
Sérgio Giglio no Ônibus-Museu do Barelona, de 1957
Foto divulgação
Entre dezembro de 2004 e março de 2005 morei em Barcelona. Teria três meses para conhecer a cidade sem pressa, poderia fazer rotas que os turistas não conhecem. O meu único problema era o pouco dinheiro que dispunha para passar esse período, já que foi o auge do Euro, nessa ocasião 1 Euro valia 3,89 reais.
Sempre que estou em alguma cidade que ainda não conheço procuro saber se haverá algum jogo, se o clube possui museu ou se é aberto à visitação. Em Barcelona, como a cidade é pequena optei em conhecê-la a pé e também seguir alguns caminhos que passavam pelo principal time da cidade, o Barcelona. Existe outro time na cidade, o Espanyol, que disputa os seus jogos no Estádio Olímpico, que abrigou a Olimpíada de 1992.
Vista do estádio Camp Nou e cartaz com preço do jogo entre Barcelona e Valência
Foto Sérgio Giglio
Além de conhecer a cidade, pensava em assistir algum jogo do Barcelona pela Liga Espanhola, porém, o preço dos jogos do Campeonato Espanhol variam de acordo com a posição do time na tabela. Logo que cheguei aconteceria um grande clássico entre o time local e o Valência, e como os dois times estavam bem colocados no campeonato, o valor do ingresso estava entre os mais caros da temporada.
Estádio Olímpico, Barcelona
Foto Sérgio Giglio
Claro que não pude assistir a esse jogo, pois o valor mais barato era o equivalente a 190 reais, e tive que esperar um pouco mais para conseguir assistir a uma partida no Camp Nou. Nesse meio tempo, entre a minha chegada e a primeira partida, fui conhecer o estádio e o museu do clube. A estrutura do clube é impressionante. Ao lado do estádio existe um campo de treino, toda a estrutura para outros esportes, ao todo são mais de 100 portas de acesso ao campo, o museu está acoplado ao estádio.
Complexo Camp Nou, Barcelona
Foto Sérgio Giglio
Depois de conhecer o clube sem a presença da sua torcida, consegui encontrar um jogo realmente “barato”: Barcelona x Mallorca (jogo válido pela 24ª rodada). Nesse momento o Mallorca ocupava as últimas colocações da tabela e por isso o valor do ingresso estava em baixa (20 euros).
Vista do estádio Camp Nou, Barcelona
Foto Sérgio Giglio
Algumas coisas me chamaram muito a atenção durante esse jogo. Ronaldinho Gaúcho estava no auge de sua forma, aparecia como destaque do time, era o craque inconteste do clube, havia sido eleito o melhor jogador do mundo pela FIFA e, por isso, as pessoas iam, além de ver o Barcelona jogar também para assistir as jogadas do craque.
No início do jogo o atacante camaronês Eto’o pegou o microfone e pediu o fim do preconceito racial que aconteciam no cenário futebolístico europeu naquele momento. Ao final de sua fala, em espanhol, foi aplaudido pela torcida.
O Barcelona encontrou dificuldades no início do jogo, teve um pênalti que o Mallorca desperdiçou quando ainda estava 0 x 0. Jogo tenso, com a primeira chance clara de gol desperdiçada pelo time adversário, o Barcelona encontrava dificuldades em desenvolver o seu futebol. A torcida estava apreensiva até que o telão mostrou que o Real Madrid perdia em casa para o Athletic de Madrid. A rivalidade entre as duas equipes é tão grande que a torcida vibrou mais quando o Real tomou os gols do que no momento em que o Barcelona fez o primeiro gol.
Para entender essa rivalidade é preciso relacionar a história da Espanha com os times de futebol. Durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) o ditador Francisco Franco procurou impor uma uniformidade na vida nacional, para isso defendeu o castelhano como língua oficial em detrimento das demais línguas (catalão, basco, galego etc).
O ensino escolar adotou o castelhano como língua oficial, porém, fora das escolas as crianças aprendem a língua local. Se olharmos para as posições políticas que os clubes vão assumir, percebe-se a oposição nesse ponto. O Barcelona tornou-se um símbolo antrifranquista, o escudo do clube possui as cores da bandeira da Catalunha e a língua dessa região é o catalão. O presidente do Real Madrid, presidente Santiago Bernabéu (assumiu esse cargo em 1943) manteve simpatia com o período franquista, fato que fez com que o time da capital fosse visto como clube do regime.
Placar do Camp Nou anunciando resultado parcial do jogo Real Madrid e Athletic de Madri
Foto Sérgio Giglio
Voltando ao jogo. Durante o intervalo outras situações curiosas aconteceram: os torcedores do nosso setor, que era o mais barato e o mais alto do estádio, levavam o seu próprio lanche, talvez pelo preço dos produtos no estádio: um lanche 3,50 euros, uma coca-cola 2,50 euros e um café 1,20 euros.
Cartaz de lanchonete com preços dos produtos no estádio do Barcelona
Foto Sérgio Giglio
Ao final do jogo o time da casa não encontrou maiores resistências e venceu a partida com dois gols do brasileiro Deco. Após a partida, as inúmeras portas que o estádio possui facilitam a evacuação do espaço. Em poucos minutos o estádio estava vazio. Claro que o grande número de pessoas lotou o metrô, mas existe toda uma estrutura (como aqui também há) que organiza o metrô.

