Quando ocorre um acidente de trânsito, uma das preocupações é a determinação da culpa pelo acidente. Essa preocupação envolve diversos interesses associados a seguros e indenizações a vítimas e danos materiais. Uma outra preocupação, historicamente mais antiga, é a de determinar porque ocorreu o acidente e estudar a possibilidade de evitar a ocorrência de outros acidentes semelhantes.
Foi com essa visão de tentar evitar a ocorrência de novos acidentes e de minimizar os problemas de um acidente que, em meados do século XX, se desenvolveram técnicas para levantamento de dados sobre os acidentes de trânsito. Na mesma época, no entanto, começaram a aumentar a quantidade e a gravidade dos acidentes de trânsito, com o aumento de automóveis e da velocidade de circulação. Com o aumento da gravidade dos acidentes, ocorreu também a criminalização dos acidentes de trânsito.
Os acidentes de trânsito com vítima são hoje “periciados” por pessoal especializado da área de criminalística das polícias civis, quando ocorrem em áreas urbanas ou policiais rodoviários quando em rodovias, com o objetivo de subsidiar decisões judiciais e extra-judiciais. Tais levantamentos têm foco nas pessoas envolvidas, partindo do princípio que os acidentes acontecem por “culpa” de uma ou mais das pessoas diretamente envolvidas.
Pode-se definir acidente como “acontecimento infeliz, casual ou não, e de que resulta ferimento, dano, estrago, prejuízo, avaria, ruína etc..”, ou “um evento independente do desejo do homem, causado por uma força externa, alheia, que atua subitamente (de forma inesperada) e deixa ferimentos no corpo e na mente”.
Devemos registrar ainda as definições da Organização Mundial de Saúde (1):
- Acidente de transporte é todo acidente que envolve um veículo destinado, ou usado no momento do acidente, principalmente para o transporte de pessoas ou de mercadorias de um lugar para outro.
- Acidente de trânsito é todo acidente com veículo ocorrido na via pública.
Destaque-se que em nenhum momento, nessas definições, há qualquer referência ou indicação de culpa ou dolo.
Por outro lado, em meados do século XX, quando a aviação comercial começou efetivamente a se desenvolver, tornou-se necessário estabelecer um forte programa de prevenção de acidentes aeronáuticos, no sentido de transmitir confiabilidade ao novo modo de transportes que surgia e garantir o crescimento desse novo mercado. Dentro dessa idéia, estabeleceram-se rotinas de investigação de acidentes aeronáuticos no sentido de identificar problemas em relação a três aspectos: o homem, o meio e a máquina. Assim, as investigações de acidentes aeronáuticos se concentram e identificar possíveis “elementos causadores do acidente” de forma a estabelecer novos padrões de treinamento para os homens envolvidos, conhecimento de elementos e características do ambiente que possam gerar perigo e novas exigências de segurança para os aviões. Essa forma de análise foi, mais recentemente, incorporada pela área de Segurança do Trabalho através das Comissões de Prevenção de Acidentes de Trabalho – CIPAs.
Ainda no final do século XX ocorreu um avanço nas análises (2), com um novo enfoque partindo do pressuposto que um acidente ocorre pela conjunção de fatores contribuintes, fatores esses agrupados em quatro, e não mais três, partes:
- Fatores humanos – relativos ao comportamento das pessoas envolvidas, tais como: tensão nervosa, ingestão de álcool, desconhecimento do trajeto, distração etc..
- Fatores relativos ao veículo – referem-se a inadequações no estado operacional como: defeitos nos freios, amortecedores ruins, pneus gastos ou lisos, limpadores de pára-brisas com defeito etc.
- Fatores relativos à via, ao meio ambiente e ao ambiente construído, tais como os vinculados ao projeto, à construção da pista e à área de influência, à manutenção do sistema viário, à natureza, entre outros.
- Fatores institucionais e sociais como a regulamentação, fiscalização, presença da polícia, sinalização etc..
Pode-se dizer que os primeiros três grupos são ampliações das três abordagens anteriores, mas o quarto grupo, relativo às instituições e aspectos sociais, é um enfoque novo, normalmente não considerado nas análises atuais.
