Nos dias 8, 9 e 10 de fevereiro, a University of Michigan foi sede do 4th Academic Symposium on New Urbanism, com a presença de Peter Calthorpe, Michael Sorkin, Mario Gandelsonas, Robert Fishman, Robert Campbell, Camilo Vergara, Mike Pyatok, George Baird e Andres Duany, entre outros (1).
Nascido da necessidade de se repensar os subúrbios, dominantes no cenário norte-americano desde os anos 50, New Urbanism propõe algumas soluções que parecem senso comum para nós brasileiros, mas que aqui no norte chegam a ser rotuladas de radicais, como: aumento de densidade em relação aos subúrbios; incentivo ao uso múltiplo; zoneamento flexível permitindo que alguns dos percursos diários sejam feitos a pé (!) e volta do grid de ruas em substituição aos cul-de-sac. Articulado em torno de uma associação de profissionais (Congress of New Urbanism ou CNU) e genericamente definido como um movimento contrário ao subúrbio norte-americano, o New Urbanism é mais conhecido por dois empreendimentos famosos, as cidades de Seaside (2) e Celebration (3), para desespero de alguns de seus membros mais sérios. Como solução para os problemas da expansão suburbana (sprawl), a fórmula New Urbanista reza que aumentando a densidade e permitindo usos múltiplos (comércio e residência na mesma quadra, por exemplo) estariam diminuindo a degradação ambiental, promovendo mais interações de vizinhança e diminuindo a dependência do automóvel.
A proposta já celebra 20 anos de existência nos EUA (Seaside foi inaugurada em 1980) e o Congress of New Urbanism cresceu substancialmente nos anos 90 com o apoio de grupos ambientalistas, incorporadores, empreendedores e políticos de todos os espectros ideológicos. Entre os argumentos mais convincentes está o fato de que o aumento de densidade salva áreas cultivadas e reservas naturais da ameaça do modelo suburbano, e também agrada à indústria da construção que vende mais unidades em menor espaço.
Mas nem tudo são flores na prática do New Urbanism. O outro lado da agenda mostra um aumento significante no número de condomínios fechados, gentrificação, conservadorismo estilístico, homogeneidade e uma imagem geral de intolerância.
Logo na abertura do Simpósio, Michael Sorkin roubou a cena e desfilou uma lista de "10 advertências aos meus amigos do New Urbanism". Resumindo aqui as críticas de Sorkin, New Urbanism precisaria, em primeiro lugar, de pensar mais seriamente na questão da diversidade e revisar suas propostas para alcançar uma parcela maior da população, já que atualmente se dirige apenas à classe média branca norte-americana. Nesse ponto, Sorkin se mostra afinado com Peter Marcuse (4) quando este nos lembra os dois principais pontos fracos do New Urbanism: 1. não oferece solução alguma para os problemas urbanos já existentes (a receita foi aplicada apenas a novos empreendimentos, não a áreas já ocupadas); e 2. oferece mais uma opção de escolha (palavra cultuada pelos New Urbanistas e neo-liberais de plantão) para uma classe média branca que já tem várias opções, deixando de fora os que mais sofrem os problemas urbanos (nos EUA, os negros e os imigrantes). A defesa dos New Urbanistas aponta para um empreendimento na área degradada de Chicago, Hope 6. É esperar para ver o resultado mas estudos de Ellen Dunham-Jones apontam que apenas 1 em cada 4 habitantes deslocados da área original permanecem no novo empreendimento.
Outro problema levantado por Michael Sorkin diz respeito ao conservadorismo estético dos empreendimentos New Urbanistas construídos até agora. Casinhas vitorianas com telhados de duas águas, revestimento de madeira e varanda frontal dominam o vocabulário New Urbanista, num revival que casa com o historicismo dos anos 70 e 80 e com o conservadorismo da classe média americana. Não é por acaso que as referências "internacionais" dos New Urbanistas são Leon e Rob Krier, sempre citados quando é preciso defender o uso de tipologias do século 19. Segundo Michael Sorkin, não se deve subestimar o poder – transformador ou reacionário – da imagem. Nesse ponto, merece destaque os trabalhos de Michael Pyatok. Pyatok, parece ter embarcado recentemente na canoa New Urbanista depois de décadas de batalha por habitação popular em Ockland, California. Seu trabalho é citado sempre que se critica o New Urbanism por não ter nada a oferecer às classes menos favorecidas, mas a adesão tardia de Pyatok é exceção que reforça a regra.
