No dia 20 de outubro de 2005, a Unesco aprovou, com ampla maioria, a Convenção sobre proteção e promoção da diversidade de expressões culturais. Votaram a favor do documento 148 países, com apenas dois votos negativos, dos Estados Unidos e Israel. A Convenção entrará em vigor quando 30 países a ratificarem, o que não tardará a acontecer. Quais os interesses envolvidos? Quem se beneficia com a nova regulamentação? Como isso afeta o patrimônio cultural no mundo, em geral, e nos países não hegemônicos, como o Brasil, em particular? Estas e outras questões levaram a uma reunião organizada pela International Cultural Property Society (Sociedade Internacional sobre Propriedade Cultural), em Nova Iorque, na semana de 20 de outubro, a fim de congregar um grupo de vinte especialistas no tema, editores da prestigiosa revista publicada pela Cambridge University Press, International Journal of Cultural Property. Juristas renomados atuantes na Unesco, como os australianos Patrick O’Keefe e Lyndel Prott, estudiosos do direito da propriedade cultural, como o canadense Robert Paterson, interagiam com o veterano patrimonialista britânico David Lowenthal, com o sociólogo romeno Michael Cernea, entre outros, em uma atmosfera interdisciplinar de discussão aberta. Como representante latino-americano, pude notar a importância dada às questões patrimoniais em nosso continente, tanto pelos desafios que enfrentamos como pela consciência do imenso manancial de diversidade cultural de nossos países.
A reunião teve como tema geral “qual patrimônio preservar”, dividida em quatro sessões, a começar pelo dilema “Patrimônio cultural ou propriedade cultural”? Logo de início, ficaram claras as diferenças entre uma e outra definição, já que a noção de propriedade cultural trata a cultura como uma propriedade em forma de objeto, sendo importantes as questões relativas à posse e controle, alienação e exploração como recursos econômicos. Patrimônio cultural, por outro lado, toma a cultura como herança, em relação a um povo ou comunidade. Na tradição jurídica do direito anglo-saxão (common law), os bens culturais têm preço e podem ser alienados, enquanto na tradição do direto romano (civil law) o patrimônio cultural está submetido à regulamentação e restrição. O antropólogo americano Richard Handler ressaltou que a cultura é um fenômeno simbólico e que ela não pode ser sequer preservada tal qual, já que o próprio ato de preservar já é uma recontextualização. Juntei-me ao jurista suíço Kurt Siehr, ao discutirmos as diferenças conceituais nas diversas línguas européias, com destaque para o conceito capital de patrimônio. Surgido no âmbito dos bens materiais e afetivos de uma família, passou a designar, a partir dos estados nacionais no século XVIII tardio, os bens materiais que geram emoções de uma comunidade, na origem, a nação.
A segunda sessão tratou do patrimônio material e imaterial. Houve, nos últimos anos, uma mudança de ênfase, da cultura tangível, monumentos e objetos, para o intangível das práticas culturais associadas ao tangível, como as danças, as melodias e as próprias línguas faladas. O latino-americanista americano Michael F.Brown tratou dos perigos da tentativa de catalogação, em curso na Unesco e nos países membros, dos bens intangíveis, como um retorno aos princípios de petrificação da cultura embutidos nas coletâneas, desde meados do século XIX, no auge do positivismo. A coreana Hyung Il Pai ressaltou o papel do colonialismo na definição do patrimônio tangível como autêntico, puro e fixo, abordagem criticada nas últimas décadas, pois as culturas são híbridas, heterogêneas e fluidas. Neste contexto, como tratar, a um só tempo, da propriedade intelectual, de interesse das grandes empresas, e do patrimônio intangível de grupos étnicos ou de comunidades locais, capital para a preservação da diversidade cultural da humanidade?
A terceira sessão deu continuidade às discussões com um tema que nos aproxima, ainda mais, dos problemas práticos: o controle e a guarda do patrimônio. O que caracteriza a guarda (stewardship) não é a propriedade, mas a custódia, idealmente desinteressada, dos bens culturais em instituições como os museus. No entanto, como se tem discutido nos últimos anos, os cientistas e os administradores, como arqueólogos, historiadores da arte ou museólogos, não são neutros, não podem arrogar-se o direito de falar pela humanidade, já que possuem interesses e defendem pontos de vista também inseridos na sociedade. O caso clássico refere-se aos vestígios humanos: quando os mortos são de nossa sociedade, os restos pertencem à família ou a uma comunidade concreta. Já quando os vestígios são de indígenas, pertencem ao cientista e ao museu, seqüestrados da comunidade por ventura se declarar interessada. Se, neste caso, já começa a surgir legislação que protege os direitos comunitários, em outros campos ainda se engatinha nessa direção. De fato, com a exceção das res sacrae (bens religiosos), há ainda muitos contextos em que o patrimônio sequer pode ser gerido com a comunidade, que não é dotada de capacidade jurídica para manter seu próprio patrimônio, já que um grupo humano, por definição... não é um museu! O comitê sobre patrimônio cultural da Associação de Direito Internacional (International Law Association) propôs, recentemente, como princípio, a colaboração entre guardiões e comunidades, de modo a garantir a participação tanto dos estudiosos, como das pessoas comuns.
