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my city ISSN 1982-9922

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Com a intenção inútil e equivocada de apagar o passado com um ato legislativo, no dia 22 de junho a Câmara Municipal de São Paulo aprovou a mudança do nome oficial do popular “Minhocão” de Elevado Costa e Silva para Elevado Presidente João Goulart.

how to quote

GUERRA, Abilio. Do nome das coisas: qual o motivo para mudar o nome do Elevado Costa e Silva? Crônicas de andarilho 9. Minha Cidade, São Paulo, ano 17, n. 193.06, Vitruvius, ago. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.193/6167>.


Elevado Costa e Silva, Elevado João Goulart, Minhocão ou Parque Minhocão?
Foto Abilio Guerra


Se os nomes mantém com as coisas que designam um elo oculto ou se foram associados por uma arbitrariedade é o cerne do debate medieval entre realistas e nominalistas. Os primeiros, dentro de uma evidente tradição platônica, sustentam que os nomes são universais e preexistem às coisas no plano diáfano – ou transcendente – de Deus. Os segundos, que abrem espaço para a filosofia e ciência modernas, entendem que só existem coisas individuais e a arbitrariedade de agrupá-las sob uma mesma designação é uma operação do intelecto humano, uma abstração. É sobre tal confronto de teorias acerca da natureza da linguagem que se constrói a obra maior de Umberto Eco, “O nome da rosa”.

Se os filósofos e escritores se ocupam de questões tão insólitas, nós, pobres mortais, temos também nossas idiossincrasias sobre os nomes das coisas, inclusive nossos próprios. Eu mesmo, durante a infância e a adolescência enfrentava de forma dolorosa a necessidade de responder à simples pergunta “qual é o seu nome?”. Ele não ficou bonito com o tempo, mas aos poucos me acostumei com sua sonoridade e depois apreciei o seu caráter. O peso de levar na alcunha a estranheza de um nome antigo, que ninguém mais usa, passou a ter o benefício da quase exclusividade, uma ambivalência que me coloca frente ao fato simples que não apenas os nomes são arbitrários, mas igualmente as sensações, os sentimentos e os valores que evocam.

Quando conheci o Chile há alguns anos, ao visitar o Museu Marítimo Nacional em Valparaíso me chamou a atenção uma pintura que registrava o leito de morte de Bernardo O'Higgins em Lima, Peru. Me pareceu curioso que o personagem histórico que emprestava seu nome à principal “calle” da capital Santiago – Avenida Libertador General Bernardo O'Higgins – tenha morrido no exílio. Logo descobri que de seguidor de José de San Martín na luta pela libertação chilena, O'Higgins foi catapultado ao poder mais alto, do qual abdicou sem luta durante a revolta promovida pelo general Ramón Freire. A condição híbrida de herói e traidor nacional não foi o suficiente para que seu nome fosse trocado nas placas que se sucedem ao longo da avenida (algo similar ocorre com Getúlio Vargas, que continua a emprestar seu nome para avenidas em diversas cidades brasileiras, além da fundação tão famosa, mesmo que seja do conhecimento público o autoritarismo e a violência antidemocrática que caracterizaram seu primeiro governo).

Situação antípoda vivenciei quando visitei Paris pela primeira vez. No alto da minha ignorância fui conhecer a Place de la Bastille com a esperança de conhecer as ruínas da antiga prisão invadida em 1789. No lugar encontrei apenas a Ópera da Bastilha, projeto do arquiteto uruguaio Carlos Ott, um dos edifícios mais medíocres que já pude visitar. No calor da hora, durante a “Tomada da Bastilha”, a massa furiosa e indignada, inflada pelos gritos do jornalista Camille Desmoulins, devastou a construção, sinalizando de forma espetacular o sepultamento do antigo regime. Resta hoje o vestígio do nome, mas a antiga prisão – da qual teria adorado conhecer as ruínas – foi varrida da paisagem urbana parisiense.

