Entre tantas montanhas e vales, águas tranquilas e corredeiras, primeiro descubro a antiga capital incaica: Cusco. Suas estreitas ruas revestidas com mosaicos de pedras permanecem como no tempo de Pachacutec (1430-1440), o rei que unificou o império inca. Tomada pelos espanhóis em 1533, aos poucos Cusco foi perdendo seus monumentos primitivos, substituídos pela catedral e casas coloniais dos espanhóis sobrepostas às fundações da antiga cidade inca, que dominou o Vale do Urubamba.
Hoje expandida, crescendo em suas bordas através de assentamentos espontâneos da população local que abandona os campos e forma comunidades de artesãos e subempregados que se instalam pelos flancos das colinas e morros, a cidade preserva em sua área central os resquícios da sobreposição cultural e diversos museus de história e obras de arte. A Plaza, assentada no centro do tabuleiro e associada à presença da Igreja de São Domingos, que foi construída sobre o imenso Templo do Sol (Koricancha), é a grande marca da ocupação hispânica. Ao redor da cidade encontram-se importantes sítios arqueológicos: Sacsayhuaman, Qenqo, Puka Pukara, Tambomachay e o templo da Lua.
O trabalho de cantaria executado pelo povo inca foi primoroso, principalmente nas arquiteturas de Saqsayhuaman, marcadas por pórticos e utilização de grandes pedras, perfeitamente encaixadas entre si. As funções de tais cidadelas são variadas. No trabalho de controle agrícola dos grandes terraços trabalhados que estenderam pelo vale, retaguarda agrícola da capital, houve pequenas cidades fortificadas e localizadas estratégicamente, e cidadelas sacerdotais e voltadas a cultos religiosos como como Pucapucara e Qenqo, a cidade-labirinto.
Tambomachay, outro sítio pertencente a este conjunto de cidadelas bem próximas a Cusco foi edificada no sopé das montanhas, amoldando-se ao relevo pré-existente, constituindo uma paisagem onde as pedras, organizadas arquitetônicamente, e as águas das nascentes são fundamentais. A fonte também dialoga com a natureza presente. Tal interação das construções à natureza local faz das ruínas da região um testemunho da adoração deste povo aos astros, fenômenos naturais e animais das montanhas. Algumas das marcas deste misticismo, presentes em representações esculpidas em pedra foram, inclusive, apagadas e destruídas durante o domínio espanhol em diversos assentamentos.
Chinchero, cidade viva que convive com o status de importante sítio arqueológico é testemunha da destruição realizada pelo domínio espanhol e da sobreposição alcançada até os dias de hoje , quando podemos vislumbrar terraços agrícolas centenários ainda em uso dentro do cinturão urbano, percorrendo a cidade.
A paisagem ali é dotada de extrema beleza nos limites da cidade, onde se avistam as verdes montanhas emolduradas pelos terraços incas que se conectam ao vale por trilhas conhecidas pela gente do local. Ao lado, em plataforma superior, bem onde se situava o grande templo inca, está construída a Igreja de Nossa Senhora de Mont Serrat, dos tempos coloniais. Algumas comunidades de mulheres artesãs lá se reúnem, guardando técnicas ancestrais de fiação, coloração e tecelagem.
Ainda nas imediações de Cusco, o belo conjunto arqueológico de Pisac, situado nas colinas às margens do rio Vulcanota, guarda a sucessão de terraços que faz a transição entre as suas diversas cidadelas conjugadas e uma parte da cidade ainda hoje ativa nas cotas mais baixas, guardando sobreposições do tempo colonial.
A vida urbana se intensifica neste povoado pela presença da feira e comércio enquanto no topo da colina as ruínas conservam traçados urbanos característicos do povo inca.
Seguindo para o flanco sul do Vale do Vulcanota, em sentido contrário a Machu Picchu, encontramos uma série de preciosos sítios arqueológicos , a começar por Tipon. Cidadela de refúgio do rei inca Yahuar Huaca, foi construída através de grandes patamares e fontes de água, que corre por canaletas envolvendo todas as plataformas.
Quase nada restou do palácio, neste lugar notável por suas obras de drenagem e criativa fonte, que transforma águas quase estagnadas da nascente em movimentados “parterre” hidráulicos, nas fontes dedicadas ao culto das águas. Um pouco mais adiante, surge Pikillacta, sede do povo Wari, povo pré-incaico derrotado pelos incas, cujas técnicas construtivas são um pouco mais primitivas. Essa cidade, por estar sempre envolvida em guerras, estava resguardada por extensa muralha de pedras argamassadas, parcialmente existente no local.
Raqchi, testemunho da utilização mista da madeira, pedras e técnicas de arquiteturas com a terra, mostra-nos as ruínas do grande templo com telhado em duas águas em palha, adormecido em meio à paisagem bucólica de um povoado singelo repleto de animais pastando e lagos vizinhos. De caráter original as construções circulares em pedra, que deviam ter seus tetos em palha, eram grandes celeiros em ocasiões festivas alimentando e hospedando os peregrinos do templo.
Seguindo para o Norte, bem antes de alçançar Águas Calientes, ponto de apoio para quem visitará Machu Picchu, encontram-se também muitas ruínas surpreendentes. Mas o que mais surpreende nesta viagem pelo vale sagrado dos incas são as ruínas dos laboratórios agrícolas de Checoq, associadas ao laboratório de plataformas circulares de Moray. Tirando partido da configuração geográfica existente os incas engendraram a sucessão de plataformas situadas em níveis diferentes para o cultivo e experimentação de variedades agrícolas dos grãos. Cada vez mais alto, temperaturas diversas, resultados e adequações diversas. Tais sementes eram muitas vezes híbridas, pelo calor dos fornos de Checoq, segundo antropólogos locais.
