Nosso povo estava embalado, em estado de graça. Uns dias antes, tinha protagonizado a batalha que entrou para a história como A Invasão Corintiana: quando a cariocada abriu os olhos, num sábado de manhã, no final de 1976, já era tarde: a areia de Ipanema estava tingida de preto-e-branco, havia bandeiras alvinegras por todos os lados e os ônibus não paravam de despejar os guerreiros nos bares da orla pra devorar com fúria um chops e dois pastel. O berro tribal, cantado em uníssono por hordas ensandecidas, encheu o mormaço da Cidade Maravilhosa, subiu do asfalto pros morros, impregnou os becos, contaminou os botecos da Lapa:
– Timãão, ê ô! Timãããããão, ê ôôô!
Tem gente que garante que viu o bondinho do Pão de Açúcar subindo e descendo com uma bandeira do Corinthians desfraldada no teto.
A verdade é que no dia seguinte o Maracanã estava dividido meio a meio entre assustados tricolores donos-da-casa e abusados alvinegros invasores – esses, como o desenrolar dos fatos mostrou logo a seguir, os verdadeiros donos da casa naquela tarde.
Pois, como manda o roteiro das tragédias mais legítimas, o começo de tudo é a ilusão da vitória. Como a que tinha o Fluminense, o forte Flu de Rivelino!, antes que os jogadores pusessem o pé no gramado e sentissem a força avassaladora da Fiel Torcida. Dava pra acreditar? Não era Fla-Flu... que raios estava acontecendo?
O jogo terminou empatado em 1 a 1 e foi para os pênaltis. E aí o Corinthians fez 4 x 1! A batalha estava ganha, o Timão estava na final do Campeonato Brasileiro, a Cidade Maravilhosa estava dominada... e a volta pela Dutra foi um porre só.
Morando em Florianópolis na época, eu me lamentava por não estar em São Paulo, por só ter acompanhado a Invasão pela tv e pelos jornais. Mas a final de um jogo só seria em Porto Alegre, contra o Internacional, ali pertinho, e antes que eu tivesse qualquer idéia, minha companheira – tão corintiana quanto eu e fiel parceira de inúmeras partidas no Pacaembu e no Morumbi – foi mais rápida:
– Na final, em Porto Alegre, nós vamos, né?
Claro!
Botei a Variant lilás metálica (que, por causa da cor, a Rosa chamava de “Sonho de Valsa”) na estrada e lá fomos nós, rumo à conquista do Campeonato Brasileiro. No caminho, BR-101 abaixo, passávamos por ônibus fiéis e gaviões, e isso nos dava a certeza de que a Invasão Cisplatina seria um passeio mais divertido do que a aventura anterior.
E aqui preciso fazer um parêntesis. Sou gaúcho. Nasci em Santa Maria, onde vivi até os 10 anos de idade. Na cidade, um time de basquete chamado Corinthians fazia sucesso – e conquistava importantes títulos estaduais. Nessa época, os grandes times de futebol eram os do Rio e de São Paulo – e eram esses os “primeiros times” dos torcedores da minha terra. Meu irmão mais velho, por exemplo, torcia, nesta ordem, para: Vasco (RJ), Corinthians (SP) e Grêmio (RS). Eu ia na dele... Com a família, em 1957, mudei para Porto Alegre. É a cidade da minha adolescência, do escotismo, da militância estudantil, do começo de carreira profissional. Onde ou você é Grêmio ou é Inter. E eu, de família vasco-corintiana-gremista, sem estar muito ligado em futebol, um dia vou a um Gre-Nal com uma turma da Vila do IAPI. O contágio ultra-sanguíneo é imperativo, e na metade do jogo me vejo torcendo pro Colorado. Algum tempo depois, final de 1969, desembarco sozinho em São Paulo, pra ficar. O Corinthians está há anos na fila do Campeonato Paulista, o Corinthians tem Rivellino, o Corinthians é o time do povo, o Corinthians... o Corinthians... o Corinthians... Descubro, definitivamente, o futebol – e a conseqüente paixão. Sou abduzido pela Fiel Torcida.
Pra completar, a primeira mulher é corintiana! E o primeiro sogro não é apenas um corintiano roxo: é também um companheirão de arquibancada... Que Vasco, que Grêmio, que Inter... que nada! Doutor, eu não me engano: meu coração é corintiano!!! Fechemos o parêntesis.
Estamos na estrada, no Sonho de Valsa, a caminho de um sonho.
Por contingências profissionais, vamos assistir ao jogo no campo – o que, pra mim, é uma dádiva. Ver o Corinthians ser campeão ali, junto dos jogadores, na minha terra, tem um gosto único, diferente – até hoje não consigo definir com clareza que sentimento maluco é esse.
