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PIMENTA, Emanuel Dimas de Melo. Arquitetura virtual. Arquitextos, São Paulo, ano 01, n. 009.10, Vitruvius, fev. 2001 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.009/924>.

O olho parado não vê.

Possuímos uma formidável rede de irrigação sangüínea localizada à frente das nossas retinas. Se pudéssemos ver quando os nossos olhos param, estaríamos perdidos numa rede de sombras e cores mesmo quando os nossos olhos estivessem em movimento – pois a rede de irrigação está sempre parada em relação à retina. Trata-se de um artifício do cérebro sem o qual seríamos praticamente cegos. Assim, os nossos olhos quase nunca param. Realizam mínimos e constantes movimentos de rastreamento, sem que os percebamos.

Toda a história da arquitetura desde o mundo Sumério parece estar intimamente relacionada com essa fascinante e sutil capacidade de movimentação ocular – movemos os nossos olhos numa freqüência de cerca de dez vezes por segundo, imperceptivelmente.

Até há pouco tempo a única coisa que fazia com que os nossos olhos parassem era o fogo. Por isso a magia que identificamos nas velas e nas fogueiras. Por isso, desde os mais remotos tempos, usamos velas em rituais e exercícios místicos. Trata-se de uma forma de fazer o olho parar, sem que notemos quando isso acontece.

Mas o fogo era, na sua forma original, demasiadamente efêmero para que pudéssemos operar diretamente com ele. Os Egípcios quase chegaram a fazê-lo, quando criaram os magníficos e delicados baixos-relevos, utilizando a luz do sol, o contraste e a sombra como se se estivesse utilizando diretamente o próprio fogo enquanto idéia, pretensamente dominado em todas as suas dimensões. Pareciam belos desenhos feitos com lâmpadas neon, mas era, apesar de tudo, luz projetada e não luz emitida. A própria lâmpada elétrica não permitiria uma grande flexibilidade, acabando por ser geralmente utilizada como meio de projeção de luz.

O "fogo controlado" da lâmpada elétrica não possui uma freqüência que permita tornar-se substituto do trabalho ocular. Com o fenômeno conhecido por "cintilação" – que acontece quando a freqüência de vibrações emitidas pela lâmpada elétrica cai, aproximando-se dos dez ciclos por segundo – o olho faz um enorme esforço para acompanhar as rápidas variações de luz mas, estando no limiar da sua freqüência média de rastreamento, ele não chega a parar os seus movimentos e acaba por sobrecarregar-se, produzindo uma profunda sensação de cansaço.

Assim, mesmo após o desenvolvimento da lâmpada elétrica por Edison, o fogo continuava sendo o único meio que substituía eficientemente os imperceptíveis movimentos oculares… até que surgiu o tubo catódico, a televisão.

Curiosamente, a origem da Realidade Virtual – quer seja ela Integral ou Sintética – parece lançar-se, como aconteceu o alfabeto fonético, nas estruturas estratégicas do olho e do ouvido, dos esquemas lógicos produzidos pela televisão e pelo telefone. Apenas depois, e na sua própria revolução, revelaria-se também enquanto tato, com toda a complexidade que isso implica.

Marshall McLuhan observava que após a massificação da televisão as crianças passaram a ler distanciando os olhos apenas cerca de quinze centímetros das páginas escritas, como se transportassem para o papel a noção de envolvimento total produzido por aquela nova tecnologia sensorial. Quem faz cinema sabe que o enquadramento de filmes realizados para a televisão são muito mais "fechados", isto é, os objetos filmados estão muito mais "próximos", preenchem mais o campo visual. Os próprios filmes feitos para exibição em salas de cinema acabaram, muitas vezes, por serem contaminados pela televisão, apresentando cenas muito mais longas, sem cortes, e enquadramentos mais "fechados" – evidenciando algo a que poderíamos chamar de uma iconologia cinematográfica. O mesmo parece ter acontecido, de forma mais sutil, com a utilização do tipo de lentes nas câmeras de filmagem. Depois da massificação da televisão, que não suportou, durante um bom tempo, "grande-angulares", estas passaram a ser consideradas kitsch e tiveram o seu uso praticamente restrito a filmes de terror, de intenso suspense ou de baixa qualidade.

