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drops ISSN 2175-6716

abstracts

português
A autora discute a aproximação da arte contemporânea da vida cotidiana a partir da intervenção realizada pela artista plástica Cecília Stelini na cidade de Campinas, intitulada A Quadra

english
The author discusses the approach of contemporary art of everyday life from the intervention made by the artist Cecilia Stelin the city of Campinas, entitled A Quadra

español
La autora discute la aproximación del arte contemporánea de la vida cotidiana a partir de la intervención realizada por la artista plástica Cecília Stelini en la ciudad de Campinas, titulada A Quadra

how to quote

FUREGATTI, Sylvia. A quadra, o trânsito e a arte contemporânea em Campinas. Drops, São Paulo, ano 06, n. 013.02, Vitruvius, nov. 2005 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/06.013/1666>.


A Quadra, Cecília Stelini, Campinas SP, setembro de 2005. Vista aérea da intervenção


"Creio que o público do que chamamos de arte raramente é homogêneo. Existe sempre uma tensão entre aqueles que se interessam antes de mais nada por aquilo que está sendo ‘contado’ e aqueles que privilegiam a maneiraNem um nem outro pode compreender e apreciar a obra de arte em seu justo valor. As ‘formas’ falam e o ‘tema’ se inscreve nas formas. O conjunto está inevitavelmente impregnado de significações ideológicas."
(Hans Haacke em Livre-Troca com Pierre Bordieu)

A crescente preocupação com a acessibilidade e o fluxo do trânsito nas grandes cidades, já há algum tempo, tem se tornado ponto de interesse também para a produção artística contemporânea. Noções antes reservadas às esferas de discussão política e do urbanismo passam a integrar o discurso estético de projetos artísticos constituídos pela intervenção urbana ou pelas formas da chamada nova arte pública (1). Discussões sobre a qualidade de vida; a análise sobre os fluxos de pessoas, mercadorias, interesses individuais; integração de moradores de uma mesma vizinhança, dentre outros valores, estabelecem-se como repertório passível de ser estetizado pelas estratégias criativas da contemporaneidade abrindo uma nova frente de atuação e visibilidade para o papel e a produção do artista.

O interesse da Arte Contemporânea em aproximar-se da vida cotidiana dilui, ao longo do século XX, o valor dado ao objeto direcionando nossa atenção para eventos participativos que passam a acontecer em espaços abertos. Diante disso, a arte toma um direcionamento por projetos que admitem diferentes escalas pelo planeta, tanto quanto aspectos díspares como temática central: saúde, bem estar social, qualidade urbanística, revisão de modelos estético-artísticos (2), etc, agindo num ínterim entre arte e consciência urbana e social.

A mudança na organização estrutural dos modelos de trabalho no mundo atual, que impulsiona essa perspectiva artística descrita, possibilita o surgimento de diferentes organismos independentes do contexto empresarial mais convencional, tais como as ONG’s, proporcionando uma constituição bastante multifacetada de grupos, ações e projetos nos quais têm a arte um lugar quase sempre cativo.

Uma dessas organizações de trabalho, voltada para a ampliação da acessibilidade pública e conscientização do uso do carro nos grandes centros é representada no Brasil por instituições importantes como o Instituto Rua Viva de Belo Horizonte e a ANTP (Associação Nacional do Transporte Público) de São Paulo, que dentre outros, têm desempenhado um papel social de divulgação e educação contínua sobre esse tema, merecedor da prioridade de atenção por parte das pessoas que habitam as grandes cidades.

A convergência desses valores urbanos produziu seu primeiro resultado, via proposta artística, na cidade de Campinas com o projeto A Quadra da artista Cecília Stelini, realizado numa área central da cidade no último dia 22 de setembro, data internacional que propõe a escolha de um modo alternativo de transporte sem carro.