Na entrada do Gigante da Beira Rio o movimento de jornalistas é grande. E não é só o pessoal da área do Esporte: a imprensa viu a Invasão – e o fenômeno de massa que se seguiu a ela – como um case sociológico de grande interesse. Por isso, destacou profissionais de vários setores para a final do Sul.
Naquele fuzuê, encontramos muitos conhecidos, alguns bons amigos e velhos colegas das redações de São Paulo. Engato um papo com um repórter com quem tinha trabalhado alguns anos antes na revista Realidade. Ao saber que estamos morando em Florianópolis, ele diz que tínhamos feito muito bem de sair de São Paulo, que a cidade está insuportável, insana... o trânsito, a poluição... o mercado cada vez mais selvagem, nossos colegas ficando cada vez mais malucos... E tasca a pergunta:
– Soube o que aconteceu com o Fernando?
– Que Fernando, o Moraes?, eu pergunto.
– Não. O “Tal”. (Por respeito a ele, me permito omitir o sobrenome.)
O que o meu amigo não sabia era que exatamente esse Fernando era o ex-namorado da minha companheira, de quem ela havia se afastado pouco antes de começarmos nossa relação – e por quem mantinha, ainda, grande admiração, respeito e afeto.
Surpresa e interessada, ela entrou rapidamente na conversa:
– O que aconteceu com ele?
– Se suicidou!
Foi um soco no estômago, que quase me nocauteou. Antes que eu pudesse ter qualquer reação, Rosa corria, rodopiava, aos prantos, gritando palavrões e frases sem sentido – e o meu amigo, atônito, não conseguia entender o mal que tinha feito.
Ela demorou a se acalmar. E quando isso aconteceu – depois de delicadamente sugerir ao meu amigo que sumisse dali – propus que fôssemos imediatamente embora, que não valia a pena ver o jogo, que ela ligasse para pessoas de São Paulo...
Pra minha surpresa, ela preferiu seguir o que estava programado: vamos ver o jogo, no campo.
Entramos. E arranjamos um lugar atrás de um dos gols, onde o Corinthians atacava no primeiro tempo. Quem sabe um golzinho, pra espantar as nuvens negras. Mas será que dava? O Inter, treinado por Rubens Minelli, tinha Manga, Marinho Peres, Batista, Valdomiro, Dario, Figueroa e... Falcão! No Corinthians do técnico Duque o centroavante era Geraldão... e craques mesmo eram só os laterais Zé Maria e Vladimir... Será que dava? O primeiro tempo acabou com 1 x 0 para o Inter, gol de Dario.
Ainda dava – afinal, o Coringão, que não ganhava título nenhum desde 1954, não era o time da virada?
No segundo tempo, ainda atrás do mesmo gol – agora com Tobias ali na nossa frente – vimos Valdomiro cobrar uma falta, a bola bater no travessão, depois no chão, e espirrar de volta pra grande área. O juiz José Roberto Wright ainda ficou em dúvida se ela tinha entrado ou não, mas o bandeirinha correu pro meio do campo – enquanto nossos gladiadores armavam um tremendo perrengue.
Não deu, é claro.
O jogo terminou 2 x 0, o Colorado se tornou bi-campeão brasileiro e tem gente que diz que aquele era o melhor time do Inter de todos os tempos...
Saímos do estádio devagar, em silêncio, quando ele estava praticamente vazio. Lentamente, cercados por camisetas e bandeiras vermelhas, caminhamos em direção ao estacionamento onde estava o Sonho de Valsa.
A metade colorada de Porto Alegre fazia uma festa barulhenta. A metade gremista fazia de conta que não estava interessada em futebol. E uma caravana de ônibus de torcedores corintianos, em fila indiana, não ia nem pra frente nem pra trás naquele mar de gente que saía do estádio. Quando passávamos ao lado de um deles, uma janela se abriu e um corintiano furioso botou a cara pra fora e disparou uma cusparada.
Atingiu em cheio a testa da Rosa, sobrou um pouco também pra mim.
Ali ao lado, o sol se punha no Guaíba. Nós, gaúchos, temos a mania de dizer que esse é o por-do-sol mais bonito do mundo.
Mas nós ali, aqueles dois corintianos sofredores, apunhalados por uma notícia trágica e pela derrota inquestionável, não víamos beleza nenhuma em nada.
Mal tínhamos força pra limpar os cabelos, a testa, o rosto... e tratar de chegar logo ao carro, e ganhar a estrada, e sonhar outros sonhos, outras vitórias, outras paixões...
sobre o autor
Valdir Zwetsch é jornalista.