Camp Nou após o jogo
Foto Sérgio Giglio
Tinha conseguido um dos meus objetivos que era assistir a uma partida do Barcelona e ver o Ronaldinho Gaúcho jogar, afinal, nunca o tinha visto jogar ao vivo no Brasil. Como os ingressos eram caros e tinha pouco dinheiro para sobreviver até março não me interessei em assistir a outras partidas.
Oração antes do início da partida
Foto Juliana Steinberg
Porém, no final de dezembro de 2004 aconteceu uma tragédia na Ásia: o tsunami. O terremoto de 9 graus na escala Ritcher matou milhares de pessoas, e em fevereiro de 2005, foi organizada uma partida para arrecadar fundos em prol das vítimas do tsunami. O jogo reuniu as maiores estrelas do futebol mundial e foi disputada entre o time do Ronaldinho Gaúcho e o time de Sevchenko.
Início do jogo
Foto Juliana Steinberg
Como era uma partida em solidariedade às vitimas o preço do ingresso foi mais barato que o do Campeonato Espanhol: “apenas” 10 euros. Se já tinha visto Ronaldinho e Cia jogar pelo Barcelona, agora era a chance de ver Sevchenko, Kaká, Beckham, Zidane, Gerrard, Dida, Henry, Del Piero, Cafu, Casillas, Toldo, Thuram, Litmanem, Raúl, Zola, Giuly etc.

Torcida acompanha a partida na arquibancada inferior de Camp Nou
Foto Sérgio Giglio
Se no primeiro jogo que assisti estive no lugar mais alto do estádio, nessa partida ocupamos o lugar atrás do gol, no anel inferior do estádio. A parte em que assistimos a outra partida estava fechada. A presença do público foi grande (40 mil pessoas, embora parecesse menos) apesar do frio que fazia no dia, uma terça-feira à noite.
Gol do time do Ronaldinho
Foto Sérgio Giglio
Assistir a uma partida de futebol em que o erro não será contestado tem outro sentido. É um outro jogo. Ainda mais quando estão em campo os grandes astros desse futebol mundial. Uma partida como essas faz com que a valorização da habilidade individual seja colocada em primeiro plano. Claro que a pouca exigência pela marcação se comparada a uma partida que pertença a algum campeonato altera a dinâmica do jogo. Se o que se preza nesse tipo de jogo é a habilidade e a pouca marcação, o resultado todos já sabem: inúmeros gols.
Placar apresenta resultado do final do primeiro tempo
Foto Sérgio Giglio
Não foi à toa que o placar final da partida, vitória por 6 a 3 do time de Ronaldinho, cause algum espanto nos dias atuais, se no passado, as formas do jogar eram outras e os placares eram mais altos que os atuais.
Ronaldinho acompanha a jogada
Foto Sérgio Giglio
Não há dúvidas que assisti partidas melhores e mais interessantes que as duas descritas nesse texto. Entender como os barceloneses se relacionam com o clube facilita o entendimento da frase que o “Barcelona é mais que um clube”, ele representa o modo de ser do catalão. A oportunidade de ver no estádio jogadores (mesmo brasileiros) que somente vimos pela televisão é uma experiência interessante.

Cena do jogo
Foto Sérgio Giglio
Com a saída cada vez mais cedo dos jogadores brasileiros para o exterior a única forma de vê-los em campo será no exterior. Apesar desse fato, as partidas acompanhadas tornaram-se significativas pelo contexto em que aconteceram (meu primeiro jogo no exterior), a presença das grandes estrelas e um jogo em prol das vítimas de uma das maiores catástrofes da história da humanidade, transformou esses jogos em partidas especiais.
Visão geral do campo
Foto Sérgio Giglio
sobre o autor
Sérgio Settani Giglio é graduado e mestre em Educação Física pela UNICAMP. Integrante do GIEF (Grupo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol); do MEMOFUT (Grupo de Literatura e Memória do Futebol) e do GEPEFIC (Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação Física e Cultura). Atualmente é professor no curso de Educação Física da Uninove.