A cidade aderiu nesse ano às programações que já tem acontecido nos grandes centros internacionais desde 1998, com palestras, lançamento de cartilhas e uma série de eventos organizados por alguns departamentos públicos municipais diretamente ligados ao projeto (3). Comparativamente às pesquisas desenvolvidas nas atividades brasileiras que promoveram a Jornada na Cidade Sem Meu Carro ao longo desses últimos cinco anos percebeu-se, em Campinas, o início de um movimento de sensibilização além da própria apresentação da causa (4).

A Quadra foi o projeto artístico agregado a esse evento. A proposta foi elaborada dentro do conceito de site specific art para o Bairro do Cambuí, área nobre da cidade, com alta densidade urbana motorizada. O lugar foi determinado por sua qualidade central, de grande fluxo urbano de pessoas e automóveis que circulam num dos metros-quadrado mais abastados da cidade de Campinas.

Essa situação aponta para o uso quase sempre individualizado de automóveis pelas pessoas de uma mesma família apesar da localização privilegiada dentro da vida cotidiana e ativa da cidade e o suposto grau de instrução e crítica elevado dessa parcela da população.

Diferentes quadras do bairro foram estudadas para a construção do projeto. A opção final foi a escolha de uma quadra circular do centro de convivência cultural de Campinas que abriga um edifício público assinado pelo arquiteto Fabio Penteado ladeado por uma praça arborizada. Com essa escolha todos os eventos programados para a jornada cívica municipal puderam otimizar sua viabilização concentrando as negociações necessárias no mesmo ponto urbano.

Muito antes disso, as linhas iniciais do projeto foram buriladas em longas discussões técnicas e estéticas nas reuniões de orientação do Ateliê Aberto de Campinas onde se sistematizou a intenção de participação nesse circuito internacional de comemorações pelo Dia Sem Carro. A Quadra nasceu dessa troca de idéias e questionamentos dentre artistas sendo imaginada como um projeto que pudesse integrar outros ateliês da cidade e seus artistas num trabalho conjunto.

Dessa forma, Cecília Stelini elaborou o projeto constituído de um gigantesco tapete de serragem e pétalas de flores para o chão da praça e parte da via pública do lugar. O tapete tomou efetivamente as ruas, calçadas e jardins desse quarteirão formado pelas ruas General Osório, Conceição, São Pedro e Antonio Cezarino. Parte do acesso dos automóveis ficou interditada durante todo o dia dessa quinta-feira alterando sensivelmente o cotidiano daquele lugar. As reações foram diversas, mas o sentido final percebido com a intervenção foi extremamente positivo tanto para a finalidade cívica quanto para a proposição estética.

Os costumeiros passeios matinais de pessoas que moram na redondeza tanto quanto o trajeto rápido de executivos e trabalhadores que se utilizam desse percurso a pé ou mesmo de carro proporcionaram abordagens diretas que permitiram para os integrantes do projeto contabilizar expressões gerais de concordância com a proposta.

O resultado visual final criou uma mancha num tom vinho-vermelho que se fundia ao próprio piso da praça. No contraste com o cinza do asfalto das ruas ressaltava a idéia de um tapete suntuoso por onde passavam agora as pessoas ao invés de carros.

Cecília Stelini, já há algum tempo, vem empregando em seu trabalho artístico (5) a elaboração de tapetes com materiais e temáticas que nos remetem ao culto sagrado e cristão tanto quanto ocupam um espaço de convívio social, urbano e são criados pela ação coletiva de grupos de pessoas convidadas para a tarefa.

Para o projeto da Quadra participaram, ao todo, mais de 100 pessoas dentre artistas, funcionários públicos, estudantes de escolas próximas, voluntários organizados além de outros espontâneos que diante da proposta aderiram ao trabalho de construção do tapete ao longo do dia.

