diversos níveis de complexidade.
Esta característica é comum a todas as faculdades em todos os métodos e projetos pedagógicos.
Na nossa faculdade, a FAUFBA, o ensino de projeto foi definido, a partir da reforma curricular, numa seqüência de cinco ateliês mais um Trabalho Final de Graduação.
A lógica da elaboração das ementas e dos conteúdos programáticos dos ateliês foi determinada pelo exercício de intervenções projetuais espaciais desde o primeiro ateliê cuja complexidade estrutural, programática e funcional vai aumentando à medida que o curso avança.
Exercita-se, assim, a prática da hipótese projetual e a avaliação correspondente, condicionando-a a circunstâncias diversas, mas mantendo a essência transformadora do projeto, desde o Ateliê 1 até o Ateliê 5.
Obviamente, as exigências crescentes incorporam os saberes e conhecimentos específicos que os estudantes vão acumulando ao longo do seu curso na vertente de disciplinas teóricas. E esta incorporação se dá tanto na análise prévia das condicionantes da hipótese projetual quanto no processo de avaliação da hipótese.
Esta é a razão pela qual o exercício de projeto tenha uma carga de simulação significativa; e por este viés, certas habilidades próprias do ofício constituem parte significativa do aprendizado (do saber-fazer): desenhar, diagramar, elaborar modelos (analógicos ou digitais), confeccionar mapas e planos, constituem, mais do que instrumentos de expressão ou representação, instrumentos de apoio essencial para a prática da hipótese projetual e as suas sucessivas avaliações.
A sucessão de projetos que o aluno elabora culmina com o Trabalho Final de Graduação, onde ele evidencia a sua capacidade plena do “saber-fazer” num trabalho individual, complexo e relativamente completo (5).
A avaliação do saber-fazer do arquiteto e urbanista
Desde este ponto de vista, é impossível avaliar o saber-fazer do arquiteto e urbanista fora da sua atividade específica que é o projeto. Não se descarta a possibilidade de avaliar uma série de conhecimentos específicos que constituem parte essencial do saber do arquiteto e urbanista, mas esta avaliação está muito longe de definir a sua qualificação profissional.
A prática profissional do arquiteto e urbanista está historicamente ligada à avaliação do projeto como forma de definir o seu “saber-fazer”. O concurso tem sido, sistematicamente, o processo de seleção constitutivo da profissão (6).
Dentro da prática acadêmica concreta no Brasil, o ensino de arquitetura e urbanismo possui uma referência excepcional que cobre todo o universo territorial com um já longo percurso de 13 anos.
Refiro-me aos sucessivos concursos para Trabalhos Finais de Graduação promovidos pela ABEA até o ano passado e realizado este ano pelo IAB.
Os prêmios “Opera Prima” e “Prêmio Paviflex” constituem um amplo mosaico publicado de mais de trezentos Trabalhos Finais de Graduação selecionados, escolhidos entre mais de três mil e quinhentos trabalhos de todo o país durante o período referido.
Somaram-se, recentemente, outros concursos para Trabalhos Finais de Graduação que, da mesma forma, contribuem para a formação de um quadro preciso do que se constitui o “saber-fazer” de um formando de arquitetura e urbanismo.
O quadro referencial constituído pelos trabalhos selecionados nestes concursos é um instrumento fundamental para uma avaliação comparativa do ensino de arquitetura e urbanismo em todo o território nacional.
Conclusão
As questões colocadas acima, que constituem a minha compreensão do perfil do Arquiteto e Urbanista e do seu conhecimento, saber e saber-fazer e, conseqüentemente, a minha prática como Professor Titular de Projeto da FAUFBA, que, creio, coincide com a absoluta maioria dos professores de projeto desta Faculdade, permitem-me concluir sem dúvidas significativas que não há possibilidade de avaliação de capacidade profissional do Arquiteto e Urbanista, fora da avaliação concreta da sua produção: o projeto.
Post Scriptum
Tem sido freqüentemente alegado que a análise dos Trabalhos Finais de Graduação como método de avaliação seria extremamente onerosa. Acho isso uma falácia. A existência de um número elevado de trabalhos considerados “bons” nos concursos acima referidos, permite uma referencia clara do que constitui, hoje no Brasil, um bom trabalho de graduação de arquitetura. Bastaria obrigar a todas as Faculdades de Arquitetura do Brasil a formatar, de forma análoga às dos concursos, todos seus TFGs, que poderia ser avaliada, por comparação e objetivamente, a qualidade de cada faculdade.
Quanto aos outros saberes não projetuais imprescindíveis para o exercício pleno da profissão de arquiteto e urbanista: não seria mais correto aplicar o “provão” ao corpo docente? Ao menos isto produziria uma reciclagem urgente e necessária.
Se o “provão” questiona o título de graduação do estudante; por que não questionar também os títulos de “graduação”, “mestre” e “doutor” do corpo docente?
Se, para ser arquiteto, é necessário submeter-se a uma prova adicional; por que não é necessário submeter-se à mesma prova para ser professor de arquitetura? Ou é verdade aquilo de que “quem sabe faz, quem não sabe ensina”?
Será que a posição dos professores de arquitetura frente ao “provão” seria tão passiva quanto é atualmente se o “provão” fosse com eles?
Sim à avaliação dos cursos de arquitetura: 1) avaliando os TFGs de todos os alunos de todas as faculdades em comparação com os TFGs reconhecidos como bons nos concursos atualmente em vigor; e 2) avaliando periodicamente o corpo docente de todas as faculdades mediante um “provão” para professores.
Não seria uma boa fórmula?
notas
1
BROADBENT, Geoffey. Diseño arquitectónico. Arquitectura y Ciencias Humanas. Barcelona, Editorial Gustavo Gili. 1976, p. 464.
2
SILVA, Elvan. Uma Introdução ao Projeto Arquitetônico. Porto Alegre, Editora da UFRGS. 1983, p. 122.
3
Citado em: SANTOS NETO, Isaias de Carvalho. Pesquisa: aventura entre métodos e mitos. Salvador, mimeo, 2001.
4
FERRARA, Lucrécia D'Aléssio. "A Ciência do Olhar Atento". 1986/87.
5
Relativamente completo na medida em que evidencia, nos elementos do próprio projeto, a competência potencial para sua elaboração completa já que o trabalho completo de arquitetura e urbanismo depende de especialidades auxiliares ao mesmo, impossíveis de realizar num trabalho acadêmico.
6
Obviamente isto não se refere a uma recorrência majoritária do concurso como modo de contratação para elaboração de projetos, mas ao fato dos trabalhos de concursos, vencedores ou não, terem constituído as referências principais para parte significativa da profissão atual do arquiteto e urbanista.
sobre o autor
Alberto Rafael (Chango) Cordiviola é arquiteto (UFBA, 1974) e professor titular de projeto da mesma escola. Exerce atividade profissional em arquitetura e urbanismo desde 1970, como colaborador, individualmente e associado a diversos escritórios e profissionais, tendo vencido concursos de arquitetura e urbanismo.