Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

architexts ISSN 1809-6298


abstracts


how to quote

AMORIM, Luiz Manuel do Eirado; LOUREIRO, Claudia. Uma figueira pode dar rosas? Um estudo sobre as transformações em conjuntos populares. Arquitextos, São Paulo, ano 01, n. 009.06, Vitruvius, fev. 2001 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.009/920>.

A criação de formas – normas e regras de projeto, códigos e convenções de uso

Na criação de formas, dois aspectos se destacam. Por um lado, um conjunto de normas e regras, como instrumento de projeto, materializam idéias que ordenam formas, e organizam o espaço. Por outro lado, códigos e convenções de uso redefinem as formas criadas pelo projeto, bem como a organização de usos e atividades. Há, entre estes dois pólos, congruência e confluência. Ou seja, por um lado, a busca, numa visão tradicional, de harmonia de uma coisa com o fim a que se destina, traduzindo qualidades a-temporais, formando as maneiras de fazer, tornar-se e ser; por outro, confluência revela a visão experimental – qualidades inesperadas e não planejadas que informam o momento (Johnson, 1994). A organização do espaço doméstico é parte deste processo bi-facetado de criação de formas, onde, se por um lado a visão profissional se orienta por taxinomias precisas e harmônicas, por outro, a visão cotidiana cria uma nova agenda a ser atendida.

A casa, seja ela isolada no lote, geminada, térrea ou em pavimentos, se caracteriza, de uma maneira geral, pelo acesso direto entre os domínios público e privado. Por outro lado, o edifício de apartamentos, caracteriza-se pela agregação de unidades habitacionais em unidades condominiais, que compartilham entre si espaços comuns, principalmente aqueles destinados ao acesso à via pública. A composição dessas unidades habitacionais se utiliza das regras da geometria que definem o campo de possibilidades de agregação de formas, para atender aos objetivos de abrigar as atividades domésticas. São leis que também estabelecem as possíveis maneiras de adaptação de seu arranjo, de tal modo que essa delimitação, de natureza teórica, estabelece uma certa previsibilidade de transformações, sempre segundo as mesmas leis.

Neste aspecto, é curioso observar que as transformações que vêm ocorrendo nos conjuntos habitacionais populares localizados na periferia de Recife, particularmente nos edifícios de apartamentos, parecem tentar superar estas restrições geométricas. Praticamente nenhum edifício permanece restrito à forma da lâmina original, com ampliações sucessivas em todas as direções. Para operacionalizar transformações como estas, a racionalidade imposta pelas restrições econômicas para a construção de conjuntos habitacionais de grande escala, são totalmente subvertidas. Estruturas em concreto são lançadas sem que se conheça a resistência estabelecida para a estrutura original, paredes portantes são modificadas livremente, extensões são realizadas sem a observância dos recuos entre edifícios e entre estes e a rua.

Formalmente, as transformações são bastante significativas. As aberturas não seguem a padronização imposta pelo projeto; varandas, balcões, jardineiras ou armários são acrescidos; novas coberturas são introduzidas, novos revestimentos são utilizados. Dessas transformações, aquela que parece mais significativa é a que pouco se percebe, em face da exuberância das modificações geométricas e construtivas. Elas se referem, ao seu princípio gerador: a procura por um acesso direto da rua para a unidade habitacional, ou seja, uma negação ao princípio condominial e um retorno à relação público-privado presente na casa. Este desejo é tão forte, que a procura por uma acessibilidade direta da rua pode ser encontrada em todos os pavimentos, do térreo aos pavimentos mais altos. Sempre possível pela transgressão às regras coletivas.

Essas transformações também são percebidas na configuração dos espaços públicos: sejam eles originalmente destinados ao acesso, circulação ou lazer dos moradores do conjunto, vêm sendo paulatinamente privatizados pela expansão das unidades habitacionais e pela construção de equipamentos de comércio e de serviços. O padrão original, baseado na formação de quadras de blocos paralelos, se transforma em uma sucessão de pátios, vielas e passagens, gerando uma configuração espacial que se assemelha aos assentamentos espontâneos, dada as novas relações configuracionais que se criam (figura 1). Curiosamente, as transformações nos espaços públicos parecem seguir um caminho exatamente contrário àquele encontrado nas unidades habitacionais. Se nestes é a tentativa de superar as restrições geométricas que caracteriza o fenômeno de transformações dos edifícios de apartamentos, nos espaços públicos, é justamente o menor número de tais restrições, ou sua aparente ausência, que permite uma maior liberdade de transformação do desenho urbano – ou seja, aqui supera-se a ausência de regras. Em certo sentido, pode-se afirmar que a ocupação dos espaços públicos e a mutação das edificações são duas faces do mesmo fenômeno. A face mais conspícua é a que redefine limites da geometria, subverte a racionalidade construtiva e projetiva, e procura estabelecer novas regras de acessibilidade no sistema. A outra face, não tão visível, é aquela que redefine códigos de uso, que são, essencialmente, códigos de vida social e de vida espacial.