Em Maras, descobrem-se as impressionantes paisagens das salinas, pequenas piscinas de decantação do sal da água que brota das montanhas intensamente salgada, por um mistério geológico vinculado à enorme distância do mar. Em cooperativa, os habitantes locais dividem as áreas de coleta e produzem, na singular encosta que percorremos, quase incrédulos, um sal muito forte que abastece a região.
Ainda a caminho de Machu Picchu por esta rota norte encontramos Ollantaytambo, que segundo alguns estudiosos dos mitos locais tem em sua planta representada a árvore da vida, uma das árvores sagradas dos incas, dividindo-se em dois pelo canal do rio Patacancha. A árvore cultuada por esse povo personifica-se ainda hoje, segundo as lendas da população local, nos diversos exemplares da Erytrina falcata, localmente conhecida como Pisonay e espalhada por todo o vale sagrado. Esta última e significativa cidade da rota paralela ao rio Vilcanota antes da chegada a Machu Picchu, é marcada pela presença do estreito canal que se estende pelos caminhos de saída, transportando através de pequenas canaletas derivadas as águas limpas da montanha para as povoações vizinhas.
Sua organização urbana caracteriza-se pela divisão por um grande muro e portal das áreas sagradas e recintos reservados, separados da cidade comum. Os recintos sagrados se estendem com enormes plataformas que se acredita terem sido belos jardins que cercavam as casas dos sacerdotes nas encostas, de onde se avista toda a organização urbana do vale. Na encosta de uma das montanhas, mais distante, se instalou um original conjunto de silos que marca a paisagem, aproveitando os bons e frios ventos para refrigeração dos grãos. Ainda nas áreas reservadas o complexo de altares e fontes se destaca, vinculado aos antigos cultos das águas. A partir de Ollantaytambo finda a estrada de asfalto. O principal meio de locomoção será a linha férrea, que corre paralela ao rio Vilcanota. Seguindo em direção a Machu Picchu, de dentro do trem, avistam-se antigas plataformas de plantação e inícios de trechos das trilhas incaicas que adentram a mata. De alguns pontos partem viajantes andarilhos a pé para a marcha pelas montanhas ou em busca das outras ruínas de assentamentos menos acessíveis. A paisagem da várzea é pedregosa e as montanhas cercam o rio de perto. Ruínas de terraços agrícolas e antigas muralhas serão vistas pelo viajante atento à paisagem.
Águas Calientes, a última estação, é uma estranha cidade, totalmente voltada aos estrangeiros. Pequenos hotéis dão frente a duas ruas paralelas ao rio, praticamente ignorado pelos que fizeram as construções e uma sucessão de mercadinhos e lojas de artesanato se acumulam por essas ladeiras. Somente a necessidade de cruzar o rio nos faz lembrar a sua existência, ao usar a ponte, que também conecta um dos lados ao grande mercado de artesanato. Existem águas termais reunidas em uma instalação apropriada para turistas, com piscinas públicas. Um ponto de descanso, compras e preparação para Machu Picchu, que será alcançado com micro ônibus, devido à altitude a ser atingida e caminhos estreitos até lá, hoje asfaltados.
É necessário estar bem cedo lá, pois o conjunto arquitetônico é muito grande, e muitos percursos podem ser realizados entre tantas ruínas da maior aglomeração inca encontrada num sítio arqueológico. Todo o conjunto monumental de Machu Picchu é formado por construções realizadas para a vida cotidiana dessa comunidade, que ali praticamente se escondeu, já às portas da floresta amazônica, sendo depois dizimada pela sífilis, conforme relatos de historiadores locais.
Tais ruínas foram descobertas somente no século XX, em 1911 por um historiador americano, Hiram Bingham. Sua área atinge mais de 5 km quadrados e os princípios da construção e da organização urbana atingem aí seu apogeu para aquela civilização. Ali podemos, entre as construções mais comuns, encontrar relógios solares, centros cerimoniais, palácios, grandes páteos, tumbas, pedras sagradas, como a famosa pedra do Condor, observatórios, e alvenarias de pedra com aberturas estrategicamente construídas, lembrando a arquitetura mais sofisticada do grande templo do Sol em Cusco, ainda hoje guardada entre os arcos do convento de São Domingos.
A cidade está, segundo as lendas, protegida pelo grande Puma, cuja face que se encontra delineada nos flancos da montanha Waina Picchu, possível de ser conhecida através de longa e perigosa caminhada, que em boa companhia tive coragem de fazer em janeiro deste ano, só para ver de lá de cima uma parte do conjunto de Machu Picchu, que segundo alguns tem a forma da ave Llulli com suas asas abertas, a ave ancestral presente nos mitos incaicos do vale sagrado.
sobre a autora
Saide Kahtouni é arquiteta, paisagista e urbanista. Doutora pela FAUUSP na área de concentração Fundamentos e História da Arquitetura e Urbanismo com a tese que originou o livro ”Cidade das águas”, publicado em 2004, pela editora Rima. É mestre desde 1994 pela área de Paisagem e Ambiente da FAUUSP.