Ocupando uma área final de 4500 metros quadrados, aproximados 5000 quilos de serragem e 3500 botões de flores vermelhas a intervenção propôs uma interrupção gentil para um ponto crítico da vida no trânsito em Campinas. Além de inserir a cidade num tipo de comemoração reconhecida e vivenciada internacionalmente por grandes centros urbanos, preocupados com a mobilidade e o meio ambiente, colaborou para sua atualização diante das formas contemporâneas de atuação artística.

Essa qualidade contemporânea aliada à inserção urbana propostas pelo projeto põe em evidência um ponto de discussão atual que começa a ser burilado pela pesquisa crítica e estética: a produção e sobrevivência de arte contemporânea fora dos centros consagrados de atuação em grandes capitais do país normalmente contempladas pela força e segurança de grandes instituições culturais.

A Quadra nos dá a oportunidade de pensar sobre a descentralização e a significativa independência das instituições formais para se produzir arte. Essa condição criativa da arte atual promove aspectos importantes de democratização para artistas e público que escolhem viver e trabalhar em centros urbanos menores tanto quanto próximos às capitais importantes do país. Campinas vive essa condição, já há algum tempo, e tem indicado nos últimos anos, pela atuação independente de ateliês e projetos de intervenção efêmeros, um caminho possível para a requalificação de seu papel cultural (6).

A ação conjunta e equilibrada entre arte, sociedade e política inerente aos formatos dessa vertente contemporânea de intervenção artística urbana, tal qual proposto pela Quadra de Cecília Stelini, corrobora com a ressignificação do conceito de distância tão estudado pelos filósofos, arquitetos, geógrafos da atualidade.

Seja qual for a ordem; geográfica, social ou relativa ao aprimoramento da sensibilidade estético-artística, a distância entre arte e cotidiano tem suas configurações formais um pouco mais diluídas com essa proposta.

A iniciativa perceptiva artística apresentada pela Quadra convidava sua platéia, em parte desavisada, a interagir uma situação artística configurando novas e possíveis relações de uso entre as pessoas e os lugares urbanos, entre elas e as formas atualizadas de arte.

A integração entre praça e rua, pedestres e centro urbano, arte e políticas públicas, artistas de diferentes ateliês, como elementos presentes nesse projeto, traduzem o caminho definitivo da arte rumo ao acontecimento artístico, como espécie de emboscada estética (7) enfatizando, em sua qualidade efêmera, uma importante condição de existência da arte diante dos códigos vigentes desse novo século.

Notas

1Em minha pesquisa de mestrado analisei a validade e a freqüência dada às terminologias e constituição final de projetos artísticos elaborados para o meio urbano. Estabeleci uma possível distinção dos discursos e sua aplicabilidade em projetos contemporâneos dividindo-os em três grandes operações/terminologias: arte urbana; nova arte pública e intervenções artísticas no meio urbano. Pretendia-se enfatizar a importância do ajustamento necessário entre discurso e produção artística para a compreensão dessa vertente voltada para o espaço aberto e extra-muros da criação artística da atual. Ver em: FUREGATTI, Sylvia. Arte no espaço urbano: contribuições de Richard Serra e Christo Javacheff para a formação do discurso da Arte Pública atual. São Paulo, FAU-USP, 2002.

2
Dentre os muitos projetos existentes podemos citar, por seu alcance no circuito artístico e social e reconhecimento: Names Quilt Project - São Francisco em 1988 que cria uma colcha para lembrar as vítimas da Aids pelo planeta; Changing Stations em Londres, realizado no início dos anos 1980 com artistas convidados a trabalhar junto a arquitetos e engenheiros do metrô londrino para atualizar o design das estações dentre outros. No Brasil são conhecidas as versões do projeto Arte Cidade, organizado por Nelson Brissac Peixoto desde 1997.

