A cena atual do turismo burguês, seja ele na sua versão mais sofisticada dos enricados ou na versão mais popular do turismo de massa, é, em certo sentido, a negação da motivação originária do turismo: conhecer o desconhecido. Como contraste absoluto a esse quadro descrito, podemos apontar as viagens de “redescoberta do Brasil” empreendidas pelos nossos artistas modernistas na década de 20 do século passado. Como diz Aracy do Amaral, no seu livro Blaise Cendrars no Brasil e os modernistas, “esses precursores brasileiros do turismo doméstico se deslocaram de trem, automóvel, conforme as possibilidades dos locais visitados”, em busca das “raízes da nacionalidade”.
Após um primeiro momento quando os olhos de todos seus membros estavam postados exclusivamente em Paris, o grupo modernista vai aos poucos se embriagar de nativismo e nacionalismo, cujas matrizes mais puras e profundas pensavam estar dispersas pelo enorme território nacional, seja nas crenças e valores do povo mais simples, seja nas suas materializações culturais primitivas expressas em músicas e danças.
A primeira destas viagens ocorreu em 1924, quando Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, René Thioller e alguns membros da aristocracia paulista vão ciceronear o poeta suíço-francês Blaise Cendrars em excursão pelas cidades históricas mineiras. Desconhecida de todos eles, a paisagem rural mineira marcou-lhes profundamente a percepção, tocando-lhes de forma indelével a sensibilidade e tornando-se rico manancial de referências para as obras de arte que viriam a produzir a seguir.
Os maravilhosos croquis de Tarsila, feitos com traços econômicos e precisos, metamorfosearam-se nas magníficas pinturas da fase Pau-Brasil dos anos 1924 e 1925, verdadeiras ilustrações multicoloridas do manifesto homônimo de seu marido Oswald, que grafará em verso livre impressões análogas sobre uma região rica em tradição e patrimônio artístico, mas habitada por um povo esquecido e com as edificações majestosas envelhecidas e, em muitos casos, abandonadas e em ruínas.
Deles, quem vai adotar as viagens como forma privilegiada de conhecer o Brasil vai ser Mario de Andrade. Em 1927, acompanhado apenas de mulheres de várias idades, todas elas da aristocracia cafeeira, vai se enfronhar na Amazônia brasileira, chegando até o Peru e a Bolívia. Começa nessa viagem dois hábitos formidáveis, que renderão muitos frutos no futuro: as anotações para um futuro livro de viagens, que se chamaria O turista aprendiz, e uma significativa – pela quantidade e pela qualidade – documentação fotográfica, ao qual se dedicou com afinco, na busca de boas soluções técnicas e formais.
As duas práticas estavam também presentes no seu tour solitário pelo nordeste, sua terceira “viagem etnográfica”, nome que adotou para frisar suas preocupações no levantamento da cultura popular espalhada pelo interior do país. Seu interesse fica mais diversificado e mais metódico, resultando em criterioso levantamento “sobre danças dramáticas, sobre melodias do Boi, sobre música de feitiçaria, religiosidade popular, crenças e superstições, poesia popular”, segundo enumeração da pesquisadora Telê Porto Ancona Lopez, a quem coube editar o livro de Mário muitos anos depois.
As viagens começam a ganhar radicalidade, tanto na aventura turística como no teor poético. O mergulho do gaúcho Raup Bopp na Amazônia resulta no belíssimo poema épico Cobra Norato de 1928, que vai remexer as raízes mais profundas da racialidade e da paisagem bíblica descrita no Gênese. Uma adesão emotiva ao elemento popular e à paisagem primordial equivalente à de Euclides da Cunha, que já havia anteriormente descrito em À margem da história o mundo amazônico, segundo ele em pleno terceiro dia da criação.
E, de certa forma, Mario também teve seu Euclides na figura de Graça Aranha. Mesmo avesso à aventuras, o maranhense foi o primeiro intelectual importante a propor uma agenda estética vinculada ao nosso primitivismo: “aqueles elementos bárbaros da nossa formação espiritual e da nossa nacionalidade reclamam, antes do seu desaparecimento total, os seus vates e os seus escritores”, diz o escritor maranhense em Estética da Vida, de 1921. E Mario, músico de conservatório e poeta de gabinete, vai topar o desafio, se inventando como um revolucionário turista aprendiz.
O balanço dessas viagens de estudo é formidável. Aquele país profundo – feito de paisagens selvagens e de povos simples que foram reiteradamente esquecidos, ridicularizados ou estigmatizados por todo tipo de acusações sobre suas incapacidades atávicas – surgia reabilitado na documentação feita in loco e mitificado nas obras de arte posteriores. O inventário da vida brasileira realizado por Mario de Andrade vai servir de sustentáculo para um sólido projeto cultural, que propunha uma arte de cunho erudito erigida sob a base cultural popular – a pintura de Tarsila, a poesia de Oswald, a música de Villa Lobos, a arquitetura de Lucio Costa.
