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architectourism ISSN 1982-9930


abstracts

português
Neste artigo, Héctor Vigliecca, arquiteto uruguaio – radicado no Brasil – viaja no tempo, em visitas a estádios, encontro com jogadores famosos, divagando sobre arenas multifuncionais e coliseus romanos

english
In this article, Héctor Vigliecca, Uruguayan architect -who lives in Brazil - travels back in time in order to visit stadiums, meet with famous players and wander around multifunctional stages and Roman coliseums

español
En este artículo, Héctor Vigliecca, arquitecto uruguayo -radicado en Brasil- viaja en el tiempo para visitar estadios, encontrarse con jugadores famosos y pasear por escenarios multifuncionales y coliseos romanos


how to quote

VIGLIECCA, Héctor. Tiro de Meta. Arquiteturismo, São Paulo, ano 02, n. 016.06, Vitruvius, jun. 2008 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/02.016/1433>.


Possivelmente minhas raízes genéticas originárias da Judéia fizeram com que eu me tornasse levemente errante ou algo como o pintor Joaquim Torres Garcia escrevia: “no quiero nada, quiero que las coisas sean como son, estoy bien en todas partes, en todo lugar” (De Hechos, 1919) Isso se reflete na minha relação com o futebol: nunca tive um time do coração. Apenas nos jogos internacionais vivia uma espécie de patriotismo que talvez seja uma substituição ao verdadeiro sentido de pátria, como Mario Benedetti poetizara tão bem em Noção de Pátria: “Pátria é o buraco de minha cama, a árvore que vejo da minha janela”. Alguns podem até não acreditar em tanta insensibilidade vinda de um uruguaio; tenho medo que minhas apreciações sejam contaminadas por um frio quase cirúrgico, mas hoje assisto futebol quase como quem observa um jogo primitivo, algo como escutar aquela maçante música renascentista.

Mauro, Tonho, Enrique Benech e Pelé na Calle Reconquista, diante do Hotel Columbia, 1964 [Acervo Enrique Benech]


Claro que sei apreciar uma boa tática, uma boa jogada e um bom dribbling. Aprecio as regras que dão valor à espontaneidade, mas na verdade, e apesar de um raro constrangimento, o que mais aprecio é a arbitragem, a difícil tarefa de se ter leis fixas e escritas para serem aplicadas dentro da dinâmica do jogo.

Uma maravilha que faz de alguns poucos árbitros verdadeiros gênios na condução do jogo, incluindo as “interpretações”, nada mais absurdo e mais estúpido que as propostas de incluir um replay de TV para a arbitragem. Como dizia Nelson Rodrigues em Flor de obsessão, “a arbitragem normal e honesta confere as partidas um tédio profundo, uma mediocridade irremediável. Só o juiz gatuno, o juiz larapio dá ao futebol uma dimensão nova e, se me permitem, shakespeariana”.

Então, todos os anos (e já são mais de trinta) quando joga Uruguai e Brasil escuto a mesma pergunta: Para quem você torce? Às vezes, só para satisfazer o ego sádico de quem me pergunta, pois sabe que o Uruguai não tem time à altura da seleção brasileira dos últimos tempos e é evidente que vamos perder, respondo: “pelo Uruguai, claro”. Mas no fundo, no fundo mesmo, eu torço pelo Brasil, revelando minha personalidade Zelig, onde meu corpo, minha mente e meu coração torcem de acordo com o âmbito que me habita.

Apesar dessa espécie de apatia em relação ao futebol e, contraditoriamente, talvez como uma espécie de castigo, meu destino está marcado por vários acontecimentos que para um torcedor fervoroso poderiam ser considerados como bênçãos, a começar por ter tido um pai grande jogador de futebol – até convidado por times profissionais, mas que desistiu sensatamente para seguir a carreira de odontologia –, um furioso torcedor de Peñarol. Então na minha infância eu dizia torcer pelo Nacional apenas para provocá-lo ouvindo como resposta: “mi hijo un bolsilludo” (termo depreciativo aos torcedores de Nacional Futebol Clube, arqui-rival de Peñarol de todos os tempos). Nunca lhe confessei minha indiferença à respeito do futebol.

Enrique Benech, Djalma Santos e Héctor Vigliecca na Rambla de Montevideo, diante do Hotel Columbia, 1964 [Acervo Enrique Benech]


Em 1964 quando o Santos jogava em Montevidéu pela Copa Libertadores de América (criada entre outros por um grande dirigente uruguaio chamado Washington Cataldi no ano de 1960), o time se hospedou no hotel Columbia, que ficava em frente ao nosso primeiro escritório de arquitetura, quando éramos ainda estudantes. Num belo dia, o então meu sócio Enrique Benech, torcedor roxo de Peñarol, grita: “mira Djalma Santos e Pelé!!!!”, e saímos correndo para pedir autógrafos e tirar fotos.