As formas de morar: do sobrado e da casa isolada no lote ao edifício de apartamentos

O edifício de apartamentos moderno – um conjunto de unidades residenciais justapostas, servido por espaços de uso comum – parece ter surgido na cidade do Recife na década de 30. Mas esta forma de habitação multifamiliar justaposta, não é nova. Na verdade, os antigos sobrados dos tempos coloniais já haviam sofrido um processo de conversão de habitação unifamiliar para unidades apartadas, uma em cada andar, servidos por uma escada comum. Esta conversão aponta para um processo de substituição de moradores – as classes mais abastadas transferem-se para os subúrbios, o que leva a uma reestruturação espacial daquelas unidades coloniais nas áreas centrais da cidade. Originalmente destinadas à ocupação de apenas uma família, como ressaltado pelo engenheiro-arquiteto francês Vauthier, em seus registros sobre o Recife oitocentista, o sobrado passou a se constituir numa unidade condominial, com famílias ocupando pavimentos individualizados. A própria estrutura espacial do sobrado em muito facilitou esta ocupação, porque de uma maneira geral, os diversos planos apresentavam plantas absolutamente iguais, para o espanto de muitos metecos e visitantes (Vauthier, 1975).

A permanência do sobrado urbano na forma de construir e elaborar o espaço de moradia foi fundamental para o surgimento de um tipo de transição, encontrado em vários bairros centrais da cidade ainda na década de 30, onde o tipo sobrado estabelece as regras gerais de estruturação espacial e organização funcional do pequeno edifício multifamiliar. Essas unidades de transição são geminadas, variando de três a cinco pavimentos, com a ocupação do térreo (por vezes com jirau) para atividades comercias, e os demais para uso habitacional, acessíveis diretamente da rua por escada lateral (Amorim & Loureiro, 2000).

Estas formas de habitação multifamiliar, com compartilhamento de um mesmo teto e da propriedade, atendiam à demanda por habitação de uma classe média crescente na cidade. Nesta linha, são os institutos de previdência, privados ou públicos, os responsáveis pela introdução na cidade de um novo tipo de organização da habitação para a classe média trabalhadora, adotando princípios modernistas. Por exemplo, o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI) construiu um edifício de apartamentos inovador, projetado pelo arquiteto Carlos Frederico Ferreira, em 1939, composto de unidades habitacionais dúplex, solução rara ainda hoje (Silva, 1988: 23).

Até a década de 70, no entanto, a solução multifamiliar, sob qualquer de suas formas, não se aplicava à habitação para populações de mais baixa renda – para este segmento, o padrão era a unidade habitacional em lote individualizado, reunidos em vilas. Esta foi a solução que predominou desde a atuação da Liga Social contra o Mocambo, programa de erradicação do mocambo implementado pelo governo estadual, entre 1939 e 1945. O programa tinha como meta a substituição dos mocambos, que representavam, em 1938, cerca de 60% das habitações na cidade, por unidades habitacionais mais adequadas: higiênicas, confortáveis e duradouras. Exceção ao padrão da vila de casas isoladas no lote, é representada por um único conjunto construído sob o comando da Liga: destinado a trabalhadores do comércio, era composto de edificações conjugadas, com dois pavimentos, uma unidade residencial em cada, com acessos independentes. É somente no final de 70 que a solução do edifício de apartamento é aplicada a um conjunto popular público, construído pela COHAB – a Etapa 4 do Conjunto COHAB-Rio Doce. Neste, grupos de edifícios sobre pilotis são arranjados em quadras comuns, sem individualização de lotes, num planejamento que toma por base preceitos modernistas bastante próximos das superquadras consagradas pela solução brasiliense – o rés do chão é livre, público, democrático, estabelecendo assim uma gradação tênue entre o domínio público e privado, expresso na ausência de portais de controle, a não ser pelo hall de acesso aos apartamentos.

