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architexts ISSN 1809-6298


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ROCHA, Ricardo. Construção: tema e variações. A intervenção de Gustavo Scheps na Sala de Máquinas da Faculdade de Engenharia de Montevidéu. Arquitextos, São Paulo, ano 02, n. 017.11, Vitruvius, out. 2001 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/02.017/845>.

"Que na base da construção haja emoção ou raciocínio, isso deve nos ser indiferente: nosso único objetivo é construir."
Joaquin Torres García

Sala de Máquinas – interior. Chega-se por cima, através de passagem estreita que conduz à passarela metálica debruçada sobre vazio de 15m. O interior sustenta um jogo de contrastes e complementos. Ao invés da monumentalidade do alto pé-direito visto do chão, a vertigem da queda e o espaço tensionado pela estrutura e pela luz. Perspectivas múltiplas são dramatizadas por tirantes oblíquos e verticais. Arquitetura como palco, tecnologia como drama. Plataformas suspensas em cinco níveis abrigando espaços de trabalho com luz natural, sobre planta baixa livre para máquinas pesadas – as bandejas flutuam no vazio, duas ‘duras’, retas, reafirmam com seus parapeitos de chapa perfurada a divisão da altura em terços, três ‘suaves’, curvas, de parapeitos leves, se intercalam entre as primeiras; circulação vertical por escadas com iluminação artificial quase expressionista. Da experiência de percorrer o sítio e recolher as leituras simultâneas propostas, surge o sentido do todo. De imediato a visão de um conjunto complexo de peças articuladas, em seguida a apreensão, através do movimento, de sua estrutura ou razão de ser... (1)

Projetado em 1936 – mesmo ano do nosso Ministério da Educação e Saúde – pelo arquiteto Julio Vilamajó, o prédio da Faculdade de Engenharia é um marco da arquitetura moderna uruguaia. Formado sob a influência de Monsieur Carré (1870-1941), arquiteto francês responsável pela reestruturação do ensino na Faculdade de Arquitetura da Universidade da República em Montevidéu e que via com bons olhos, não obstante sua filiação à tradição Beaux-Arts, o progresso considerável na compreensão da arte na época moderna, (2) Vilamajó concebe um edifício cuja organização em planta remete à Bauhaus em Dessau (1925-6) ao mesmo tempo que o volume da biblioteca possui um certo ar florentino, mantendo-se com isto distante da ortodoxia modernista. Como se não bastasse seu caráter nada ortodoxo, exteriormente o edifício é em concreto aparente, antecipação brutalista que deveria contrastar com o mármore do revestimento interno – nunca executado.

Impondo-se na paisagem, uma pequena colina nos limites do Parque Rodó – não muito longe do Monumento Cósmico (1938) de Torres-García – entre o Rio da Prata e a Av. Julio Herrera y Reissig, o edifício constitui-se basicamente em dois corpos centrais elevados sobre pórticos – que garantem a continuidade do passeio pedestre no parque público e das visuais entre rio/ cidade – abrigando administração, conselho, decanato, salas de aula e laboratórios, cuja entrada dá-se sob o volume da sala de conferências, voltado para a avenida e em oposição à biblioteca que olha o rio; e dois corpos laterais assentados sobre o chão – abrigando os institutos com acessos e salas para máquinas pesadas – conectados ao conjunto por passarelas elevadas. O corpo lateral situado à norte – Sala de Máquinas – constitui-se em prisma de 45 X 22,5m de base e pouco mais de 15m de alltura, cuja entrada – interna – é efetuada pela parte mais alta, na diagonal oposta a torre acoplada à nordeste.

A composição do conjunto é caracterizada pelo dinamismo dos volumes, alas, blocos e corpos articulados à maneira construtivista (3), como peças com um certo grau de individualidade formando um todo ou sistema maior e, apesar da onipresença do concreto aparente, com riqueza e variação de elementos, detalhes e texturas. Contudo, “existem no edifício critérios compositivos (estruturais, geométricos, dimensionais) comuns a todas as peças. A estes se juntam códigos mais abstratos vinculados às materialidades: texturas, materiais, superfícies, também com caráter geral. A partir disto se resolve uma espacialidade também reconhecível como variações de certos – poucos – temas (linearidade, vazios, pulsos). Sobre esta matriz unificadora cada peça do projeto está tratada de modo singular, pode-se reconhecer inclusive alusões a arquiteturas bem definidas ... isto é próprio de um talento tão grande como o de Vilamajó” (4).

O programa para a readequação da Sala de Máquinas, tendo em vista sua sub-utilização, previa a ocupação de dois terços do local – um vazio de 45 X 15m de base e 15 de pé-direito – com salas para pesquisadores, administração e planta ao nível do solo com número mínimo de apoios – em função do espaço exigido por modelos hidráulicos de grande porte. O projeto realizado entre 1992-95 definiu quatro etapas para obra. Em dezembro de 99 foram completadas as duas primeiras, isto é, toda a parte atirantada, o que garantiu a Scheps ser finalista no II Prêmio Mies van der Rohe para a América Latina – o mesmo que ganhou Paulo Mendes da Rocha com a intervenção na Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Na memória do projeto original (5) Vilamajó afirma que “o edifício terminado será uma estrutura aparente ... a exteriorização do elemento construtivo não diz respeito somente à forma, senão se estende também à matéria” e mais à frente “no estudo das instalações levou-se em conta a possibilidade de tirar partido das mesmas tornando acessível à observação os diversos dispositivos, mecanismos e medidas”. Esta proposta do edifício como ferramenta didática é recuperada por Scheps, “cada peça é uma solução e ao mesmo tempo uma reflexão acerca de algum tema estrutural”, mas de maneira relativista. Responsável pela autoria tanto do projeto arquitetônico quanto do estrutural, o arquiteto, hoje professor de projeto na Faculdade de Arquitetura de Montevidéu, se diz longe do otimismo tecnológico-pedagógico dos anos 30, “nosso problema nas intervenções é resolver – dentro de um quadro de grande escassez econômica – problemas urgentes, tratando, ao menos, de não fechar possibilidades contidas na obra a se intervir”.