A mesma atitude radical não foi seguida em outras situações dramáticas e alguns templos da “História universal da infâmia” sobreviveram. É o caso de Auschwitz-Birkenau, complexo que abrigou o famigerado e mais conhecido campo de extermínio nazista, conservado hoje na forma de museu da ignomínia, inclusive com sua frase boçal encimando o principal portão de entrada: “Arbeit macht Frei” (“o trabalho faz a liberdade”, ou, em tradução livre mais elegante, mas não menos obscena, “o trabalho liberta”). Lembradas as profundas diferenças, algo parecido ocorreu com o edifício originalmente construído para escritórios da Companhia Estrada de Ferro Sorocabana e que abrigou durante os anos de chumbo o amedrontador Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo, o DEOPS/SP. O espaço cultural Estação Pinacoteca hoje instalado no edifício reservou algumas de suas salas para o Memorial da Resistência de São Paulo, que permite aos jovens atuais o contato surpreendente com a repressão e tortura movida pelo regime militar, inclusive com a desesperança presente nas frases inscritas nas paredes de uma das celas, mantida em suas condições de época.

Contudo, Polônia e Brasil demonstram sintomática diferença ao conferir novos batismos aos equipamentos da maldade: o “Memorial and Museum Auschwitz-Birkenau” preserva o nome original, mas deixa evidente a transformação simbólica ao declarar a nova instituição; o “Memorial da Resistência de São Paulo” opera em outro registro, preferindo uma nomenclatura que adultera o fato histórico abrigado na antiga instituição. Algo similar ocorreu com o fracassado Museu do Trabalhador pretendido pela gestão da prefeita Luíza Erundina, que deveria ocupar o requintado casarão da família Matarazzo, situado na Avenida Paulista, uma espécie de vingança retroativa de classe social, como se fosse possível anular a riqueza auferida com a extorsão do trabalho pelo capital com atos desse tipo (para que não haja mal entendidos, deixo aqui explícita minha eterna admiração por quem entendo ser uma das mais íntegras políticas desse país, mas não consigo fechar os olhos ante a ideia pueril, que acabou não se concretizando, pois a família ítalo-brasileira – em ato criminoso e jamais punido – destruiu o casarão tombado em um final de semana, com dinamite e bolas de aço arremessadas por guindastes, operação que pude assistir ao vivo).

Na curiosa relação entre “as palavras e as coisas”, que a presente crônica aborda de forma caótica, pode ser incluído o recentíssimo fato, datado da última quarta feira, dia 22 de junho, quando a Câmara Municipal de São Paulo, por iniciativa do vereador Eliseu Gabriel, aprovou a mudança do nome oficial do popular “Minhocão”, agora não mais Elevado Costa e Silva, mas sim Elevado Presidente João Goulart. Ainda dependendo da sanção do prefeito Fernando Haddad, a medida é inócua como correção histórica, pois não apagará os incontáveis danos causados pela ditadura militar. Como inversão simbólica entre vencedor e derrotado – como se a justiça histórica estivesse finalmente prevalecido –, não consigo imaginar momento mais inapropriado, pois vivemos um golpe branco no país, com suspensão de direitos básicos das democracias e uma dilapidação estonteante de direitos sociais duramente conquistados.

Nuvem de fumaça em um país que mergulha nas trevas – suspensão da lei de impacto ambiental, regressão nas políticas raciais e de gênero, risco iminente de suspensão ou diminuição de políticas de promoção social, investigações apenas dos inimigos, polícia violenta contra os que pregam a não violência, entreguismo de nossos recursos naturais, proposta de escola sem ideologia, afronta ao patrimônio histórico e outras medidas promovidas a toque de caixa –, a iniciativa tem ainda o “mérito” de desagradar quase todo mundo. Para alguns, dar o nome de um presidente fraco, cuja omissão facilitou o golpe não é uma homenagem a ser comemorada; para outros, admiradores de João Goulart, dar seu nome para uma construção infraestrutural que destruiu a civilidade do centro novo de São Paulo não deixa de ser uma afronta; aos que querem demolir o Minhocão, manter o termo “elevado” em seu título parece uma agressão proposital; e aos que querem convertê-lo em Parque Minhocão, aposta no futuro e na cidade mais amável com seus habitantes, a associação com um personagem do passado, a quem devemos admirar compulsoriamente, não deixa de ser um mau presságio...