Essa contaminação de meios é um fenômeno típico e bem conhecido. Na literatura, apenas para referir um caso clássico, basta-nos lembrar Balzac e as suas Illusions Perdues, que não apenas retrata muito do mundo jornalístico da época como o faz segundo uma abordagem essencialmente jornalística.

Uma das características mais curiosas da televisão – muito provavelmente devido ao fato de monopolizar o processo de visão, transferindo-o do corpo humano e liberando os outros sentidos – é a sua qualidade integral: a produção de uma sensorialidade unificada. Ao contrário do que aconteceu com a cultura literária, que tratou de isolar a visão dos outros sentidos, obrigando o olho a um complexo e absorvente exercício duplo: a leitura em blocos, em certo sentido sincrônica, e outra linear, diacrônica; uma completando a outra. Enquanto que a literatura departamentalizou, a televisão integrou conhecimentos e disciplinas.

No início dos anos 60 Alan Mackworth desenvolveu um equipamento especial para observar o movimento ocular das crianças quando viam televisão. Com ele, pela primeira vez, foi possível perceber como o rastreamento realizado pelos olhos era substituído pela varredura realizada pelos tubos catódicos. Assim, o olho parou – como quando admiramos o fogo – mas continuou a ver. O trabalho de percepção da forma foi transferido do movimento ocular para a tela da televisão, liberando os outros sentidos e, assim, criando uma espécie de hipnose.

Mas, da mesma forma que a televisão não departamentaliza a nossa idéia de tempo e espaço, ela igualmente não permite as abordagens "profundas" da literatura. Tudo passa a acontecer "na superfície". Isso acontece porque dos milhões de pontos impressos sobre a tela, apenas somos capazes de memorizar cerca de cem pixels por segundo. É por isso, também, que a televisão é um meio frio – isto é, um meio que exige o "preenchimento" das lacunas de memória e da percepção com a nossa imaginação. A literatura, através da distribuição das letras sobre o papel realiza algo diferente: monopolizando a visão e anulando os outros sentidos, resgatamos diretamente todo o universo simbólico realizado pela linguagem verbal, num repertório construído ao longo das nossas vidas, tornando-se num meio quente, mais completo. Por isso, a literatura e o mundo literário é repleto de símbolos e de metáfora, o que não acontece com a televisão, que opera muito mais fortemente os eixos de associação por similaridade.

Esta foi a natureza primeira do cinema – que tornou-se conteúdo da primeira televisão. Basta lembrar Melies, a genialidade de Eisenstein ou Hitchcock – que revolucionaria o seu próprio discurso emprestando da televisão as longas cenas sem cortes – e esta seria, ainda, uma das lições essenciais de Fritz Lang, de Kevin Linch ou de Win Wenders.

Por outro lado, curiosamente, os filmes feitos especialmente para a televisão – lembrando que a Natureza opera por contrários – parecem insistir no caminho inverso, trabalhando quase sempre por conteúdos. E como não há profundidade no meio televisão, os conteúdos são, geralmente, superficiais, banais, redundantes, de pouca espessura repertorial.

O melhor exemplo de filmes para televisão que refletem com grande habilidade o meio estão nos comerciais, nas vinhetas e nos video-clips. O grande sucesso mundial das novelas Brasileiras também está aí: a superficialidade a toda prova, como base do próprio discurso televisivo.

Não se trata de atribuir quaisquer julgamentos ou ordens de valor, não se trata de dizer que isto será melhor ou pior do que aquilo. É apenas diferente.