A quarta sessão tratou da recém-aprovada Convenção da Unesco. O arqueólogo americano Neil Silberman, agora em Bruxelas como coordenador de programas internacionais, tem defendido, no âmbito da União Européia, a inclusão dos patrimônios judeu e muçulmano na política patrimonial européia e, no seminário de Nova Iorque, chamou a atenção para um paradoxo. Enquanto a Unesco defende, programaticamente, a diversidade, os países membros a entendem, muitas vezes, como uma maneira de preservar o nacional, diante tanto das forças da globalização, como de outros estados nacionais. Pode surgir, por isso, uma distorção, pois os grupos minoritários e de pouca expressão política, como poderiam ser as minorias religiosas ou sexuais, para citar dois exemplos bem conhecidos, nem sempre encontram amparo diante da chamada unidade da cultural nacional. Michael Cernea e eu, ainda que tenhamos concordado que tais riscos, em especial no caso de países sob jugo ditatorial, possam ocorrer, lembramos que em muitos casos, como na Europa Central e na América Latina, os documentos internacionais sobre a diversidade cultural têm servido para a defesa concreta de uma ação com as comunidade e grupos sociais. De fato, os documentos da Unesco explicitam a importância da diversidade cultural no interior dos países. A própria noção de comunidade deve ser desvencilhada de uma abordagem homogeneizadora, como se não houvesse conflitos internos. Ao contrário, as tensões internas, as diferenças entre adultos e crianças, homens e mulheres, chefes e pessoas comuns devem estar sempre no âmbito da diversidade a ser levada em conta.
Como se insere o Brasil, neste contexto? Em nosso caso, houve, historicamente, uma caracterização do patrimônio a partir dos valores homogêneos da nacionalidade. Erigiram-se como patrimônio edifícios e mesmo cidades inteiras, como os povoados de época colonial. Ligavam-se, assim, a uma idéia de herança centrada na Europa e nos seus grandes estilos. A partir das últimas décadas, por influxo tanto das recomendações internacionais, como da democratização do país, o Brasil passou a incorporar a diversidade como valor também patrimonial. Em nosso caso, assim como nas discussões internacionais, essa valorização apresenta características contraditórias. Por um lado, multiplicaram-se os patrimônios estaduais e municipais e, neste sentido, a pluralidade e o respeito às sensibilidades locais representou um ganho evidente. Por outro lado, a pulverização dos patrimônios nem sempre significaram uma visão que enfatize a diversidade nos Estados e Municípios. Os grupos identitários, como podem ser as minorias religiosas ou étnicas, ou mesmo as sensibilidades de gênero ou etárias, nem sempre foram incluídas nos discursos patrimoniais locais. De todo modo, mesmo as contradições e conflitos, em um contexto democrático, permitem que se discutam as estratégias patrimoniais e é crescente a participação das comunidades na formulação dessas políticas, em conjunto com os estudiosos e as autoridades que se encarregam do patrimônio.
Retornando ao encontro de Nova Iorque, cabe lembrar que no mundo contemporâneo - caracterizado pela indústria cultural, pela globalização e pela internet - as culturas mostram-se em mutação rápida, com a reelaboração constante do seu patrimônio. Ao lado dos antigos costumes e festas, surgem novas e múltiplas manifestações híbridas, como seriam o rock gaúcho ou a poesia virtual. O meio digital, nos últimos anos, gerou a criação de um imenso universo cultural extremamente fugaz, que em poucos anos desaparece por tornar-se tecnicamente obsoleto. Tudo isto é patrimônio cultural, é diversidade de criação da humanidade que se perde a todo instante. Um tema de fundo de toda esta discussão, também presente na reunião de Nova Iorque, refere-se ao valor, se valor haveria, de se preservar a diversidade. A diversidade per se é um valor a ser preservado? Por quê a humanidade perderia algo? A cada ano, dezenas de línguas deixam de ser faladas, desaparecem para sempre e, de forma paradoxal, a cada ano que passa menor é a diversidade cultural da humanidade. Nas origens da Convenção da Unesco esteve a preocupação com o possível uso que os saberes tradicionais possam ter se houver um colapso ambiental e a humanidade tiver de voltar à tecnologia da pedra, hoje tão pouco conhecida. Esta parece ser uma preocupação relevante, mas haveria outra, ainda maior e mais profunda, que estava no âmago do próprio surgimento da Unesco, após a Segunda Guerra Mundial: a diversidade, e o respeito ao diverso, constitui valor essencial para a que a liberdade não se restrinja aos mais fortes. É evidente que não podemos tudo preservar: o passado deve servir ao presente e ao futuro. Como decidir sobre o que preservar? Talvez a resposta esteja na sabedoria de um rabino que, no bar-mitsvá, a cerimônia de passagem à vida adulta entre os judeus, disse a Lawrence Rosen: “o que você quer manter de sua infância na vida adulta? Escolha agora”. Rosen, hoje grande jurista e antropólogo, contou-nos esta história para mostrar que devemos escolher aquilo que queremos preservar, mas cabe a nós escolhermos, como indivíduos, mas também como membros de diversas coletividades. Não será o rabino (ou qualquer autoridade), a dizer o que deve ser preservado. Esta a grande mensagem da Convenção da Unesco.
notas
[publicação: dezembro 2005]
sobre o autor
Pedro Paulo A Funari é professor titular da Unicamp, Pesquisador-Associado da Illinois State University e Universidad de Barcelona
Pedro Paulo A. Funari, Campinas SP Brasil