Como todo brasileiro, adoro futebol. E como todo norueguês ou venezuelano, não torço por time nenhum. Uma idiossincrasia tola, mas cuja recompensa é assistir os jogos sem o risco de me decepcionar com a derrota. Um prazer desconhecido pelo torcedor comum, que pode ir, em apenas uma fração de segundo, da alegria inflamada ao desespero angustiante se a bola chacoalhar a rede da trave errada. Ao contrário deste, que se filia irracionalmente a uma camisa antes da puberdade e a ela prestará fidelidade que não dedica à mulher alguma, prefiro simplesmente me divertir.
Seria desonesto omitir que na ausência de uma predileção clubística – após anos assistindo jogos de futebol de variados campeonatos, torneios, regiões, divisões e categorias – eu acabei desenvolvendo um método para acompanhar as contendas com mais interesse: escolher um time provisório para torcer. A escolha, que pode durar um campeonato ou um jogo, considera o melhor futebol, mas também a geografia, pois vai do particular ao geral – primeiro os times da minha cidade, depois do meu Estado, do meu país, do meu continente... Algumas situações sui generis derivam desse rigor protocientífico: para desespero de amigos e familiares, torci pela Argentina na final da Copa de 1986.
Como um Zellig macunaímico, ao invés do corpo é a cor da minha camiseta que se metamorfoseia em outras, e o distintivo estampado no seu lado esquerdo passa por diferentes formas, reagindo em uníssono com as oscilações do coração interesseiro, sempre batendo para o clube de melhor futebol. E tal situação me permite recordar com orgulho dos meus times do coração: o Santos de Robinho, Diego e Elano; o Palmeiras de Cafu, Rivaldo e Muller; o São Paulo de Cafu, Toninho Cerezo e Muller; o Corinthians de Sócrates, Zenon e Casagrande; o Guarani de Zenon, Renato e Careca; o São Paulo de Zé Sérgio, Renato e Careca. Bem, parece que alguns compartilhavam comigo da volubilidade...
Há uma expressão popular que me define bem: o vira-casaca. Essa condição me tem permitido, ao longo da vida adulta, freqüentar como se fosse meu os estádios mais variados, acompanhando algum torcedor mais convencional – um amigo corintiano, uma filha palmeirense, um filho são-paulino, etc. Já tentei ensinar meu ecumenismo, mas constatei que não é possível: quase apanhei da torcida corintiana com minha filha torcendo entusiasmada pelo Santos em um Morumbi neutro; e em um Moisés Lucarelli transbordando de pontepretanos, uma amiga artista plástica estreou nos estádios se apaixonando pelas bandeiras do time adversário.
Mas eu já posso sentir uma mudança paulatina nos meus hábitos futebolísticos. A arquibancada vai cedendo terreno para a poltrona nos dias de jogos, mas cada vez mais vou a estádios vazios, visitando-os como turista com interesse arquitetônico. Um pobre e mortal torcedor veria nesse ato alguma insanidade, mas é melhor para fotografar o projeto, entender o conceito estrutural das arquibancadas e verificar como foram resolvidos os fluxos de público, imprensa e agremiações. Contudo, o arquiteto pode eventualmente ser incomodado pelo torcedor vira-casaca, como me aconteceu ao visitar La Bombonera e ouvir no estádio vazio o alarido da torcida do meu Boca Juniors.
Fiquei observando, durante os 30 minutos que antecediam o início do jogo, os lugares serem ocupados sem a aglomeração nos pontos de melhor visibilidade como ocorre nos estádios brasileiros. Lógico, as pessoas simplesmente sentavam nos lugares que correspondiam ao número do seu ingresso! O jogo foi um morno 0x0 contra o Villarreal do argentino Riquelme. Os quatro espanhóis do Real – Casillas Salgado, Raúl Bravo e Raúl – eram ladeados pelos italianos Cannavaro e Cassano, os brasileiros Roberto Carlos e Emerson, o malinês Diarra, o holandês Van Nistelrooy e o inglês Beckham. Robinho entrou nos últimos 15 minutos, sem tempo para pedalar ou sorrir.
Acabado o jogo, os torcedores desceram pacatamente as amplas escadas helicoidais, que levam diretamente à calçada, a poucos metros do acesso do metrô. Mais lotado do que na vinda, o trem era um mostruário de camisetas do Real de épocas diferentes, com modelos, patrocinadores e nomes de jogadores do passado recente. Desci três estações depois e em menos de 20 minutos já estava deitado no quarto do meu hotel, assistindo pela televisão os melhores lances e entrevista com os jogadores ainda no vestiário.
O episódio narrado acima ilustra uma verdade irrecorrível: ir a uma cidade e não conhecer seus estádios é como não a ter conhecido de verdade! São Paulo se expressa no Pacaembu, no Parque Antártica e no Morumbi; Porto Alegre no Beira-Rio e no Olímpico; Belo Horizonte no Mineirão; e o Rio de Janeiro no Maracanã. Os estádios de futebol são pontos vitais, onde dimensões urbanas, culturais e antropológicas se entrecruzam, configurando um Ethos específico, que nos permite identificar o grau de civilidade de um determinado contexto social.