A literatura, com a sua absorvência sensorial exclusiva e uniforme, convenceu-nos que a única informação válida é aquela que é produzida por ela. Por essa via, também, passamos a acreditar que o futuro seria limpo, claro, uniforme e padrão, como retrataram uma grande quantidade de filmes de ficção científica realizados durante o século XX. Até Blade Runner, de Ridley Scott, parecia não haver outra imagem possível para o futuro.

A televisão também teve de esquentar os personagens, pois tratando-se de um meio frio foi necessário "carregar" nos traços de personalidade dos elementos principais, tornando-os quase caricaturais. A palavra caricatura surge exactamente daí, do Italiano caricare, "carregar" – como a charge Inglesa veio do Francês charger. Um processo semelhante àquele observado após Gutenberg, quando a imprensa passou a assumir uma posição mais e mais relevante. Com ela, a pintura – e principalmente os desenhos para revistas e jornais – viram-se obrigados a "esquentar" os personagens, carregando, intensificando os seus traços mais evidentes. Assim, também no cinema, cada vez mais, os personagens foram tornando-se caricaturais.

Para se ter uma idéia de como a comunicação na televisão foi obrigada a aquecer os seus personagens basta lembrar do que aconteceu com a campanha eleitoral de Richard Nixon em 1963, quando ele apareceu tocando piano nas televisões Americanas, ou de Bill Clinton tocando saxofone cerca de trinta anos mais tarde. Bush esquentou a sua imagem mostrando-se enquanto um ignorante cowboy do Texas, enquanto que Al Gore parece ter se esquecido das lições do passado, defendendo uma complexa imagem cheia de nuances. Para ter sucesso, a imagem pouco definida do político escorregadio daria lugar a de uma função muito bem definida, caricatural, até então desconhecida.

No lugar de uma intensa rede de idéias, apenas uma única – clara e precisa.

Mas, os meios frios, quando aquecidos, têm uma performance menos eficiente que os meios quentes. Por isso, a rádio, os jornais e o cinema melhoram a sua eficiência de comunicação quando caricaturam, e a televisão melhora quando trabalha a ação, o movimento.

A pouca profundidade do meio televisivo também salvou os países do chamado Primeiro Mundo de várias guerras, ou de revoltas populares. Com a fotografia, meio muito mais quente, os horrores da guerra revoltavam milhões de eleitores, os conflitos regionais mobilizavam todas as emoções. Com a televisão, há uma espécie de amortecimento diante de imagens frias, incompletas, em certo sentido vagas, que chocam muito menos as populações. Por isso, também, há tanta violência na televisão. Muitos programas televisivos infantis de hoje são mais violentos que a literatura mais violenta do passado.

Mas, a violência, os atos brutais de seres humanos contra seres humanos, não são uma questão de conteúdo, mas sim de identidade. Muitas pessoas, ainda imersas no mundo literário do século XIX, passaram a acreditar que a violência era uma questão de pobreza ou de riqueza, tomadas enquanto conteúdos de uma sociedade. Mas! Há sociedades pobres violentas e sociedades ricas violentas. Povos ricos pacíficos e outros, pobres, também pacíficos.

A questão da violência suporta-se na busca de identidade. Quando alguém nos ofende, isto é, ataca a nossa identidade, tornamo-nos violentos. É isso o que acontece quando um marginal risca um automóvel, ou exerce a violência gratuitamente. Não por outro motivo ele é marginal, está à margem, no limite da identidade. E não há forma mais profunda de estabelecer a identidade de uma vida do que com o desaparecimento de outra.

Com a televisão, mudam-se as condições de identidade. Mas, isso não acontece isoladamente, como nada existe fora de um complexo dinâmico, de uma poderosa rede sinergética de estruturas de pensamento.