Estava por acaso com o carro de meu pai – um Citröen ano 55, modelo 11 legère... (legère como um paquiderme) –, e terminei o dia fazendo um tour por Montevidéu com Djalma Santos, Pelé, Mauro, o capitão do Santos, e o Tonho (os incrédulos que vejam as fotos!). Naquele fim de semana fui ao jogo e vi Pelé jogar no Estádio Centenário de Montevidéu contra o Peñarol. O Peñarol jogava duro, com muitas faltas maldosas, e continuava 0X0 até que no último minuto do jogo, após troca de passes perfeito e cronometrado, o Santos colocou Pelé livre com a bola nos pés. Ele chutou... A bola no ar fez um arco perfeito e o estádio emudeceu, pois sem dúvida ia ao encontro fatal da rede... Então o árbitro apitou: fim do jogo!!! Fiquei confuso, achei injusto que esta bela coordenação feito uma dança se frustrasse por décimos de segundos. Um final frustrante e tive a estranha sensação que não fui o único a sentir; acredito que a confusão enrubesceu os que amam o futebol... A propósito, indiferente, a bola encheu a rede, claro! Então me perguntei se o jogo era de um time contra outro ou era de dois times contra o tempo. Moral da história: “Se a liberdade e a moralidade forem equivalentes, não haverá liberdade” (Sapatilhas de satã. Eduardo Neiva Jr, 1986).

Vivi obviamente o dia fatal em 1950. Tinha 10 anos e foi em um domingo; estávamos na nossa casa de fim de semana e todas as rádios da cidade estavam sintonizadas na radio Carve. O ar estava tenso até que o gol de Ghigia estourou em todos os cantos. Era como um eco estranho: imaginem um milhão de rádios a todo volume ligados na mesma estação. Uma experiência de estereofonia urbana única. Bandeiras que cobriam prédios inteiros e eu me perguntava assustado e perplexo: quando fizeram isto? E para que alguém teria uma bandeira deste tamanho? Quem saberia do resultado antes? Por quê essa histeria toda? Uma semana inteira de feriado, passeatas... Passeatas? Sim, passeatas de operários, de estudantes, de funcionários públicos; uma confusão estranha entre o patriotismo barato e a típica necessidade de auto-afirmação do baixinho.

E para encerrar minha saga de contradições em relação ao futebol, já no Brasil, e por vias do acaso, fui convidado a fazer alguns um projetos de estádios. Começamos visitando todos os estádios construídos na Europa para a Copa de 2004. Fiquei estupefato com o espetáculo para as massas, um assunto tão antigo e, no entanto, tão complexo.

Ficavam agora em segundo plano as tradicionais análises das necessidades do indivíduo ou de um grupo qualquer, para tratar então da movimentação, conforto, segurança, das grandes aglomerações de espectadores. Pessoas olhando para um vazio expectante, sobre o qual devemos imaginar e prever qualquer tipo de acontecimento. Nada de novo se pensamos no Coloseeo Romano. A sua escala torna-se imensa, a distância entre centro e perímetro é tamanha que rompe-se a relação tradicional de representar na fachada a função interior. A pele torna-se um argumento novo nesta temática. As engenharias de instalações, iluminação, comunicação, TV, todas redimensionadas; as técnicas construtivas e as engenharias estruturais alcançam possivelmente o máximo da exigência inventiva que de modo excepcional tem levando estas obras à limites expressivos surpreendentes. Este exercício intelectual que mistura estratégias de lucro, oportunismo e poesia abandona a inércia do hábito projetual, migrando para outra escala, onde valores como os de permanência, influência, identidade e impacto mudam extraordinariamente de tamanho. E tudo isto mesclado aos nossos inconfessáveis e quase sempre nocivos impulsos narcisistas... Bela confusão, atraente desafio.

sobre o autor

Héctor Vigliecca, arquiteto (Escola de Arquitetura de Montevidéu, 1968), está radicado em São Paulo desde 1975. Participou de mais de 70 concursos nacionais e internacionais, recebendo 41 prêmios. Associado à arquiteta Luciene Quel, é titular de Vigliecca & Associados. Professor da cadeira de projeto na Escola de Arquitetura da Universidade Mackenzie desde 1992, é membro da atual diretoria do IAB/SP.

Héctor Vigliecca e Paulo de Arruda Serra diante do Allianz Arena, Munique, 2006 [Acervo Hector Vigliecca]


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