Em minha opinião, não há nome melhor do que Elevado Costa e Silva para uma obra pública concebida e realizada por Paulo Maluf, um dos mais emblemáticos representantes civis do período autoritário, implantada sem debate técnico ou consulta popular, que causou a degradação da região por onde atravessou sem avisar, que até hoje é símbolo da tecnocracia do período militar, incapaz de enxergar pessoas por detrás de números e estatísticas. E em ambos os cenários colocados hoje em pauta para a transformação do elevado a mudança de nome é uma bobagem: se for demolido ou desmontado, não há razão para dar nome ao que não existirá em breve; se for transformado em espaço público peatonal, o novo nome já foi cunhado: Parque Minhocão. Ou seja, temos aqui apenas gasto indevido de recursos e perda de tempo.

Como prefiro enfrentar as verdades, as impossibilidades e as limitações históricas, a suspensão da medida por parte do prefeito me parece a decisão mais acertada, mesmo considerando sua improbabilidade. De qualquer modo, o que eu gostaria mesmo é não gastar tempo com algo tão desimportante como mudar o nome de uma coisa que já tem nome oficial e alcunha popular, ambos imantados por significados e valores diretamente relacionados à história real, não àquela que julgamos ser a melhor ou mais acertada.

[25 de junho de 2016]

nota

NA – Nona publicação da série “Crônicas de andarilho”, com textos originalmente publicados no Facebook. Artigos da série:

GUERRA, Abilio. Cinco cenas paulistanas. Crônicas de andarilho 1. Minha Cidade, São Paulo, ano 15, n. 179.01, Vitruvius, jun. 2015 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/15.179/5561>.

GUERRA, Abilio. Dez cenas paulistanas. Crônicas de andarilho 2. Minha Cidade, São Paulo, ano 15, n. 180.02, Vitruvius, jul. 2015 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/15.180/5595>.

GUERRA, Abilio. Sete cenas paulistanas: a velocidade nas marginais e outros assuntos. Crônicas de andarilho 3. Minha Cidade, São Paulo, ano 16, n. 181.03, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/16.181/5637>.

GUERRA, Abilio. Sete cenas paulistanas: caipirice, regionalismo, erudição, cidadania, obra pública e mobiliário urbano. Crônicas de andarilho 4. Minha Cidade, São Paulo, ano 16, n. 183.01, Vitruvius, out. 2015 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/16.183/5735>.

GUERRA, Abilio. Dez cenas paulistanas: bicicletas, escadarias, caminhadas, rios ocultos, escolas, resiliência, diálogo. Crônicas de andarilho 5. Minha Cidade, São Paulo, ano 16, n. 185.02, Vitruvius, dez. 2015 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/16.185/5830>.

GUERRA, Abilio. Sete cenas paulistanas: lixo, lixeiros, orelhão, quadro com vidro trincado, estátuas urbanas, praia de asfalto e Mario de Andrade. Crônicas de andarilho 6. Minha Cidade, São Paulo, ano 16, n. 187.03, Vitruvius, fev. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/16.187/5932>.

GUERRA, Abilio. Memórias do futuro: sobre a recusa de se ver o óbvio. Crônicas de andarilho 7. Drops, São Paulo, ano 17, n. 103.02, Vitruvius, abr. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.103/5982>.

GUERRA, Abilio. Oito cenas paulistanas: política, política cultural e urbanidade. Crônicas de andarilho 8. Minha Cidade, São Paulo, ano 16, n. 191.03, Vitruvius, jun. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/16.191/6050>.