E se o mundo oral, acústico, é o mundo tribal por excelência; se a literatura é a raiz daquilo que modernamente compreendemos como democracia, a televisão inaugurou um novo tipo de sociedade, mais superficial e mais unificada – basta ver a diversidade existente nos grandes centros urbanos e com que aparente tranqüilidade uma massa de milhões de pobres não levanta barricadas contra os seus vizinhos ricos, cada vez mais ricos, enquanto eles estão cada vez mais pobres.

A televisão é hipnótica provocando um profundo envolvimento com a audiência, pela superfície. Isso acontece, ainda, pelo fato de que quando estamos absorvidos pela tela da televisão ela não ocupa mais do que a nossa visão central. A visão central é sensível à cor e à textura, enquanto que a visão periférica é sensível ao movimento e à luz. Acabamos por "enganar" as nossas operações cerebrais fazendo com que numa pequena área da retina, no centro, também estejam presentes dados que seriam importantes para a visão periférica. Aqui, é igualmente interessante observar como, embora dominando essencialmente a região retineana central, a eficiência da televisão está na luz e no movimento.

Quando o olho pára, diante de uma tela de televisão, todo o resto desaparece, exatamente porque o olho está parado e o que está a fazer o processo de movimentação para tornar possível a nossa percepção da forma é a estratégia dinâmica da própria imagem.

O "fogo controlado" da televisão inverteu, pela primeira vez, a utilização da luz – antes projetada, para emitida. A luz projetada produz um significativo balanceamento de contraste através da sua absorção pelos materiais. Com a luz projetada não existe uma iluminação estritamente "dura", com recortes precisos. Quem lida com fotografia sabe como isso acontece. Todos os planos iluminados contaminam-se produzindo um quadro geral, mais sutil de luz e cor. Com a luz emitida, o mesmo não acontece. Se com a luz projetada há absorção de luz pelos materiais circundantes, com a luz emitida isso apenas acontecerá diretamente na retina, entre as células receptoras vizinhas de um determinado ponto sensibilizado. Esse fenômeno faz com que a sensação luminosa seja de natureza diferente. Passamos a trabalhar as células fotoreceptoras com uma estratégia que aproximou a visão ao tato.

É curioso, para dizer o mínimo, lembrar que essa busca pelo domínio da imagem – através da criação de um "fogo controlado" que acabaria por revelar-se na televisão – terá sido muito semelhante ao impulso que lançou a invenção do telefone.

Partindo de um nome criado para um instrumento musical, o telefone surgiu originalmente como resposta à tentativa de criar um aparelho para surdos que pudesse traduzir luz em som… Com uma tal invenção, os surdos poderiam "ouvir com os olhos" e os cegos "ver com os ouvidos"!

Em 1867, Melville Bell – pai de Alexander Graham Bell – publicava um alfabeto universal, para o qual tinha dedicado toda a sua vida. O livro com esse alfabeto tinha o título de A Fala Visível. A busca de se criar um equipamento dessa natureza era comum naquela época. Cerca de trinta e cinco anos antes, Louis Braille tinha elaborado o seu famoso alfabeto para cegos.

O surgimento do telefone representaria um formidável impacto em todo mundo Ocidental.

Depois de Gutenberg, todos os meios de comunicação foram unidirecionais. "Depois de Gutenberg" porque até mesmo o teatro, que antes tinha uma natureza muito mais interativa, passou a ser caracterizado por uma forte "mão única" através da popularização do "palco italiano". A música dos mosteiros medievais era um trabalho coletivo, uma espécie de oração comunitária como tão bem nos mostram as histórias de Cluny e de Claraval. Os menestréis e as danças camponesas – que funcionavam anonimamente integrando populações – foram tornando-se folclore, expressão criada à partir da soma das palavras Inglesas folk e lore, povo e sabedoria ou conhecimento. Isto é, aquele conhecimento passou a localizar-se "fora" das cidades, pois o povo era então entendido como camponês. O mundo do campo foi sendo substituído pelo mundo urbano, letrado, literário e mecânico.

