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LARA, Fernando Luiz. Depois do World Trade Center? Arquitextos, São Paulo, ano 02, n. 017.02, Vitruvius, out. 2001 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/02.017/836>.

Mesmo sendo triste ver qualquer edifício morrer, quando quase 6 mil vidas humanas são perdidas a arquitetura em si torna-se irrelevante. Mas nós que lidamos com a cidade e seus edifícios estamos envolvidos demais na questão para nos darmos ao luxo de sermos meros espectadores. Ainda que de maneira nenhuma a arquitetura e o urbanismo sejam responsáveis pela tragédia (não há arquitetura que possa evitar atos de tal brutalidade) existem questões a serem levantadas para que se a história não se repita nem como farsa.

A sensação que fica depois do torpor inicial é de que o mundo mudou em poucos minutos, e para pior. Nova corrida armamentista, recessão global generalizada, retração do fluxo de pessoas pelo mundo (poucos por livre escolha, muitos por cerceamento) e acirramento das divisões oriente/ocidente e norte/sul são algumas das possíveis conseqüências sombrias do atentado terrorista. Uma pequena luz adiante indica a possibilidade de que se aprimorem os organismos internacionais de justiça (International Court) e cooperação (ONU e ONGs) mas as curvas são tantas que não se vê o fim do túnel.

No caso da arquitetura e do urbanismo, muito ainda será escrito sobre o atentado e com certeza com mais propriedade quanto maior for possível o distanciamento. Mas mesmo no calor da hora Peter Marcuse (Columbia University) foi muito feliz em resumir alguns dos pontos chave num texto que circulou em lista eletrônica sobre urbanismo (1). Marcuse prevê impactos em todas as grande cidades do mundo com a aceleração do processo de descentralização dos espaços de trabalho (é importante lembrar que a classe média americana já reside majoritariamente em subúrbios de baixíssima densidade); redução ou mesmo desaparecimento da corrida por edifícios cada vez mais altos; aumento de medidas de segurança em geral e de monitoramento em especial; declínio ainda maior no uso de espaços públicos de qualquer natureza que passarão a ser controlados e monitorados em nome da segurança pública, implicando dificuldades crescentes para quaisquer manifestações. Por último, Marcuse conclui que enquanto os espaços públicos se tornarão cada vez menos públicos, tende a aumentar ainda mais a atração dos shopping malls.

Mas o sombrio cenário traçado por Marcuse não traz nada de novo a não ser o agravamento e a aceleração de transformações que já vinham acontecendo há muito tempo, e das quais o World Trade Center era também um produto. John Young (2) nos lembra que no final dos anos 60 foi extremamente controverso o projeto e a construção do WTC. Projetados e construídos alguns anos após as famosas críticas à arquitetura e ao urbanismo modernos articuladas por Jane Jacobs (1964), Robert Venturi (1966) e Aldo Rossi (1967), os edifícios projetados por Minoru Yamasaki (1921–1986) continham em si tudo que os três autores acima mais criticavam. A sedução da tecnologia tão própria do Movimento Moderno chegava ali a sua expressão máxima na forma de dois prismas regulares de vidro com pilaretes verticais externos intertravados, alcançando mais de 110 andares, plantados na parte baixa da ilha de Manhattan. Totalmente fora de escala e desproporcionalmente maiores que tudo ao redor (a maioria dos arranha-céus de Manhattan estão em mid-town, 3 quilômetros ao norte), o WTC já nasceu em desacordo com o que diziam Rossi e Venturi e foi vítima de duras críticas por parte do meio arquitetônico na época. Enquanto Jane Jacobs louvava o poder da rua como espaço de encontro e da diversidade do Greenwhich Village a algumas quadras dali, as duas torres de Yamakaki eram a mais clara representação da idéia corbusiana das torres isoladas na paisagem.

Ou mais complicado ainda, como já se criticava no final dos anos 60, era a relação entre o capital especulativo e a arquitetura moderna. Adotada pelas corporações norte-americanas como o estilo do pós-guerra, a versão International Style da arquitetura moderna havia se transformado em ícone do capitalismo ocidental. Construir mais em menos espaço de forma mais barata e racional, que na Europa dos anos 20 era bandeira revolucionária por melhores condições de habitabilidade, passou nos anos 60 a bandeira do modelo de desenvolvimento dos EUA e sua esfera de influência.