3
A jornada internacional teve inicio na França em 1998. Em 2000, sua edição no formato semanal conseguiu envolver um total de 70 milhões de pessoas. No Brasil, por meio do Instituto Rua Viva, o evento inicial datado de 2001 teve a participação oficial das cidades de Belo Horizonte, Belém, Caxias do Sul, Cuiabá, Goiânia, Joinville, Piracicaba, Pelotas, Porto Alegre, São Luiz e Vitória. O ano de 2005, quarta versão apresentada pela cidade de Campinas para o projeto, teve como promotores e organizadores gerais os seguintes organismos do governo municipal: SETRANSP - Secretaria Municipal de Transportes e EMDEC – Empresa Municipal de Desenvolvimento de Campinas S/A apoiadas por empresas privadas atuantes nessa região conseguindo a maior mobilização já planejada para a comemoração da data.

4
Dados específicos sobre a aceitação e continuidade das Jornadas pelo Brasil podem ser obtidos pelo site: http://www.ruaviva.org.br/cidade/index.html.

5
Dentre os projetos de intervenção mais recentes dessa artista destacam-se: Bienal Naïfs do Brasil, Sesc Piracicaba, Mostra Mistura Fina, Projeto Arte Educação - Série Tapetes de Fé, 2004; III Bienal de Artes Visuais de São João da Boa Vista, Série Tapetes de Fé - Passagem para o Trem, 2002; 10° Salão Paulista de Arte Contemporânea - Série Tapetes de Fé - Passagem para Fidelis, 2002.

6
O senso demográfico do IBGE realizado em 2004 atribui uma população de 1.031.887 habitantes para a cidade que tem uma importante universidade estadual (Unicamp), duas universidades particulares (PUC e UNIP) além de outras doze faculdades também particulares. Os museus de arte e galerias oficiais da cidade têm divido seu espaço de atuação e importância com instituições privadas de grandes e médias empresas que oferecem, nesse conjunto, uma programação cultural ainda oscilante. A ação de ateliês e grupos de artistas organizados em eventos mais pontuais age em favor dessa programação, na maioria das vezes, independente do apoio financeiro sistematizado via município ou via leis de estímulo e parcerias empresariais. Esse quadro resume os pontos levantados pelos teóricos ligados à discussão sobre a política pública cultural local. Esses discursos críticos frequentemente apontam para questionamentos e argumentação comparativa ao passado saudoso vivenciado pela cidade nessa área artística e cultural algumas décadas atrás.

7
Frederico Morais, dentre outros críticos e estudiosos da contemporaneidade avalia as condições de atuação da arte no mundo atual sublevando suas qualidades de guerrilha. Com isso nos dá a chave para o valor do acontecimento em lugar da obra/objeto: “O artista, hoje, é uma espécie de guerrilheiro. A arte, uma forma de emboscada. Atuando imprevistamente, onde e quando é menos esperado, de maneira inusitada (...) o artista cria um estado permanente de tensão, uma expectativa constante. Tudo pode transformar-se em arte, mesmo o mais banal evento cotidiano. (...) Porque não sendo mais ele autor de obras, mas propositor de situações ou apropriador de objetos e eventos, não pode exercer continuamente seu controle. O artista é o que dá o tiro, mas a trajetória da bala lhe escapa. (...) Participar de uma situação artística hoje é como estar na selva ou na favela. A todo momento pode surgir uma emboscada da qual só sai ileso, (...) quem tomar iniciativas. E tomar iniciativas é alargar a capacidade perceptiva, função primeira da arte.” Ver em: MORAIS, Frederico. “Contra a arte afluente, o corpo é o motor da obra”, In: BASBAUM, R. (org). Arte Brasileira contemporânea. Rio de Janeiro, Ed. Rios Ambiciosos, 2001, p. 171.

sobre o autor

Doutoranda FAU-USP, artista-plástica, sócia do Ateliê Aberto de Campinas.

Sylvia Furegatti, Campinas SP Brasil

A Quadra, Cecília Stelini, Campinas SP, setembro de 2005. Detalhe da intervenção

A Quadra, Cecília Stelini, Campinas SP, setembro de 2005. Detalhe da intervenção

A artista plástica Cecília Stelini fazendo a Quadra

 

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