Que diferença pode trazer esse novo enfoque?
Em relação às pessoas envolvidas, não há diferenças significativas, mas somente uma tentativa de análise em relação a terceiros também envolvidos nos acidentes, o que, de resto, já vinha sendo feito.
Em relação ao veículo também não parece que haja diferença. Entretanto, é importante registrar que a indústria automobilística tem trabalhado intensamente na direção de redução da gravidade dos acidentes e da segurança veicular.
No terceiro grupo há uma ampliação importante da análise, quando se passa a considerar uma grande quantidade de aspectos relacionados ao projeto da via, ao ambiente e à natureza, inclusive o clima. Nesse caso, outros elementos são adicionados ao levantamento de informações sobre um acidente, inclusive a verificação do registro de outros acidentes semelhantes no mesmo local, o que caracterizaria um problema associado ao ambiente.
Com essa abordagem mais ampla, passa-se considerar que a ocorrência de dois acidentes do mesmo tipo, no mesmo lugar, envolvendo pessoas e veículos diferentes, levaria a caracterizar algum problema no local, com o projeto da via, com a manutenção, a sinalização ou falha construtiva. Tecnicamente essa alteração tem resultados interessantes, uma vez que identificado algum problema em um determinado local, ao removê-lo provavelmente deixarão de ocorrer os acidentes no local, o que determina ações corretivas bem mais simples do que mudar o comportamento dos motoristas ou alterar as características dos veículos.
Entretanto, para efeito de responsabilidades civis e criminais, a situação se altera substancialmente, uma vez que, na repetição de um mesmo tipo de acidente em um local, a Administração Pública, responsável pela via, sua conservação e manutenção pode ser considerada como tendo contribuído para a ocorrência do acidente de forma significativa, ao ter executado um projeto errado, deixado de fazer a manutenção adequada ou falhado na conservação da via, reduzindo ou mesmo suprimindo a culpa das pessoas diretamente envolvidas em um acidente de trânsito nessas condições.
Essa visão é coerente com a responsabilidade da administração pública de bem construir, manter e conservar a coisa pública. É responsabilidade do estado propiciar ao cidadão infra-estrutura adequada ao uso, inclusive em relação à segurança. Assim, dois ou mais acidentes de um mesmo tipo em um mesmo lugar já estaria caracterizando a participação do estado no acidente.
Com essas considerações, acatando-se a tese de que um acidente ocorre pela conjunção de fatores contribuintes, nos atuais processos onde há um laudo pericial, dever-se-ia, inicialmente questionar sobre a existência de outras ocorrências no local e, em caso positivo, colocar-se a Administração Pública no grupo dos que contribuíram para a ocorrência do acidente.
O último grupo de fatores, os institucionais e sociais, estabelece diretamente a vinculação de normas e ações da Administração Pública para a prevenção de acidentes e atribui ainda mais responsabilidade a Administração Pública no caso de alguns tipos de acidentes, inclusive naqueles onde sabidamente ocorrem infrações em determinados dias e horários, nos quais bastaria a simples presença de um policial (a Administração Pública) para inibir as infrações e consequentemente os acidentes.
A tese de que um acidente ocorre pela conjunção de vários fatores contribuintes tem como corolário que a redução de apenas um dos fatores evitaria o acidente. Isso leva a concluir que, em uma análise mais profunda de cada acidente de trânsito, além de laudos periciais simples, a Administração Pública seria co-participante, ou mesmo o responsável, em grande quantidade dos atuais acidentes de trânsito, especialmente naqueles que ocorrem em lugares reconhecidamente perigosos ou onde, em certos dias e horários, ocorrem grande número de infrações.
notas
1
Organização Mundial de Saúde – OMS. Classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados à saúde (décima revisão), CID 10, cap. XX, p. 969, 976 e seguintes.
2
Ver: GOLD, Philip A. Segurança de trânsito. Whashington, Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, 1998, p. 6.
[publicação: janeiro 2006]
sobre o autor
José Alex Sant´Anna, Doutor em Engenharia de Transportes, é professor da Universidade de Brasília – UnB.
José Alex SantAnna, Brasília DF Brasil