Corria o ano de 1969. A campanha corintiana na então chamada Taça de Prata – um verdadeiro Campeonato Brasileiro – era empolgante.
Em dezembro, a dúvida: matar o simulado no cursinho e ir a Belo Horizonte ver a final contra o Cruzeiro ou não?
Prevaleceu o bom senso.
O jogo estava marcado para domingo, como devem ser as grandes decisões.
A caravana partiu do Parque São Jorge, exatamente à meia-noite do sábado.
Eram, digamos modestamente, coisa de 60 ônibus.
Bandeiras desfraldadas na Fernão Dias, um sem-número de restaurantes literalmente saqueados no caminho, e aquele crioulo ao lado não abria a boca.
A algazarra não lhe dizia respeito.
Azar.
A chegada na capital mineira foi épica.
Por onde passava a cruzada alvinegra as janelas se abriram.
O Corinthians acordava a cidade, ali pelas sete da matina.
Os cruzeirenses desdenhavam, os atleticanos jamais.
Mineirão tomado, um gol deles.
Eram tempos de Piazza, Tostão, Dirceu Lopes, um inferno.
A gente reagiu, empatou, foi roubado e tomou o segundo, uma jogada diabólica do Dirceu, driblando Ditão e Luís Carlos e deixando o Ado a ver navios.
Uma catástrofe.
A humilhação maior, porém, ainda estava por acontecer.
Em São Paulo, no Morumbi, o Palmeiras batia o Botafogo e assim, com a nossa derrota, eram campeões os inimigos mais tradicionais.
Fazer o quê?
Nossa heróica caravana saiu do estádio cantando Palmeiras campeão, só para irritar os mineiros, numa demonstração de como o bairrismo atinge as raias da loucura total.
A provocação rendeu.
Apedrejaram o ônibus, quebraram todas as janelas, houve quem reagisse, todo mundo pra delegacia.
Horas depois, toca o arremedo de veículo estrada fora, no duro caminho da volta amarga.
Os restaurantes, precavidos, estavam fechados.
Lá pelas tantas da madrugada, a mão negra aperta a perna, e o crioulo fala pela primeira vez, cúmplice, arrasado: “Esse time só me dá problemas. Gastei 35 cruzeiros que não tinha, briguei com minhas duas muié para vir e dá nisso. É foda, irmão”.
Incontinenti se põe de pé e solta o berro, gutural, do fundo d’alma: “É o Coringão, caralho”.
A solidariedade é geral, irrestrita.
Todo o ônibus assume o gesto e povoa a noite com o grito de guerra.
Mais. Em pleno Anhangabaú, ao raiar da segunda-feira paulistana, no coração da cidade que tinha seu campeão mais uma vez errado, a caravana entrava festiva, corintiana, para o pasmo dos passantes, incrédulos indo ao trabalho, como se uma delegação de marcianos acabasse de desembarcar.
A promessa foi feita naquele momento, enquanto o Corinthians não for campeão nunca mais para o Mineirão.
Deu para entrar na faculdade. Foi uma má troca.
[artigo retirado do livro "A emoção Corinthians", de Juca Kfouri, Editora Brasiliense, Coleção Tudo é História, esgotado]
sobre o autor
Juca Kfouri, graduado em Ciências Sociais (FFLCH-USP), dedica-se ao jornalismo desde o período de estudante, quando ingressou na Editora Abril, onde chegou a ocupar cargos diretivos nas revistas Placar e Playboy. Na tevê, foi diretor de esportes da Tupi, comentarista e apresentador no SBT, Globo, Cultura, Rede TV e ESPN Brasil, onde está desde 2005. Em jornais, trabalhou no O Globo e Folha de S. Paulo, onde tem atualmente uma coluna semanal