O uso de pilotis neste conjunto constituiu-se, no entanto, numa experiência única – nos conjuntos que se seguem, o pilotis é eliminado e ocupado por unidades habitacionais, permanecendo, no entanto, a concepção de quadra, sem individualização de lotes. São, na sua grande maioria, edifícios de três ou quatro pavimentos, em forma de barra dupla, interligadas pelo sistema circulação vertical e horizontal do edifício. Este tipo, em cada conjunto, é combinado com habitações unifamiliares – além das quadras livres com os edifícios de apartamentos, casas isoladas, térreas ou dúplex, geminadas ou não, são arranjadas em quadras tradicionais, com lotes de cerca de 200m², repetindo o padrão de loteamento tradicional da cidade.

O que diferencia as duas soluções, a casa e o apartamento, entre outras características, é o padrão de acesso à unidade residencial – enquanto no apartamento, o acesso a partir da rua se faz por um espaço comum, compartilhado, na casa, ele é independente, exclusivo do morador. No edifício de apartamento, hall, escada de acesso e patamares constituem zonas ambíguas entre o interior e exterior da habitação e seu uso é regulado por códigos jurídicos, físicos e de comportamento. Na casa, a ambigüidade é eliminada por um portão, que separa o lote da rua, desempenhando o papel de um umbral.

Um outro traço distintivo é o espaço livre do terreno. O espaço do recuo para a rua nas quadras com os edifícios de apartamento é público, sem controle – a sua classificação é ambígua, sem definição de frente ou fundo, ou lados. Nas casas, o espaço do recuo é privado e controlado, separado do domínio público por um muro, uma barreira física e legal, que classifica porções do terreno – frente, fundo e oitões têm definição clara. Sobre o uso deste espaço, o morador, na casa, tem poder de determinação – jardim (frente) e quintal (fundo) têm destinação que atende aos interesses da família. Nas quadras, a destinação do espaço remanescente é objeto de negociação, deve atender não a uma, mas ao interesse de várias famílias, além da comunidade que habita aquela mesma vizinhança. Ele é, na verdade, não o prolongamento da casa, mas o prolongamento da rua. O quadro abaixo sumaria estas diferenças.

Variáveis

Casa

Edifício de apartamento

Acesso (relação com a rua)

Privado – único

Direto e independente

Público

Indireto e compartilhado

O espaço além da casa

Privado – extensão da casa

Público – extensão da rua

Uso do lote/recuos

Atende à família

Atende à comunidade

Natureza simbólica

Individual

Comunitário

Oposição geométrica (relação com a rua)

Junto de – público

Remoto – íntimo

Junto de – público

Próximo – público

Remoto – íntimo

Oposição topológica (relação com a rua)

Frente – público

Fundos – íntimo

Frente/fundos – público

Do edifício de apartamentos à casa isolada – reconversões

Códigos e convenções no uso

Após algumas décadas de ocupação, o perfil destes conjuntos está distante de suas concepções originais. Transformações, supostamente irrealizáveis, resultam em um novo projeto (no sentido de uma projeção dos interesses dos habitantes), sendo definido e gerando novos códigos e usos. As variantes das transformações são inúmeras. O que há de comum entre elas é o fato de que, mais que um novo projeto, o que se estabelece são novos limites, ou definições entre público x privado, frente x fundo, acima x abaixo, dentro x fora. Subjacente à diversidade de expressões formais, estaria se gerando um novo tipo? A descrição de algumas ocorrências típicas poderá ajudar na compreensão deste inusitado fenômeno.

Uma das modificações mais comuns ocorre nos apartamentos localizados no pavimento térreo: um terraço é acrescido na fachada lateral da edificação, conectando a sala diretamente ao exterior, para um jardim "frontal", obtido com o muramento do espaço de recuo, onde, com freqüência, se localiza, também uma garagem. A entrada para o apartamento, que antes se dava por entre as hastes do H, agora se faz por sua lateral. Esta simples reforma tem duas conseqüências – uma se refere a uma nova convenção de uso, a outra, a uma nova regra geométrica: com a inversão da entrada, o morador se desliga das obrigações coletivas em relação às áreas comuns; sobre a laje que é acrescida para conformação do terraço, o morador do primeiro pavimento pode também expandir seu imóvel. Daí decorre, ainda, uma nova possibilidade: o morador do primeiro pavimento, já com seu imóvel ampliado além dos limites da lâmina, acrescenta uma escada externa e, desta forma, passa a usufruir da mesma convenção de uso que o seu vizinho do pavimento abaixo. Dois apartamentos são, então, convertidos em duas casas isoladas, justapostas, com acessos independentes. Se a quadra se localiza em uma cota mais alta que a via pública, as áreas decorrentes do desnível em cotas inferiores àquelas do edifício podem ser incorporadas para a formação de unidades em dois ou três pavimentos, abrigando garagem e espaços comerciais ou de serviços (figuras 2, 3, 4 e 5).