GUERRA, Abilio. Do nome das coisas: qual o motivo para mudar o nome do Elevado Costa e Silva? Crônicas de andarilho 9. Minha Cidade, São Paulo, ano 17, n. 193.06, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.193/6167>.

GUERRA, Abilio. Do vizinho: como Jacques Tati e Michel Foucault podem explicar a boçalidade do novo-riquismo. Crônicas de andarilho 10. Drops, São Paulo, ano 17, n. 112.06, Vitruvius, jan. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.112/6383>.

GUERRA, Abilio. Do higienismo: sobre as práticas urbanísticas do século 19 em pleno século 21. Crônicas de andarilho 11. Minha Cidade, São Paulo, ano 17, n. 198.04, Vitruvius, jan. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.198/6385>.

GUERRA, Abilio. Do gênero na fala popular. Crônicas de andarilho 12. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 122.05, Vitruvius, maio 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.122/6540>.

GUERRA, Abilio. Do táxi. Crônicas de andarilho 13. Minha Cidade, São Paulo, ano 17, n. 202.05, Vitruvius, maio 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.202/6541>.

GUERRA, Abilio. Três crônicas sobre a arte e a vida. Crônicas de andarilho 14. Minha Cidade, São Paulo, ano 18, n. 206.05, Vitruvius, set. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/18.206/6712>.

GUERRA, Abilio. Do sadomasoquismo. Crônicas de andarilho 15. Drops, São Paulo, ano 18, n. 124.01, Vitruvius, jan. 2018 < www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/18.124/6820>.

GUERRA, Abilio. Do cordão de isolamento: ano novo, realidade arcaica. Crônicas de andarilho 16. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 129.06, Vitruvius, dez. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.129/6822>.

GUERRA, Abilio. Do choro – entre lágrimas e música. Crônicas de andarilho 17. Minha Cidade, São Paulo, ano 18, n. 212.04, Vitruvius, mar. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/18.212/6923>.

GUERRA, Abilio. Da cavalaria de hoje e de antigamente. Crônicas de andarilho 18. Drops, São Paulo, ano 18, n. 126.06, Vitruvius, mar. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/18.126/6926>.

GUERRA, Abilio. Da inveja infame: a trajetória histórica de Lula e a viagem pela metrópole de um casal qualquer. Crônicas de andarilho 19. Arquiteturismo, São Paulo, ano 12, n. 133.03, Vitruvius, abr. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/12.133/6953>.

GUERRA, Abilio. Do andaime. Crônicas de andarilho 20. Arquiteturismo, São Paulo, ano 12, n. 134.04, Vitruvius, maio 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/12.134/6984>.

GUERRA, Abilio. Da dobradura. Crônicas de andarilho 21. Drops, São Paulo, ano 18, n. 129.05, Vitruvius, jun. 2018 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/18.129/7033>.

GUERRA, Abilio. Das estradas da vida. Crônicas de andarilho 22. Arquiteturismo, São Paulo, ano 12, n. 136.05, Vitruvius, jul. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/12.136/7049>.

GUERRA, Abilio. Da ilha longínqua. Crônicas de andarilho 23. Arquiteturismo, São Paulo, ano 12, n. 137.05, Vitruvius, ago. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/12.137/7079>.

GUERRA, Abilio. Dos sem teto. Crônicas de andarilho 24. Drops, São Paulo, ano 19, n. 134.02, Vitruvius, nov. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/19.134/7164>.

GUERRA, Abilio. Da casa prototípica. Crônicas de andarilho 25. Arquiteturismo, São Paulo, ano 12, n. 140.05, Vitruvius, nov. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/12.140/7165>.

GUERRA, Abilio. Do Bilhete Único. Crônicas de andarilho 26. Minha Cidade, São Paulo, ano 19, n. 224.01, Vitruvius, mar. 2019 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/19.224/7285>.

sobre o autor

Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.

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