Macunaíma, escrito em prosa (ou rapsódias, como queria o próprio autor) é tanto o cume dessa produção, como também o testemunho do quanto esta era oriunda de um profundo litigio entre a intelectualidade urbana e os rincões profundos do país. Os modernistas – como de resto todos os aristocratas quatrocentões de São Paulo – não conheciam o Brasil que começava após as cercas de suas fazendas de café. Vale lembrar que parte grande das lendas amazônicas que dão substância a Macunaíma foi buscada no livro do etnógrafo alemão Theodor Koch-Grumberg.
E, ao que tudo indica, a primeira viagem modernista foi muito fortuíta, estimulada pelo temperamento fogoso e curioso de Blaise Cendrars. Coube a um artista estrangeiro estimular a curiosidade dos jovens modernistas, voltando seus olhos para um país que lhes era desconhecido por completo. Como escreveu na época Brito Broca no jornal carioca A Manhã, “o divórcio, em que a maior parte dos nossos escritores sempre viveu, da realidade brasileira fazia com que a paisagem de Minas barroca surgisse aos olhos dos modernistas, como qualquer coisa de novo e original” (1).
Foi o poeta suíço-francês, no âmbito modernista, o primeiro a se debruçar sobre a excepcional obra de Aleijadinho, se antecipando em muitos anos aos futuros aportes elogiosos de Mario de Andrade e Lucio Costa. Curiosamente, nos anos 1920, ainda recém-formado, o jovem arquiteto carioca ganha do ideólogo da arquitetura neocolonial, o intelectual José Mariano, uma viagem para Diamantina como prêmio de final de graduação. A partir de então se tornará também ele um viajante contumaz, tendo como destino preferencial as cidades coloniais, não como turista, mas a serviço do Sphan.
Quase nenhum resquício dessa aventura turístico-cultural pelo Brasil é visível hoje em dia. Há algum vigor exploratório no turismo ecológico e vinculado aos esportes radicais, mas em tais experiências o homem da terra é desnecessário enquanto entidade cultural rica de significados, e seu interesse fica restrito aos aspectos logístico e operacional. E a própria paisagem não ultrapassa a condição de suporte para a fruição subjetiva dos turistas.
As experiências mais próximas do legado modernista são as sucessivas viagens da dupla de exploradores formada pelo paisagista José Tabacow e pelo fotógrafo Luiz Cláudio Marigo, que nos últimos anos têm se dedicado a registrar os ecossistemas brasileiros, em uma ação que mescla atividade profissional e curiosidade intelectual. Em entrevista para o Portal Vitruvius, Tabacow convoca os curiosos: “ainda existe muito por descobrir e cada novo local é uma revelação distinta, uma emoção diferente. Sugiro aos que me lêem que considerem a possibilidade de visitar locais como estes mais freqüentemente. Se assim fizerem, verão que não há exagero em minhas palavras. Ao contrário, há um frustrante sentimento de não conseguir mobilizar as pessoas a partilhar tanta beleza comigo” (2).
Há aqui uma filiação direta com as viagens exploratórias do maior paisagista brasileiro de todos os tempos, com quem Tabacow trabalhou praticamente duas décadas: “aprendi a olhar as paisagens brasileiras com Burle Marx desde muito jovem e mantenho meu interesse aceso, pois sempre há o que descobrir” (3). As viagens de Burle Marx pelo interior do Brasil tornaram-se lendárias, assim como seu sítio no Rio de Janeiro, onde se encontra parte da flora autóctone que coletou.
Atento às lições de Lucio Costa, que o introduziu no circuito arquitetônico brasileiro, Burle Marx produziu uma sólida obra que alia o rigor plástico moderno a uma aguda observação da paisagem nacional. Modernista da segunda leva, Burle Marx adotou o amor pelo turismo interno, hábito que transmitiu para grandes amigos, caso de Rino Levi, que faleceu no sertão da Bahia em uma destas excursões. Como mostram Tabacow e Merigo, o filão ainda pode ser explorado e uma nova redescoberta do Brasil pode ser uma alternativa interessante para turistas com curiosidade pelo desconhecido. Mas quem se arrisca a escrever a nova agenda convocatória?
notas
1
BROCA, Brito. Blaise Cendrars no Brasil, em 1924. Coluna Letras e Artes (suplemento). A Manhã, Rio de Janeiro, 4 maio 1952.
2
GUERRA, Abilio. José Tabacow. Entrevista, São Paulo, ano 07, n. 028.02, Vitruvius, out. 2006 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/07.028/3299>.
3
Idem, ibidem.
sobre o autor
Abilio Guerra, arquiteto, professor da FAU Mackenzie, editor do Portal Vitruvius e do Arquiteturismo.