No entanto, as transformações nem sempre seguem este caminho de baixo para cima. Do primeiro, ou segundo pavimento, uma estrutura lançada no espaço de recuo da rua, serve de base à ampliação do imóvel. Ou, ainda, a ampliação do térreo é parte da reforma do apartamento do primeiro pavimento, transformando este em um dúplex. Ainda, o processo pode ser intercalado, ou alternado (figuras 6 e 7). Como variante extrema do processo encontra-se, ainda, a ocupação da cobertura do edifício para uso privativo dos moradores do pavimento superior.

Por outro lado, expressões simbólicas de individualidade desconstróem o princípio de harmonia compositiva e racionalidade construtiva. As esquadrias destas novas ampliações não seguem o modelo do edifício original, nem do ponto de vista dimensional, modular ou tipológico. Cada um estabelece seu próprio padrão, atendendo, possivelmente, ao gosto, à necessidade de individualização ou restrições orçamentárias: desta forma, venezianas, janelas em arco, grades de diversos tipos, jardineiras, revestimentos diversos, fornecem ao conjunto final um aspecto que está longe da monotonia decorrente da repetição dos mesmos elementos (figuras 8 e 9). Transformações menos radicais consistem na abertura de janelas nas superfícies cegas do edifício: busca de novas vistas, de melhor orientação, ou rearranjo interno?

Os efeitos ampliados: da quadra livre às vielas, becos e pátios – redefinição de espaço público e privado, construção de portais de controle

A figura 1 apresenta uma quadra do Conjunto COHAB Curado 3, construído na Região Metropolitana do Recife (RMR), no município de Jaboatão dos Guararapes, numa localização periférica, às margens de uma estrada federal, próximo a um distrito industrial, em terreno de relevo acidentado. Este conjunto, como os demais na RMR foi construído em etapas – as duas primeiras são compostas de casas isoladas de 2 e 3 quartos. Nas demais, foi adotada a solução de mistura de tipos – edifícios de apartamento e casas unifamiliares. O princípio compositivo das quadras multifamiliares consiste da repetição de um mesmo elemento: um bloco em dupla barra em forma de H. Estes são arranjados segundo a orientação adequada, paralelos à maior dimensão da quadra, definindo espaços intersticiais com pouco controle de acesso e pouco diferenciados com relação à polaridade público e privado. Na mesma figura 1, está apresentada a situação atual da quadra: os espaços intersticiais são ocupados ou reclamados para uso privativo, as diferenciações entre os espaços livres das quadras são acentuadas pela formação de vielas, passagens e largos, o movimento de pedestres se diferencia entre o interior e o exterior da quadra (figura 7).

Com este processo de apropriação gradual dos espaços livres da quadra, redefine-se a interface entre o domínio público e o privado. As figuras 10 e 11 mostram mapas destas interfaces para a situação de projeto e para a situação atual: os espaços livres para os quais há uma abertura de acesso à unidade foram representados por um círculo vermelho, e os pontos de interface entre o domínio público e privado, por um círculo na cor púrpura. Na composição original poucos são os pontos de qualquer natureza – sejam eles indicativos de um espaço aberto com entrada, ou de interface. Na situação atual, estes pontos se multiplicam, formando uma intricada rede de relações locais e globais, semelhante àquela encontrada em tecidos urbanos de crescimento espontâneo.

Entendendo as reconversões

Acessibilidade diferenciada

Uma forma de entender os efeitos das reconversões ocorridas nos espaços livres, referidas na seção anterior, é através da descrição das características de acessibilidade das áreas livres do conjunto antes e depois das reconversões. O efeito das transformações pode ser observado graficamente pela representação das possíveis linhas de visibilidade e acessibilidade em dois instantes: como concebido pelos arquitetos e como modificado pelos moradores. Para permitir uma avaliação quantitativa, essas linhas são apresentadas em uma gradação de cores, entre vermelho e púrpura, representando a distancia média de cada linha para todas as outras. Isso significa dizer que as linhas vermelhas são as mais acessíveis e as roxas, as mais remotas.