Na apresentação da intervenção na II Bienal Iberoamericana de Arquitetura e Engenharia, Scheps assinala que objetivando preservar aspectos essenciais do projeto original – e/ ou do sítio como o acentuado caráter industrial da Sala de Máquinas, em razão de suas dimensões e das grandes aberturas do lado norte – “se propôs um jogo de escalas imbricadas, que conduz desde o espaço total ao pequeno escritório”. A intervenção estabelece assim um diálogo no espaço e no tempo com o prédio existente. Se acesso – pelo alto à sudoeste – e localização das salas de trabalho – junto às aberturas para iluminação natural à norte – eram condicionantes inescapáveis e a alusão fabril/ tecnológica uma sugestão irrecusável do sítio, a recuperação do tema da construção original respeitando seus códigos e critérios compositivos, é feita, como foi dito, com espírito relativista, propondo variações e contrapontos, numa simbiose entre o contemporâneo e o moderno. De fato, a nova construção desvia seu peso para capacidades ociosas da estrutura existente ao passo que esta é tencionada e dramatizada por aquela, o que permite definir a intervenção como uma nova peça onde “as abstrações e as materialidades são desenvolvidas como temas de uma fuga musical, a um tempo independentes e inter-relacionadas”.

Roberto Segre assinala que “a criação do Prêmio Mies van der Rohe para a Arquitetura Latino-Americana ... difundiu ... não somente a obra dos já consagrados internacionalmente” Niemeyer, Salmona,  Clorindo Testa, Legorreta, Mendes da Rocha, etc “mas também a jovem vanguarda ... o mexicano Enrique Norten ... os chilenos Mathias Klotz, José Cruz Ovalle e Juan Purcell Mena; o cubano José A. Choy; os argentinos Pablo Tomás Beitía e Ana Etkin; os uruguaios Gastón Boero e Juan Gustavo Scheps, todos participantes como finalistas nos sucessivos prêmios” (6). No caso de Scheps, entretanto, mais do que com vanguarda o arquiteto parece estar preocupado com tradição, “meu propósito não é somente dar respostas mas fazer com que as mesmas respostas reformulem – outra vez – as perguntas”, no sentido em que Vilamajó a definia: “a tradição não é a relação fria que cataloga obras e as engaveta em distintas épocas do passado, mas a presença atual de conceitos e soluções racionais que foram postas em prática por outras gerações” (7).

notas

1
Texto do autor intercalado com frases do Arq. Gustavo Scheps.

2
Apud SCHLEE, Andrey. Texto não publicado sobre a Faculdade de Arquitetura de Montevidéu (1942-3) de Fresnedo Siri e Mario Muccinelli.

3
E não me refiro apenas ao construtivismo russo, baseado numa metáfora científico-mecanicista, mas também ao Universalismo Construtivo de Torres-García que parte do elementar “para ir construindo (criando) com base própria e segundo nossas necessidades”.

4
Comentário de Scheps ao autor.

5
VILAMAJÓ, J. e HILL, Walter. Facultad de Ingenieria – su edificio en construcción. Montevideo, 1939. W. Hill, engenheiro da obra, escreve ali: “a concepção da estrutura está estreitamente ligada à concepção arquitetônica, não só pelo desejo de verdade construtiva senão porque se realizou um edifício totalmente em concreto. A estrutura, consequentemente, realiza a dupla função de esqueleto resistente e de elemento arquitetônico. A forma projetada e a intenção do arquiteto tem como veículo de expressão a própria estrutura”. Como se vê a antecipação de preocupações brutalistas deu-se a um nível bastante profundo. Nunca é demais lembrar que Torres-García, ao retornar à Montevidéu em 1934, após quatro décadas passadas entre a Europa e os Estados Unidos na companhia de Mondrian, Arp e Duchamp, entre outros, publicou entre 1936-43 a revista Círculo e Quadrado, homônima latina da européia Cercle et Carré na qual o formulador do Universalismo Construtivo havia feito, desde 1930, declarações como a de que a “estrutura ou construção ... passa de simples esqueleto para ordenar as formas, a assumir o seu lugar e a constituir a obra em si mesma”. Este trânsito entre o projeto construtivo na arte, a arquitetura (e a poesia) – em relação ao contexto brasileiro das décadas de 1950-60 – foi por mim sugerido ano passado em comunicação – Arte e arquitetura brasileira nos anos 50/60: contaminações – ao V Seminário de Teoria e História da Arquitetura no Rio Grande do Sul, recentemente publicada em Crítica na Arquitetura. Porto Alegre: Ritter dos Reis, 2001; e analisado sumariamente em “Arquitetura e poesia concreta” comunicação apresentada este ano no I Encontro sobre espaço e linguagem: modernidade e modernismo no Brasil, promovido pela Faculdade de Letras e pela Faculdade de Arquitetura da PUC-RS.

6
SEGRE, Roberto. "América Latina 2000. Arquitetura na encruzilhada", Arquitextos n° 13.02. São Paulo, Portal Vitruvius, jun. 2001 <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq013/arq013_02.asp>.

7
Apud SCHLEE, Andrey. Op. cit.

sobre o autor

Ricardo Rocha é arquiteto e urbanista pela UFES (Vitória - ES) e professor do Departamento de Arquitetura da UFSM, Santa Maria RS.

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