Michael Sorkin continua sugerindo ainda que os New Urbanistas abandonem o tom messiânico e parem de flagelar o modernismo como culpado de todos os males. Como nos lembra Sorkin, o subúrbio tem suas origens tanto na Garden City britânica quanto em Corbusier. Gestado nos anos 70, o New Urbanism insiste em ver a arquitetura moderna como grande mal a ser combatido, como que passando ao largo de tudo o que se escreveu revisando esta posição nos anos 90. Quanto à questão de que os New Urbanistas entendem seu trabalho como "moralmente superior" conta o fato de que chamam uns aos outros de apóstolos. Mas junto com essa pretensa "missão divina" de mudar o mundo vem um discurso extremamente pragmático que várias vezes beira a hipocrisia. Quando explicando que os ambientalistas serão o próximo grande problema dos arquitetos porque terão cada vez mais poder de decisão, Andres Duany lembrou que os EUA já não tem de lidar com agentes poluidores pois foram todos exportados para o México (5).
Por essas e por outras Michael Sorkin terminou seu discurso crítico conclamando os New Urbanistas a terem muito cuidado com o lado da cerca em que se posicionam. Não é por acaso, diz Sorkin, que New Urbanism vem associado a condomínios fechados, gentrificação e controle total às empresas (6), como no Show de Truman, não por acaso filmado em Seaside, FL, primeira experiência New Urbanista. Se como disse Ellen Dunham-Jones o New Urbanism se define por aquilo a que se opõe, é de se perguntar porque não se opõe à gentrificação e discriminação dos condomínios fechados, ou à homogeneidade dos códigos de conduta (7). Inspirado na qualidade de vida das pequenas cidades americanas, o New Urbanism se esquece, nas palavras de Peter Marcuse (8), que tais cidades sempre foram e continuam sendo dominadas por racismo, intolerância, discriminação e principalmente aversão a tudo que seja diferente.
Em resumo, muita identidade e pouca alteridade por trás de uma fachada de normalidade, muito parecido com o Show de Truman ou com a ficção de Aldous Huxley. Mas não deixa de ser uma articulação admirável a qual devemos prestar atenção. Admirável urbanismo novo.
notas
1
Outros participantes incluem Douglas Kelbaugh, Ellen Dunham-Jones, Tony Schuman, Dan Solomon, Harrison Fraker, Stefanos Polyzoides, Alex Krieger, Scott Campbell, David Scobey, Ann Forsyth, James Cheng.
2
Sobre Seaside, Flórida, projeto de Andres Duany de 1980, ver: LARA, Fernando & MARQUES, Sonia, "Where has Truman gone?" Trabalho apresentado na Conferência Homelands, University of North Carolina Charlotte, outubro de 2000.
3
Sobre Celebration, Flórida, projeto e incorporação da Disney Corporation, ver: LARA, Fernando. "Vizinhos do Pateta", AQUI, Revista do IAB-MG, outubro de 1999, p. 48-49.
4
MARCUSE, Peter, The New Urbanism: the dangers so far, DISP 140 , 2000, p. 4-6.
5
Andres Duany em palestra do dia 9 de fevereiro de 2001.
6
Em Celebration, Flórida, por exemplo, não há eleições para prefeito, toda a administração local é feita pela Disney Corporation.
7
Quase todos os empreendimentos New Urbanistas seguem um rigoroso código de conduta pós-ocupação que pretendendo evitar a "degradação" da vizinhança proíbe qualquer morador (mesmo que proprietário) de pintar sua casa ou modificar o jardim sem aprovação da administração.
8
MARCUSE, Peter, The New Urbanism: the dangers so far, DISP 140, 2000, p. 4-6.
sobre o autor
Fernando Lara é arquiteto, professor da PUC-Minas, doutorando pela University of Michigan, EUA onde é atualmente pesquisador residente do Institute for the Humanities.