A figura 12 mostra os resultados da análise. O sistema projetado apresenta algumas propriedades interessantes. A primeira delas é a existência de linhas de circulação que cruzam intensamente a quadra no seu interior. A segunda delas é que são exatamente essas linhas aquelas mais rasas em todo o sistema, o que significa dizer que a possibilidade dessas linhas corresponderem às linhas de maior movimento de pedestres na quadra é muito grande (Hillier et al., 1993). O sistema modificado, por sua vez, apresenta uma configuração absolutamente diversa daquela observada anteriormente. As linhas de maior acessibilidade (vermelhas) encontram-se na periferia da quadra, sugerindo que o movimento ocorreria em maior intensidade nas vias circundantes da quadra, garantindo assim aquele gradiente de privacidade entre os espaços mais públicos e aqueles mais privados – da comunidade moradora da quadra.

O que se pode deduzir dessa simples análise das propriedades sintáticas dos dois sistemas é que as modificações introduzidas de forma aleatória pela população moradora geraram um sistema espacial que procura evitar o uso interno da quadra por parte da população do conjunto. Com isso, é possível restituir algumas propriedades que parecem estar ausentes no sistema projetado. Primeiramente, um certo gradiente de privacidade. Segundo, o restabelecimento de uma lógica nas polaridades existentes na estrutura urbana tradicional – relação entre espaços fechados e espaços públicos, expressas pela dualidade frente/fundo. Ao estabelecer-se um sistema hierárquico de movimento, estabelece-se mais claramente uma separação entre aquilo que é público – as vias de acesso do conjunto, e aquilo que é privado, o interior da quadra. Dessa forma, mesmo sem poder inverter a polaridade frente e fundo, ela é substituída por uma relação público e privado: o acesso aos apartamentos é feito pelos espaços mais privativos e não necessariamente no fundo da quadra.

Nota-se porém, que nas diversas reconversões encontradas no Conjunto COHAB Curado 3 é significativo os casos em que os moradores buscam restituir o sentido de frontalidade das suas unidades de moradia, pela construção de escadas independentes de acesso diretamente da via pública. Desta forma, restitui-se a relação entre espaço fechado e espaço aberto, subjacente à estrutura dos assentamentos tradicionais. Isso pode ser notado, também, pela multiplicação de acessos diretos da rua às novas unidades edificadas, quando comparadas ao sistema original, como visto na figura 6 anterior.

De certo modo, as modificações na morfologia da quadra são no sentido de dar àquela forma urbana ordenada, composta de elementos fechados iguais, repetidos sistematicamente dentro de um padrão compositivo rítmico (cheio/vazio) monótono, uma forma urbana mais estruturada, na qual a lógica de repetição de unidades moduladas é substituída pela agregação aleatória de unidades não-modulares, no sentido de criar diferenciações locais mais evidentes e gerar um sistema global mais diverso. Em uma escala de valores compreendidos entre ordem e estrutura, os conjuntos habitacionais populares estudados vêm migrando lentamente de um extremo a outro, afastando-se da previsibilidade formal do modelo modernista, e aproximando-se da imprevisibilidade e aparente desordem dos assentamentos espontâneos.

Ensaio explanatório

Este processo de transformação pode ser sintetizado em um modelo hipotético. A figura 13 mostra uma quadra hipotética e o seu padrão de distribuição de linhas de visibilidade e movimento. A figura 14 sugere como a agregação de novas unidades construtivas se efetiva para estabelecer o resultado final deste processo de transformação morfológica. Neste, fica definida uma maior diferenciação entre as suas partes, principalmente entre o interior e exterior. No exterior as vias principais de conexão da quadra com o restante do conjunto, e no interior a formação de espaços mais centrais, permitindo a co-presença de seus moradores.

A interface entre as unidades habitacionais e a rua é restabelecida. No modelo moderno, como mostrado no grafo justificado da figura 8, essa interface é mediada por uma seqüência de espaços públicos e privados, correspondentes aos espaços livres do interior da quadra (representados por um círculo vermelho), os espaços de interface público x privado (representado por um círculo púrpura) e o sistema de circulação vertical e horizontal do edifício (representado por um círculo branco, com unidades habitacionais representadas por um círculo amarelo). No modelo reconvertido (à direita na figura), algumas unidades habitacionais criam acessos alternativos, principalmente aquelas mais próximas do rés do chão, aumentando consideravelmente a interface entre os universos doméstico e o público.