E eu sempre fui contaminado pelas cidades onde vivi. Morando em Campinas durante o período de estudante universitário me transformei em fanático torcedor do Guarani, campeão brasileiro de 1978 com um time memorável – Neneca, Mauro, Gomes, Edson e Miranda; Zé Carlos, Ranato e Zenon; Capitão, Careca e Bozó –, e uma vitória eletrizante de 1X0 sobre o Palmeiras, gol de pênalti cobrado por Careca, após ser agredido pelo goleiro Leão. Nesta época inesquecível, o Estádio Brinco de Ouro da Princesa, construído no fundo de um vale e ao lado de um pequeno rio hoje canalizado, virou minha casa, e o campo do outro time da cidade, erigido bem próximo colina acima, ficou anos interditado à minha paixão.
Antes disso já havia exercido minha capacidade camaleônica no Rio de Janeiro, onde acompanhei a maioria dos jogos dos clubes grandes e todos os jogos do Flamengo durante o campeonato carioca de 1976. Morando em Botafogo, a ida ao Estádio já era uma aventura apaixonante. Andava até o Largo do Machado, onde pegava um circular lotado que ia direto para o Maracanã. Logo nos primeiros jogos fui contagiado pelo fanatismo rubro-negro e minha camiseta não demorou muito para ficar com as cores e distintivo do Flamengo. Tive o prazer de ver a vitória sobre o Fluminense por 4X0, com quatro gols de Zico, depois de Pelé o mais completo jogador que vi jogar. Não me recordo dos gols, mas apenas que um negro, com porte de estivador, me jogava para o alto a cada gol do Galinho de Quintino.
Lembro das centenas de bandeiras manobradas por meninos habilidosos, em coreografias cintilantes. Como os mastros se transformaram após alguns anos em bastões de combate, elas foram alijadas dos estádios, permanecendo apenas na minha memória, que as transformou em milhares ou infinitas. Não deixa de ser uma evidência visível das transformações históricas profundas sofridas pelo país nestes últimos 30 anos.
Iniciei minha vida de torcedor no Estádio Fonte Luminosa, em Araraquara, onde acompanhei desde pequenino a AFE – Associação Ferroviária de Esportes. O nome maravilhoso do estádio veio da fonte iluminada de uma praça construída pelo Departamento de Água e Esgoto nas imediações das instalações sociais e esportivas da agremiação. Ficava no bairro mais chic da cidade, só freqüentado pelos meninos dos bairros populares nos dias de jogo. No mesmo bairro seriam construídos o “Gigantão”, ginásio poliesportivo em estrutura em dobradura de concreto armado, e o Teatro Municipal, também em concreto aparente.
No final dos anos 60 e início dos 70 a AFE tinha um verdadeiro esquadrão e revelou jogadores como Bazzani, Dudu, Pio, Nei e Peixinho, futuros titulares de Corinthians, Palmeiras e Santos. No campeonato de 1968, quando ficou atrás apenas de Santos e Corinthians, a locomotiva atropelou o Palmeiras por 3X0, o São Paulo por 3X1 e o Corinthians por 4x1. O centroavante Téia, com 20 gols, foi o primeiro artilheiro de um clube do interior, distinção que o levou ao São Paulo, aonde fez 19 gols em 1969. Neste mesmo ano vi a ferrinha ganhar do Corinthians por 2X1 (dessa batalha guardo uma bandeira autografada pelos jogadores corintianos) e dois anos depois golear o Santos de Cejas, Clodoaldo, Pelé e Edu por 4x1, em 1971.
Na ida ao estádio nos dias de jogo, meu pai e meu tio, sócios de uma empresa de aguardente – a pinga Providência –, se revezavam na pilotagem de um caminhão Chevrolet de cor verde, enquanto eu e o meu primo brigávamos pela janela direita da cabine. Tantas vezes aconteceu que se fundiu em minha memória na forma de cenas prototípicas: o estádio cheio de torcedores, a arquibancada dura de concreto (a que sentávamos, pois as outras eram de madeira), o divertido xingamento ao árbitro, a entrada dos times com rojões e bandeiras tremulando; os “huuuuuus” das bolas que não entraram; os “goooools” para as que entraram.
E no intervalo ele sempre aparecia: o Marciano, um maluco que invadia o campo e o cortava correndo na diagonal. Guardas, jogadores, gandulas, árbitro e bandeirinha apenas olhavam complacentes, enquanto o público se divertia dando o que ele queria: aplausos! E todos diziam para mim: “lá vai seu tio”. Era o irmão postiço de minha mãe, o que me conferia o título de sobrinho do Marciano. Na volta o caminhão ia abrindo espaço em meio à multidão, e o silêncio ou o regozijo dos torcedores apinhados na carroceria de madeira avisava aos desavisados o resultado do jogo.
sobre o autor
Abilio Guerra, arquiteto, professor da FAU Mackenzie, editor do Portal Vitruvius e do Arquiteturismo