Os jornais, as revistas, mesmo o rádio, o cinema e a televisão, são meios unidirecionais. São todos produtos urbanos e a urbis é um fenômeno diretamente relacionado à visão.

O telefone foi o primeiro meio de comunicação urbano que surgiu originalmente com duas ou mais mãos. Por isso, o telefone não aceita formatação. A televisão é toda articulada com formatos: a duração de tempo especializado para os anúncios comerciais, como são padrão a duração, o tipo e a distribuição de notícias, por exemplo. O mesmo vale para as revistas, para os livros, para os jornais, para a rádio. Todos esses meios possuem formatos. Um livro é articulado através da capa, introdução, prefácio, índice, capítulos etc: o seu formato padrão.

O telefone não aceita formatação e não é de se estranhar que nunca tenha existido uma obra de arte para ele – o que não significa dizer que não tenha existido obras de arte que, esporadicamente, tenham usado o telefone.

Com o fim da formatação há igualmente o fim do estereótipo – signo primeiro da literatura, que representou a dessacralização do mundo Ocidental.

A única formatação possível para o telefone é o acesso. Depois, cada um fala e ouve como quer. Mas, o telefone possui uma espécie de "nivelação" a uma escala muito mais sensível, que de resto não é alheia aos outros meios. Trata-se do ruído.

Colin Cherry revelaria, nos anos 50, que ruído é a taxa de interferência, ou de redundância, de um determinado meio de comunicação. Essa descoberta aconteceu, na verdade, durante a Segunda Guerra Mundial, quando a escuta secreta radiofônica representava um precioso recurso de guerra. Logo, descobriu-se que dependendo do nível de ruído – do tamanho da banda de freqüência – as pessoas deveriam repetir mais ou menos fonemas para poderem ser compreendidas pelo outro lado. Colin Cherry tratou de transformar essa experiência em teoria, acrescentando um vasto leque de fascinantes experiências e dados estatísticos realizados posteriormente.

Até hoje achamos curioso a grande dificuldade que um camponês ou um indivíduo tribal encontra ao falar pela primeira vez pelo telefone.

Todo o meio de comunicação implica um aprendizado. Assim, o simples ato de assistir cinema também exige um treinamento que nos ensina a focalizar a imagem a cerca de um metro de distância além da tela de projeção. Se não o fizermos, não conseguiremos apreender o filme como uma espécie de realidade, como um todo.

Enquanto que a televisão é integradora e superficial – e, portanto, evidente – o telefone é potencialmente novidade, todo o tempo. Para o cego, tudo é surpresa. Mas, mostrando uma vez mais como a Natureza opera por contrários, a sensação produzida pelo telefone é a da continuidade, enquanto que a gerada pela televisão é a da novidade.

A fusão de várias invenções, e entre elas principalmente o telefone e a televisão, deram origem ao mundo virtual. E por isso mesmo, sem que muitos tenham se dado conta, é que chamou-se virtual – surgido do virtus Latino, que significa "potencialidade".

Dessa complexa fusão tecnológica emergiram dois tipos de Realidade Virtual: uma Sintética e outra Integral. A primeira é representada pela simulação de mundos concretos dentro de computadores.

No início dos anos 50 Fred Waller, na busca de criar um meio de alta imersão, inventaria o Cinerama. Ele estava atento ao fato de os olhos humanos cobrirem uma área de 155 graus na vertical e 185 graus na horizontal. Rapidamente, Waller foi contratado pela Força Aérea Americana onde passou a desenvolver simuladores militares de vôo.

A Realidade Virtual Sintética conheceria uma das suas mais famosas referências num equipamento desenvolvido nos anos 60 por investigadores do MIT, nos Estados Unidos. Os investigadores do MIT estavam profundamente inspirados nas ideias de Waller, mas inverteram a escala – agora não mais eram grandes telas de cinema buscando o profundo envolvimento sensorial produzido pela televisão, mas a própria televisão, reduzida e implantada no ser humano, como um tipo de prótese. Chamava-se Head-Mounted Displays, ou simplesmente HMD – duas pequenas telas de televisão implantadas quase diretamente sobre os olhos com o auxílio de uma espécie de óculos. Com o HMD passou a existir uma forte interação de duas vias de comunicação com o próprio corpo humano, replicando, num certo sentido, a natureza primeira do telefone.