Considerações finais: a figueira que dá rosas

O projeto arquitetônico dos conjuntos analisados toma por base os conceitos de Existenzminimum, um conjunto de necessidades básicas que garantiriam um mínimo nível de vida digna para qualquer cidadão – são necessidades universais. O que se depreende das transformações realizadas é um outro nível de necessidades, requerimentos tão indispensáveis quanto um teto para morar, ar, luz e serviços mínimos. Estes estariam relacionados às oposições binárias que organizam o uso do espaço doméstico, como ressalta Lawrence (1997): masculino x feminino, direita x esquerda, frente x fundo, limpo x sujo, simbólico x profano. Pesquisas de diversos autores sugerem o quanto é importante para o morador a possibilidade de partição de espaços e zonas que permitam a expressão destes códigos binários na ordenação das atividades domésticas. A expressão destes códigos binários é a um só tempo funcional, espacial, social e psicológica – sua classificação é tanto a demarcação quanto a transferência entre qualquer dos pólos do código (cf. Lawrence, 1977). Assim, onde, como, porque e quando, esta transferência se processa é uma questão de projeto: como público torna-se privado, frente torna-se fundo, profano torna-se simbólico. A questão é traduzida pela identificação dos códigos implícitos e convenções por oposição a normas explícitas e regras, como ressalta Lawrence (1997), que definem os limites do projeto e de uso do espaço doméstico, notadamente, espaços de transição e de limitação entre domínios.

As transformações observadas são recorrentes, e vêm acontecendo em praticamente todos os conjuntos populares da periferia de Recife. Elas apontam para diferentes concepções dos códigos binários mencionados acima, diferenças estas que repousam na questão inicial de projeto para o profissional que desenha e para o morador que usa. O que está subjacente a estas diferentes concepções é o entendimento de duas propriedades espaciais e suas relações com atributos sociais que regulam o uso dos espaços – acessibilidade x co-presença e visibilidade x co-ciência. Melhor dizendo, refere-se ao controle que é exercido sobre a acessibilidade – que separa ou reúne seletivamente outros, e sobre a visibilidade – relacionada à possibilidade de tomar ciência de outros significativos. Segundo Hillier & Hanson (1984), uso e movimento criam padrões de vida espacial, ou seja, um campo potencial de encontro e co-presença, que são relações sistemáticas e produto do desenho do espaço. Tais relações decorrentes do projeto são mais globais, um campo de movimento e co-presença de outros mais distantes. A intervenção dos moradores, por sua vez, cria relações mais locais, entre outros mais próximos. Portanto, pode-se afirmar que as expectativas do projeto e as expectativas do morador quanto ao uso do espaço estão em extremos opostos daquilo que Holanda definiu como paradigma de formalidade e paradigma de urbanidade (Holanda, 1997).

As diferentes expectativas podem ser ilustradas por recente trabalho jornalístico acerca das transformações ocorridas em conjuntos habitacionais. Recentemente, dois desabamentos de edifícios de apartamentos, ocorridos em Olinda, com conseqüências fatais, chamaram atenção da mídia para o fenômeno das transformações aqui descritas e o assunto passou a ser amplamente discutido. É curioso notar que na reportagem referida, os profissionais entrevistados (arquitetos e engenheiros), comentavam as transformações sob o ponto de vista da transgressão de uma certa ordem estética e construtiva estabelecida por um conhecimento formal. Em nenhum momento, estes profissionais observaram as razões pelas quais os moradores modificaram o objeto originalmente concebido, nem tampouco as conseqüências, do ponto de vista de uso, das ações aparentemente desordenadas. A matéria estabelecia uma necessidade de controle das modificações porque elas teriam sido feitas sem o adequado acompanhamento técnico, pondo em risco seus próprios moradores.

