É preciso admitir, à luz da incontestável razão, que sou totalmente desqualificado para discorrer sobre arquitetura. Com um discreto atenuante (e mil perdões): ser companheiro de quem cultua esta arte e, me parece, com louváveis resultados.
Mas diante da tarefa de tecer o emaranhado de palavras para compor algo sobre o tema paulistaníssimo que me fascina, fiquei desnorteado, confesso. Como o lenhador: de tantas árvores, não vislumbra a floresta.
Ou o cidadão perdido entre muitas arquiteturas, de ponta à ponta na escala da beleza, não percebe sua grandiosidade na monumental cidade.
Porém procurei verificar o que uniria, nesta região piratininga já um pouco desnaturada, o belo arquitetônico ao passeio lúdico. Arquiteturismo, portanto.
Desfruto, de alguns anos para cá, do prazer em navegar na Guarapiranga, a represa dos paulistanos. É ainda parcialmente limpa; parcialmente cuidada em suas margens.
É diversão gratuita, pois não há maiores dificuldades de acesso. É democrática, pois todos podem nela movimentar-se, seja a nado, de bote ou barcão. Enfim, é bela.
No quesito construções ao redor, tal qual a infinidade de árvores na mata, há um apanhado alegre de tendências. De um lado condomínios com construções, digamos, curiosas: chalés alpinos. Na outra ponta clubes fundados por antigos imigrantes, em estilo próprio dos lagos europeus.
Mais adiante vemos associações austeras com pressão moderna, brasílica, onde se aventura quem projetou copiando feitos niemeyerescos.
Sobre certo promontório majestático um templo nipônico, a modernizar em nossas plagas a anciã Stonehenge. Similares, talvez até na função. Algumas fazendolas.
E moradas simples, as favelas de blocos, lambendo as beiradas, mostrando que o lago-represa é para todos. Espaço conquistado.
Porém, repito, o incauto navegador deixou, em certo ponto, de ver, diante de tantas obras, a maior: a arquitetura da própria, a construção determinante de um imenso e belo lago. A tal invisível floresta das árvores.
Zweckbau diriam rústicos críticos teutônicos, sem qualquer Architektur. Referência à construção útil, sem a graça da arte. Será? Arquitetura de represas? Existe?
Existe e pode ser visitada. Independentemente da origem: a solução dos problemas de abastecimento de água e energia em 1907, com a regularização de enchentes na antiga São Paulo; é de singular beleza, que encanta os mais reticentes.
Hoje abastece 20% da população paulistana com água, volume que chega a 9.500 litros por segundo, já limpa para consumo na estação de tratamento do Alto da Boa Vista.
Tecnicidades. Ora! A beleza completa da arquitetura do lago artificial transcende sua questão prática. É obra arquitetônica, maior, assim entendo: um primor.
Vamos ao passeio.
A grandiosidade do espaço aberto contrasta com a normalmente limitada visão do horizonte, nesta nossa Paulicéia Desvairada, com licença do termo a Mário de Andrade, que chamava de “esta boca de mil dentes... O céu é toda uma batalha convencional de confetti branco”.
A ondulação necessária, a construção útil. Nem bela, nem feia. Apenas prático este hangar de barcos e veleiros, à beira do lagão. Haveria arte-encantamento neste tipo de obra? Discuta-se!
Chalés alpinos em meio a coqueiros e palmeiras, a saudade do imigrante traz imagens de sua terra e construções para os trópicos. Paulistanices; respeite-se, porém. A diversidade dos estilos em condomínios ao redor da represa impressiona.
Suave navegar pela área lacustre, represamento do extinto Rio Guarapiranga. Rio das Garças Vermelhas (ainda estão por lá), ao fundo o cenário da Paulicéia. Contraste apaziguador com o burburinho de impacto na restante megalópole.
Refúgio de um antigo mestre de cavalaria; perdeu-se a história de como ele aqui chegou; mas diligente, montado, administrava o hoje abandonado sítio.
Conheci-o menino, dava um tantinho de medo com suas botas brilhantes e garbosa égua quatralva. A poucos quilômetros do centro de Sumpa, vejam construção prussiana, austera e envolta em belas árvores.
Quem diria? Uma fazendola de fato: com bois, vacas e plantações; a pagar impostos urbanos... Distância: exatos 15 km do Marco Zero, a Praça da Sé.
Há quem opte pela morada úmida, flutuante. Encalhada, ancorada talvez. Em fundo de baía paulistana, na formosa aglomeração aquática.
“Todos os estiolados são muito brancos.” M. A.
Pelo visto até os barcos, estiolam-se: enfraquecem, brancos.
Stonehenge brazuca, o mistério da gigante rosa de pedras a cheirar astronomias? Astrologias? Pensamentos ou apenas calma de meditativos orientais, e propagar tranqüilidade. Chama-se Templo Messiânico, do Solo Sagrado de Guarapiranga. projeto de autoria do arquiteto Sylvio Sawaya, atual diretor da FAU-USP. A partir dos conceitos de paraíso terrestre, idéia de Mokiti Okada, do Japão para o mundo.
A arquitetura da paz.
sobre o autor
Thomas Bussius é engenheiro mecânico e autor de diversos livros com o pseudônimo Hermógenes de Castro & Mello.