Circuito fechado, o HMD permitiu ao utilizador ver em três dimensões, e em tempo real, um mundo que até então não existira fora dos computadores. O utilizador poderia olhar para cima, para os lados ou para baixo dentro do espaço simulado. Algo surpreendente numa época em que os vôos ao espaço sideral ainda eram, em muitos sentidos, ficção científica.

Os pesados HMD fizeram desencadear uma série de novos equipamentos militares. Nesse mesmo período, uma outra linha das simulações desenvolveu-se no sentido de recriar em ambientes virtuais aeronaves militares e poder fazer, com baixos custos, todos os complexos testes aerodinâmicos, sem colocar em risco vidas humanas.

Logo, as simulações visuais foram gradualmente estendendo-se por todo o corpo, através do uso de luvas e de outros equipamentos.

Mas, como os percursos históricos parecem sempre preparar surpresas, até mesmo com inesperadas repetições de eventos e relações, tanto a Realidade Virtual Sintética como a Integral conheceram um "nó" comum de expansão.

Essa fascinante história começa no final dos anos 50, quando o presidente Americano Eisenhower criava a Advanced Research Projects Agency, mais conhecida pelas siglas ARPA, como uma reação dos Estados Unidos ao desenvolvimento tecnológico Soviético.

Nessa época, um cientista psicoacústico chamado J.C.R. Liklider usava complexos modelos matemáticos para compreender como funcionava a audição humana. Num determinado momento, os seus modelos matemáticos assumiram tal complexidade que tornou-se especialmente difícil lidar com eles. Liklider observou, então, que quando tratamos de equações aerodinâmicas ou de padrões de fluídos, como a viscosidade, o clássico processamento de informação numérica não tem mais importância, mas sim a modelagem.

Modelagem é um termo novo, utilizado originalmente por projetistas de aeronaves, a partir das ideias de Licklider. A modelagem é a base para todo o processo de simulação em Realidade Virtual Sintética.

Novamente, uma tecnologia visual parece emergir de preocupações acústicas. O olho surgindo, uma vez mais, do ouvido – curiosamente, como a nossa percepção de volume visual, que emergiu da educação sensorial promovida pelo tato.

Mas, essa história ainda não terminou… em 1960, Licklider lançaria o livro Man-Computer Symbiosis, onde defendia, para a estupefação de muitos, que «dentro de poucos anos, os cérebros humanos e as máquinas de computação vão ser unidas com grande proximidade, e o resultado dessa colaboração vai pensar não como nenhum ser humano jamais pensou e vai processar informação de uma forma em nada parecida com as máquinas de tratamento de informação que nós conhecemos hoje em dia».

Em 1962, Licklider era integrado nos quadros da ARPA. Ele desejava criar uma arma invisível e indestrutível. Assim, tratou de coordenar um programa de interatividade na estruturação de redes de computadores, que ficaria conhecida por ARPANET.

Em 1985, a fusão da ARPANET com a NSFNET significaria o início da Internet. Em 1968, Licklider defenderia: «Queremos enfatizar algo além da transferência ‘one-way’: o significado mais e mais importante do construtivo pela união, do aspecto do mútuo reforço através da comunicação – algo que transcenda a afirmação ‘agora nós dois conhecemos um fato que apenas um de nós sabia antes’. Quando as mentes interagem, novas idéias emergem».

Isto é, tudo junto na fusão da televisão com o telefone.