O fenômeno sumariamente discutido neste artigo apresenta outras facetas que necessitam de investigações particulares. Se na irregularidade de certos fenômenos está, muitas vezes, a chave para o seu entendimento, então a preservação das características originais de certos conjuntos ou de tipos edilícios constitui-se em um objeto de estudo fundamental para o entendimento do processo de reconversão em sua totalidade. Observou-se, por exemplo, que os edifícios construídos sobre pilotis apresentam um baixo índice de transformação, estando o pavimento térreo, na sua grande maioria, vazio, ou ocupado por garagens (figuras 15 e 16). Porque o pilotis não é ocupado, se esta é uma situação mais própria para ocupação, por apresentar estrutura independente, piso acabado e coberta? No caso do conjunto em que a solução do pilotis foi adotada, as transformações se deram no sentido de delimitar o lote do edifício, pela subdivisão da quadra. Os estudos em desenvolvimento pretendem explorar estas outras formas e espera-se que algumas das respostas encontradas possibilitem uma reformulação do discurso crítico acerca do processo desordenado de ocupação dos espaços livres dos conjuntos populares da região, demonstrando que este fenômeno se origina na própria inadequação do programa e solução projetiva do problema da moradia popular.

notas

1
Artigo originalmente apresentado no Seminário Internacional NUTAU-2000 Tecnologia e Desenvolvimento, organizado pela FAU-USP em setembro de 2000. Os autores agradecem a profª Drª Circe Monteiro e sua equipe de bolsistas, pela cessão dos dados sobre o conjunto COHAB Curado 3 utilizados neste artigo.

referências bibliográficas

AMORIM, L. & LOUREIRO, C. O Morar Coletivo. Recife: Relatório de Pesquisa DAU/UFPE/Laboratório de Projeto, 2000.

DAL FARRA, Maria Lúcia. "Florbela: um caso feminino e poético". In: Espanca, Florbela. Poemas de Florbela Espanca. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

DALTON, Nick. SpaceBox software. London: University College London, 1993.

HILLIER, B. et al. Natural movement: configuration and attraction in urban pedestrian movement. Environment and planning B: planning and design. London, Vol. 14, 393-385, 1993.

HILLIER, B. & HANSON, J. The social logic of space. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.

HOLANDA, F. d. Exceptional space. Ph.D. thesis submitted to the Bartlett School of Graduate Studies; University College London; University of London, 1997.

JOHNSON, Paul-Alan. The theory of architecture: concepts, themes, & practices. New York: Van Nostrand Reinhold, 1994.

LAWRENCE, Roderick J. "Public collective and private space: a study of urban housing in Switzerland". In: KENT, Susan (ed.). Domestic architecture and the use of space: an interdisciplinary cross-cultural study. Cambridge: Cambridge University Press, 1997, pp 73.

MONTEIRO, Circe. A sala invisível: análise da vivência domiciliar estendida em conjuntos habitacionais. Recife: Relatório de Pesquisa. DAU/UFPE/Laboratório de Projeto, 2000.

SILVA, Geraldo Gomes da. "Marcos da arquitetura moderna em Pernambuco". In: SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil/anos 80. São Paulo: Projeto, 1988.

VAUTHIER, L. L. "Casas de residência no Brasil". In: Arquitetura Civil I. São Paulo: FAU-USP/MEC-IPHAN, 1975. pp. 1-94.

sobre os autores

Luiz Manuel do Eirado Amorim é arquiteto, PhD em Arquitetura, professor adjunto da UFPE.

Claudia Loureiro é arquiteta, doutora em arquitetura e urbanismo, professora adjunta da UFPE.

comments

009.06
abstracts
how to quote

languages

original: português

share

009

009.00

Cinco respostas para a revista Projeto (editorial)

Abilio Guerra

009.01

Da série "A" de Cassino ao Museu de Arte da Pampulha

De Juscelino a Priscila/Nemmer

Sylvio Emrich de Podestá

009.02

Memória cultural e o patrimônio intangível

José Albano Volkmer

009.03

Loin du lieu, hors du temps

Jean-Paul Dollé

009.04

A persistência da caixa

Lêda Brandão de Oliveira

009.05

L’idee de fonction pour l’architecture: l'hopital et le XVIIIeme siecle – partie 1/6

Considérations préliminaires et la genèse de l'hôpital moderne: Tenon et l'incendie de L'Hôtel-Dieu de Paris (1)

Kleber Pinto Silva

009.07

A Petrobras e a reação dos designers

Ethel Leon

009.08

Caixa de contrastes

Casa de Blas em Sevilha la Nueva, Madrid, de Alberto Campo Baeza

Lêda Brandão de Oliveira

009.09

Admirável urbanismo novo

Fernando Luiz Lara

009.10

Arquitetura virtual

Emanuel Dimas de Melo Pimenta

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided