No século XIX, vários europeus escreveram sobre suas viagens ao Brasil. A Baia de Todos os Santos em Salvador foi sempre apresentada em superlativos. Sobre a cidade em si as palavras eram menos galantes.
Os bairros portuários eram imundos. O mercado de escravos no Pelourinho também tinha uma aparência assustadora. Para os europeus, a Bahia tinha pouco a oferecer nos campos da cultura, boas maneiras e grandes monumentos. Desde então, esta imagem mudou bastante. O estado da Bahia, a cidade de Salvador e o bairro do Pelourinho receberam um tom mágico. É ali que estão o coração e a alma do Brasil.
Impensável para a Bahia são as influências africanas do período colonial. O que se vê nas pessoas, na música, comida e religião. Salvador é uma cidade de tradições. Há centenas de casarios históricos e dezenas de igrejas no estilo barroco. O centro antigo tinha recebido a chancela da Unesco como Patrimônio Histórico da Humanidade. Inicialmente foi apenas uma formalidade.
O Pelourinho estava destroçado e era sinônimo de miséria e pobreza. Mas o bairro foi restaurado e virou atração turística. Para muitos, perdeu o charme, porque ficou mais comercial e artificial. Mas nem tanto; o centro ainda não se transformou em uma versão tropical para Volendam e Marken. Pode ser que a arquitetura de Roma seja mais importante, mas Salvador é a Roma negra, um monumento sociocultural de primeira categoria.
Nos anos 40 do século passado, o fotógrafo e antropólogo francês Pierre Verger esteve na Bahia. Suas fotos transmitem a mesma idéia que as feitas por Jacob Olie em Amsterdã na virada do século XX. Verger fotografou a pureza de um mundo que estava preste a desaparecer. Junto com ele chegou a Coca-Cola e a televisão. Multinacionais e empresas de São Paulo entraram na fila. Salvador se transformou numa metrópole. Sua própria cultura foi sufocada durante a ditadura militar (1964-1985). O centro histórico empobreceu. Os prédios foram desabando, um após o outro. Atrás das fachadas foram surgindo favelas. O local deixou de ser o centro da cidade. O bairro antigo se tornou uma região marginalizada.
Dez anos atrás, só se via no Pelourinho miseráveis, prostitutas e pesquisadores europeus. Eu era um deles. Estudava arquitetura de restauração e o tema da minha tese era esse bairro. Devo dizer que não estava muito motivado. À procura de uma temática complexa, escrevi várias cartas à América do Sul. Somente uma funcionária pública de Brasília respondeu. “Vá para Salvador” – ela escreveu – “porque lá os problemas são muitos”. Nunca havia ouvido falar da cidade e não falava o português. Por falta de alternativas eu segui o conselho dela.
O campo de trabalho na Bahia ser tornou algo surpreendente. Parecia que a cidade havia sido construída em um esgoto. A realidade nua e crua não lembrava em nada as agradáveis e atraentes cidadelas européias. Em meio aos escombros dos casarios surgia também uma cultura popular. Apesar dos fortes contrastes, existia uma consciência coletiva entre os baianos. Os mais pobres coitados tinham tanto orgulho da cidade quanto o bispo e o prefeito.
O Pelourinho que eu conheci não se parecia em nada com o charme dos álbuns de Verger. Para medir as coisas eu tinha que passar por cima de destroços, lixo, porcos e crianças peladas.
Nos projetos na Holanda, as pessoas ficam bisbilhotando por trás das cortinas. Em Salvador, as reações eram diretas. A curiosidade dos baianos contribuiu para que em dois meses eu pudesse aprender o português. Era convidado por todos e sempre bem recebido.
Entendi pouco das histórias que contavam, mas uma coisa era clara: as pessoas não eram indiferentes à situação no Pelourinho. Permanecia noite e dia no bairro. A diária do hotel custava quatro florins e o quarto era pouco maior do que uma dispensa. Não tinha janelas nem ventilador. Quando os vizinhos acendiam a lâmpada, a luz entrava através das frestas no meu quarto. Além disso, ouvia todo o tipo de barulho: crianças brincando, cachorros brigando e cada quinze minutos o sino da igreja São Francisco.
Além dos vizinhos, conheci pessoas na universidade e no serviço de conservação de monumentos. Através de conhecidos em São Paulo entrei em contato com uma família de baianos que se responsabilizou por mim. Nos fins de semana, era levado para as praias paradisíacas e bares na beira-mar. O filho do casal que foi me pegar cresceu em Salvador, sem nunca ter ido ao centro histórico. Eu chamei a atenção dele para as belas igrejas, praças e a arquitetura imponente. Entretanto, ele estava mais fixado em outros elementos no local e concluiu que não prestava.
A família decidiu que eu devia ser salvo. Gostasse ou não, encontraram um hotel melhor pra mim, num bairro mais tranqüilo. Na minha nova residência, aumentou minha amizade com brasileiros. O Pelourinho eu via cada vez menos. De volta a Delft, ambas experiências foram importantes para pensar sobre integração do antigo centro à cidade. Minhas constatações foram elaboradas em um Pelourinho “virtual”. Não tinha outros planos para este projeto. Mas fui trabalhar no Brasil.
No começo dos anos 90, o governador da Bahia decidiu que era preciso fazer alguma coisa com o Pelourinho. As ruínas foram restauradas em tempo recorde. Para um arquiteto não é difícil fazer críticas aos trabalhos de restauração. O translado dos moradores parecia mais um tipo de deportação. Também é imperdoável a maneira como limparam as ruínas, com tratores. O rico arquivo, segundo se acredita, contendo resto do período colonial, se perderam para sempre. No projeto, pouco se aproveitou da qualidade do espaço oferecida pelo Pelourinho.
Típico para o local é a seqüência de panoramas urbanos em um bairro repleto de morros: várias praças e ruas, cheias de panoramas e vistas. Na restauração deu-se maior atenção à parte interior do bairro, sem que se criasse uma relação com a magnífica estrutura urbana. Na praça central, foram criados terraços e palanques, cercados de fachadas artificiais. Com razão, o local foi batizado de Shopping do Pelô. As cores pastel sintético, em vez de cal colorida, acentuam o ambiente artificial.
A primeira vez que visitei o Pelourinho restaurado levei um choque. Tudo parecia exageradamente bonito. As lojas de roupa de praia do Rio e de ternos de São Paulo podem se instalar em qualquer lugar do Brasil. Entretanto, as restaurações provocaram um desenvolvimento interessante. Os baianos descobriram o centro da cidade novamente.
Finalmente o Pelourinho passou a fazer parte do coração da Bahia. Juntando-se a isso, a música afro-brasileira começou a fazer sucesso no mundo, com a ajuda das visitas de David Byrne, um CD de Paul Simon e um videoclipe de Michael Jackson. O novo Pelourinho oferecia um ótimo cenário para o Olodum e outras bandas da Bahia. Menos sucesso tiveram as lojas de moda, que já começaram a abandonar o local.
O Pelourinho está ficando mais popular, graças às pessoas “comuns” dos arredores que começaram a freqüentá-lo. As ruas estão cheias e agradáveis. Finalmente, a chuva limpou um pouco as tonalidades pastéis dos muros.
Sem as restaurações rigorosas seria impossível querer encontrar um novo equilíbrio no Pelourinho. Existem alternativas entre os extremos de uma pobreza generalizada e um shopping histórico. Para isso é preciso construir e remodelar muito.
O Pelourinho não pode sobreviver só de arquitetura. Este monumento sócio-cultural precisa ser bem utilizado e ser acessível. É certo que os moradores foram expulsos e muitos rastros históricos foram apagados. Entretanto, positivo é que pessoas vindas de todos os lugares começam a invadir o bairro. E isso é algo que falta muitas vezes em cidades perfeitamente restauradas na Europa.
sobre o autor
Paul Meurs, arquiteto, é titular do escritório Urban Fabric, em Schiedam. Professor da cadeira de Restauração na Delft University of Technology, é pesquisador e consultor sobre transformações urbanas e arquitetônicas, conceituando o lugar do passado na paisagem urbana do futuro. É PhD com trabalho sobre transformação das cidades holandesas no período de 1883-1940. Liderou dezenas de viagens de estudo de profissionais holandeses ao Brasil.