A história do WTC mais uma vez é exemplar. Quando a prefeitura de New York começou a passar limitações de gabarito nos anos 60, o mega investidor imobiliário Robert Moses descobriu que a Port Authority (entidade governamental que regula os portos, pontes e aeroportos – !!! – de New York) tinha autonomia com relação a construções e não precisava se submeter às normas de gabarito. Convencida da lucratividade e do impacto simbólico do empreendimento, a Port Authority lançou então o World Trade Center.

Criticado também pelos bombeiros (pela evidente dificuldade de acesso e de evacuação em caso de emergência), os engenheiros de Yamasaki provaram à época que o edifício podia resistir ao impacto de um avião ou a um incêndio de grandes proporções (a estrutura intertravada distribuiria as cargas). O que ninguém nunca imaginou é que tanto o impacto quanto o incêndio ocorreriam simultaneamente e com tal grandeza. Outro arrojo estrutural do edifício é a sobrecarga nos últimos 10 andares (muito mais pesados que os demais) que funcionava como contrapeso aos esforços do vento que mesmo assim faziam as torres oscilarem cerca de meio metro no topo. Esta sobrecarga acabou sendo fatal quando os pilares que sobreviveram intactos ao impacto das aeronaves, já estando sobrecarregados por receberem a carga dos pilares danificados, foram sendo afetados pelo calor do incêndio de altíssimas temperaturas da queima do querosene de aviação.

Chamado a projetar os edifícios, Yamasaki era na época um dos mais celebrados arquitetos dos EUA, famoso por seu arrojo tecnológico e por sua penetração nos altos círculos financeiros. Triste é perceber que Minoru Yamasaki será lembrado nos livros de história da arquitetura do século 20 por dois edifícios demolidos. O conjunto Pruitt-Igoe em Saint Louis implodido em 1972 e as torres gêmeas de New York. Por pouco São Paulo não teria também sua torre projetada pelo escritório Yamasaki (projeto em forma de templo hindu que chegou a ser divulgado em 1999), este acertadamente abortado ainda no projeto sem que se tenha notícia de vítimas fatais.

É muito difícil especular sobre o futuro da arquitetura depois do atentado ao WTC. Se as transformações urbanas já em andamento serão aceleradas como prevê Marcuse, podemos pensar que algumas das tendências da arquitetura dos anos 90 podem também ganhar força. Por um lado podemos repensar a densidade desejada sob o ponto de vista dos holandeses (OMA, MVRDR, Mecanoo) com edifícios mais horizontais inseridos em áreas urbanas, ganha força também a tendência dos “blobs” e seus malabarismos virtuais que celebram as formas de produção e contato mediadas pela tecnologia. Utilizando-se das idéias de Michael Speakes (3) para dividir a arquitetura contemporânea em dois campos, é difícil saber se a resposta aos eventos de 11 de setembro serão da ordem do processo (uma maneira diferente de se fazer arquitetura) ou da ordem da forma. Talvez seja mais proveitoso voltar à tríade de Vitruvius (sem trocadilhos com este portal que nos recebe), e perceber que retornarão ao centro da discussão arquitetural as questões relacionadas à Firmitas (durabilidade, abrigo, proteção) em detrimento das Utilitas (função) que foram a tônica do início do século passado e das Venustas (beleza, encantamento) que foram a tônica das últimas décadas.

Na contra-mão do movimento minimalista e da tendência da imaterialidade que vinha surgindo nos anos 90, somos lembrados dolorosamente que arquitetura é antes de tudo Matéria. E matéria pesadíssima que abriga as Gentes tão frágeis que somos.

notas

1
MARCUSE, Peter. All cities will change. Texto que circulou na lista eletrônica H-Urban (sobre história urbana) em 16 de setembro de 2001.

2
YOUNG, John. New York Report. Texto que circulou na lista eletrônica Design-L (sobre projeto arquitônico) em 11 de setembro de 2001.

3
SPEAKS, Michael. “It’s out there: the formal limits of the American Avant-garde”, In: Architectural Design. Londres, 68, n. 5/6, maio/jun. 1998, p. 26-31.

sobre o autor

Fernando Lara é arquiteto, doutor pela University of Michigan e professor do Departamento de Arquitetura e no Programa de Pós-graduação em Tratamento da Informação Espacial da PUC-Minas.

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