O ensaio de mudança da marca da Petrobras ocupou um bom espaço na nossa imprensa e, provocou na maioria das opiniões, veementes protestos. O governo federal, que já autorizara a empreitada, voltou atrás diante da comoção coletiva e mandou que a Petrobras ficasse como está, com esse bras que é seu sobrenome de pai legítimo do período Getúlio Vargas, quando foi concebida. A chamada opinião pública se calou e o episódio foi mais uma mancha no currículo recente da empresa, mancha bem menos grave do que aquelas que ela vem produzindo em vazamentos da Baía de Guanabara ou no rio Iguaçu.
O episódio se encerrou para a maioria, mas não para os designers. Uma de suas mais importantes organizações, a Associação dos Designers Gráficos (ADG), manifestou-se a respeito por meio de texto assinado pela diretora Ana Luísa Escorel, que se tornou a palavra oficial da entidade.
Nele, entre outros argumentos, se reclama do não-reconhecimento da atividade profissional do designer, comparando-a à publicidade. Esta, sim, já teria sido incorporada pelo público, enquanto o saber específico do design, no qual está a construção da marca de uma empresa, continua menosprezado.
O texto-manifesto fez parte do convite para um debate organizado pela ADG em 12 de fevereiro em São Paulo ao qual, infelizmente, não pude comparecer. Minha opinião aqui é um incentivo a que o debate continue e que ganhe um contorno menos corporativo do que aquele expresso no texto de Escorel.
A questão é que a opinião pública, a meu ver, não ficou contra a intervenção feita por designer, mas simplesmente contra a intervenção. E eu vejo na manifestação repleta de episódios patrioteiros aspectos de uma saúde cívica ímpar.
Em primeiro lugar, as pessoas reagiram porque vêem a Petrobras como "nossa", uma empresa do governo brasileiro, sobre cujas ações e imagem têm o direito de opinar. No mundo das Bras, a Petro é uma das fiéis remanescentes e, apesar dos graves acidentes que têm causado a nosso ambiente, ainda dá orgulho – é lucrativa, descobre novos poços a todo momento, tem tanta verba que patrocina todo tipo de evento cultural etc. E, aliás, é uma das empresas brasileiras que incorporou há muito tempo o design em sua identidade visual e na criação de bombas dos postos distribuidores com sua bandeira. Um de seus projetos foi assinado por ninguém menos do que Aloísio Magalhães, mestre de gerações de designers abaixo dos 60 anos.
Mas isso a opinião pública desconhece, é claro. Porque o design no Brasil, apesar do boom recente, não tornou mediáticos todos os grandes projetos. E isso não é de estranhar nem lamentar. Apenas de constatar. Pergunte a qualquer freqüentador do Masp ou do MAM-RJ, para falar em atividades-irmãs, quem foram os arquitetos que os conceberam. Poucos saberão responder, o que em nada diminui o mérito dos dois projetos. A arquitetura, o design e muitas áreas de atuação profissional têm poucos nomes mediáticos.
A Petrobras encarna, de longa data, um projeto nacionalista e todos que leram Monteiro Lobato sabem disso. Até hoje ecoam os gritos de O Petróleo é Nosso de uma das mais forte campanhas cívicas brasileiras. Denúncias de técnicos, geólogos, engenheiros assassinados a mando das grandes companhias petrolíferas norte-americanas por defender a idéia e demonstrar que havia petróleo no Brasil ganham ainda, eventualmente, as páginas do jornalismo/memória, que sobrevive no Brasil.
Essa manifestação de sentimento de propriedade sobre uma empresa, sobre seu nome e sua imagem é muito respeitada em alguns países de economia muito mais globalizada que a nossa. Vejamos o exemplo recente da Air France, a estatal francesa. A empresa encomendou ao escritório Radi Designers o redesenho da sua louça de bordo. O primeiro redesign foi reprovado, resguardando-se dele apenas os talheres alongados e elegantes porque os novos conjuntos não continham ... pratinhos especiais para queijo. Toda a louça foi refeita e perdeu boa parte dos atributos do primeiro projeto para incorporar esse hábito nacional da degustação do fromage pós-prato principal, com o uso da faca e o acompanhamento do pão. Com chauvinismo ou não, a Air France se antecipou à grita de seus usuários nacionais e também defendeu o French way of flying na sua estratégia corporativa.
Não quero entrar nesse mérito. Não sei se a Petrobras deve ou não mudar seu nome para Petrobrax. Só defendo o direito que alguém chie alto contra mudanças, entendendo que o destino do patrimônio público lhe diz respeito. Não acredito que se a nova marca houvesse sido proposta por agência de publicidade a grita teria sido menor. Existe uma diferença muito grande entre a absorção da publicidade pela cultura empresarial e pelos meios de comunicação. As empresas aceitam a publicidade e a praticam, mas uma cultura amparada na tradição corrupta da nossa esfera de atuação política e governamental faz que a publicidade, nessa área, seja percebida como desperdício. Ou não vemos constantemente os jornais publicarem notícias de verbas de publicidade governamental que, por si só, soam como denúncias?
Infelizmente, no Brasil, o design do setor público e governamental talvez tenha tido seu período áureo nos anos de ditadura militar, quando foi construída a imagem da própria Petrobras e sua majestosa sede ou, para lembrar um exemplo de São Paulo, quando foi instalada a sinalização vertical da avenida Paulista.
E aí é que vejo a validade do protesto geral contra a mudança. Durante muitos anos nos acostumamos a receber qualquer impacto, partindo dos governos, sem nenhuma consulta ou participação. Democracia é isso, é conflito o tempo todo. E a Petrobras foi, no mínimo, inábil ao desconsiderar seu passado, sua inserção no imaginário coletivo brasileiro. Quando uma empresa privada muda uma marca ou uma embalagem, ela se arrisca a cair ou não no gosto de seu público e a pagar por isso. Por que não deveria acontecer a mesma coisa com uma empresa pública?
Acho que seria mais proveitoso que a ADG aproveitasse a questão da Petrobras para mostrar como é importante o design. E que mostrasse isso afirmativamente, enfrentando o debate, mostrando que uma imagem, uma marca, um nome mobilizam um país inteiro, um país que tem 500 mil outras prioridades, segundo o discurso que atacou o desperdício orçamentário da estatal. Em vez de dizer apenas que o Lelé é um profissional de reputação ilibada, poderia mostrar que ele vem-se dedicando a tarefas complexas e de grande responsabilidade, entre elas a programação visual da Nova Dutra, estrada que vem deixando de ser uma rodovia da morte nos últimos anos, graças a uma série de investimentos de manutenção, entre os quais está o projeto de sinalização.
A ADG, a meu ver, bate na tecla da vitimização corporativa, justamente quando poderia falar do poder (enquanto potência, enquanto vir-a-ser) que está nas mãos de seus profissionais. E mais, no país e nas cidades em que vivemos, não seria louvável uma associação (que se formou sem seguir o modelo de organização sindical) privilegiar o cidadão, antes do espírito da guilda?
sobre o autor
Ethel Leon é jornalista e editora da revista Design Belas Artes.