A Realidade Virtual Integral encontraria a sua principal referência na Internet. E as redes de redes de computadores evidenciariam com mais força a emergência de uma nova sociedade: o Teleantropos cunhado por René Berger – o ser humano feito também à distância, dando ao conceito de proxemia criado por Edward T. Hall nos anos 60 uma nova dimensão e projetando uma teleproxemia.

Informação e matéria circulando velozmente por todo o planeta. Tudo tornando-se diversidade total. Tudo sendo contaminação total.

Ao contrário do que algumas mentes literárias chegaram a temer, não aconteceu uma homogeneização planetária. Antes, antigas línguas – algumas praticamente mortas – renasceram. Antigas culturas conheceram uma notável valorização.

O temor por uma homogeneização global não é privilégio do século XX.

No século XIX, o início das linhas ferroviárias regionais produziu protestos mais ou menos generalizados: as pessoas temiam que, com a ferrovia, o conceito de regiões iria simplesmente desaparecer.

O medo da homogeneização era, na verdade, a projeção da natureza do meio literário como padrão para outro meio. As pessoas temiam a homogeneização porque projetavam a estrutura da imprensa e da escrita como base para as suas expectativas, da mesma forma que o futuro, desconhecido, seria uniforme e padrão.

O virtus contemporâneo encontraria algumas personalidades que, por diversas formas, anteciparam o fenômeno. Os projetos imateriais de Joseph Beuys são plenos de potencialidade e de diversidade – esse é o seu signo primeiro. O silêncio de John Cage não o é no sentido físico, mas repousa na desarticulação de antigos processos de pensamento, na liberação de rotinas, na desconstrução do mundo estruturado em estereótipos, em símbolos, em ordens de valor. Merce Cunningham resgata no corpo o fundamento essencial da dança, que torna-se plena potencialidade na permanente elaboração de esculturas vivas, feitas de tempo e espaço. Roman Verostko opera o visual enquanto fragmentos de pensamento. A poesia-idéia de Alison Knowles. A arte-processo de William Anastasi, de Dove Bradshaw ou de Jan Henle entre outros. A imagem impossível possível de Michelangelo Pistolleto, as linhas-planos de Carlo Ciarli. A genialidade poética de e.e.cummings. Todos eles tomados, não poucas vezes, como pensadores iconoclastas.

A quebra da visão como fundamento único de uma lógica dominante. Algo que, num certo sentido e magicamente, nos leva de volta a Emanuel Kant quando alertava que a imaginação transcendental era a raiz da sensibilidade, o que tornava possível o juízo, a razão. Pensamento que levaria Charles Sanders Peirce considerar que todas as suas idéias já podiam ser encontradas em Kant – a metáfora dando lugar à paramorfose, a contiguidade substituída pelas relações de similaridade.

No início dos anos 80, diante de uma profunda transformação no ato de fazer arquitetura – não mais enquanto montagem de símbolos ou a procura de uma fórmula padrão, uniforme e uniformizadora do espaço – eu imaginei a fusão das Realidades Virtuais Sintética e Integral como a essência de uma arquitectura virtual.

Mas essa não é uma arquitetura para computadores. Ao contrário daquilo que muitos, envolvidos numa profunda, romântica e letárgica nostalgia, acreditam ser o reflexo primeiro de um universo preso aos rigores do número, é, na verdade, a expressão da liberdade do número-qualidade.

A especialização unidisciplinar ficou restrita à folha de papel do passado, ao rigor da uniforme rotina da imprensa, ao dessacralizado mundo mecânico e literário que caracterizou aquilo que chegou-se a classificar como Ocidente: partícula discreta e estanque de civilização, isolada do resto do mundo. Um mundo que passaria a ser classificado como primitivo, tal como aconteceu com universo bárbaro para os Gregos.

Agora: o virtus planetário, revelado com o fim das barreiras estanques, com a desintegração das fronteiras precisas, com a emergência de uma pós-história na transdisciplinaridade, com a interatividade transcultural manifestando-se enquanto gigante sistema cósmico. Não haveria melhor revelação para o apocalipse! Uma híper telecomunicação interativa em tempo real.

Pelas mesmas vias, a ética parece mostrar-se, pela primeira vez com assustadora clareza, através da estética: a desagregação de uma configuração de ethos estáveis dentro de fronteiras razoavelmente estanques e bem definidas, dando lugar a um mundo pulverizado em nuvens, campos gravitacionais, dobraduras, pregnâncias e catástrofes.

Quando tantos, munidos de uma lógica predicativa, temiam o controle padrão de George Orwell – a desumanização provocada pela máquina – a mutação cósmica virtual revelou um mundo pleno de criatividade. A memória passou a contar com mais e mais extensões, a criatividade conheceu próteses sensoriais. O raciocínio, jogo, universo lúdico que muda gradualmente com o conceito de educação, descaracterizando o espaço-tempo fechado das antigas universidades, revelando tudo enquanto permanente e instável contaminação.

Assim, passamos a desconhecer o analfabeto primário, rapidamente substituído por grandes contingentes de analfabetos funcionais – muitas vezes localizados na chamada elite social, subvertendo a antiga ordem hierárquica. Hoje, um analfabeto funcional pode ser uma importante figura política, um Chefe de Estado, ou uma referência social. A cultura escrita deixou de representar o ponto de fuga de toda uma sociedade e passou a estar presente um pouco por todo o lado, livre da antiga ordem hierárquica.

A formação do ser humano – a educação – deixou de ter sentido enquanto pura transmissão e acumulação de dados e redesenhou-se como design sobre a informação – uma nova Paidéia.

Não há mais estereótipos. A educação deixou de conhecer rígidas formatações e as universidades passaram, muito lentamente, a abandonar a figura do zoológico como modelo: salas, disciplinas, percursos e horários seguindo uma rígida estrutura de departamentos estanques.

E da mesma forma que os antigos Gregos descobriram o átomo como referência especular do alfabeto fonético, a teoria das supercordas revelam uma outra lógica, uma nova paleta sensorial. As leis da Natureza como leis da nossa maneira de conhecer as coisas. Novos tipos de crime, novos tipos de conhecimento, novas culturas – viajando planetariamente.

Se a antiga sociedade mecânica e literária identificava no tempo assimétrico, na ilusão da contiguidade e em uma Natureza linear e diacrônica os seus três princípios fundamentais de articulação lógica; agora há o fim da ilusão da contiguidade enquanto elemento dominante, o tempo passa a ser simultaneamente simétrico e assimétrico – relembrando o princípio do terceiro incluído de Stèphanne Lupasco – e emerge uma Natureza aperiódica, não linear.

Da mesma forma, se para os três primeiros princípios lógicos – o tempo assimétrico, a ilusão da contiguidade e uma Natureza linear – a causalidade local, os estereótipos e os sistemas de mão única caracterizavam toda a representação; agora, a noção de uma causalidade não local, a descoberta de uma nova condição do sagrado com a desarticulação dos estereótipos e um universo de múltiplas mãos passam a ser as condições essenciais da nossa maneira de perceber as coisas. Esse é o universo da arquitetura virtual. Arquitetura virtual não significa projetar para não construir. Não significa projetar exclusivamente para computadores.

Projetar arquitetura virtual é uma nova abordagem do tempo e do espaço – uma abordagem que não mais permite a exclusão cultural, ou qualquer tipo de dominação. Está mais próxima de um mundo de nanodecisões articulado por coordenação que de um sistema de forte hierarquia. Acontece em todo o lugar, e é mudança, todo o tempo.

Algo que faz lembrar Jacob Bronowsky quando afirmava que "em toda a época há um ponto de mutação, um novo modo de ver e de afirmar a coerência do mundo."

notas

[© ASA Art and Technology, UK, 2000]

sobre o autor

Emanuel Dimas de Melo Pimenta é arquiteto, artista plástico e músico, atualmente radicado em Portugal.

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