Na sua infância, qual o significado da Vila Belmiro?
Na primeira vez em que entrei ali, depois de ouvir muitos e muitos jogos pelo rádio, e pela televisão, me chamou a atenção o fato de que a linha lateral era bem mais grossa do que em outros campos. Não era pintada a cal, mas escavada na grama, deixando uma faixa de terreno à mostra, que soava aos olhos como areia da praia. Me fascinava sentir a praia ainda presente ali, por baixo daquela grama, exposta assim nas bordas do campo.
Depois a Vila Belmiro foi reformada, as arquibancadas ampliadas, o campo diminuiu um pouco, e as linhas laterais tornaram-se normais. Mas o estádio tem o encanto de suas dimensões pequenas, onde pode ter cabido tanto coisa, e, olhado de fora, parece um grande navio que passou além do cais: é meio troncho, e, de certo ângulo, as arquibancadas se projetam sobre a calçada.
O bairro permanece espantosamente parecido com o que era há 50 anos: sobrados arejados, ruas de paralelepípedos, um certo nicho de calma na voracidade do mundo. Há pouco, fiquei sabendo por um sismólogo que o estádio do Santos foi de fato construído sobre uma região de areia, e que, por isso, quando o estádio vibra, todo o chão do bairro entra em vibração sutil. A Vila tem magia.
O que significa ser santista?
Uma das coisas intrigantes do futebol é que os clubes têm muitas vezes um certo ethos ou um certo pathos que o acompanham ao longo do tempo. No caso do Santos, ficou sendo o futebol bonito. Não quero dizer, é claro, que isso aconteça sempre. O time está afundado e já afundou muitas vezes em crises ou em longos períodos inexpressivos. Mas quando ele renasce, é para o futebol jovem e criativo. É o que aconteceu com alguns momentos pós-Pelé, com a geração de Juari, Pita e João Paulo, depois a de Giovani, e, mais recentemente, a de Robinho e Diego.
No meu caso, o fato de acompanhar esse time como um dado “natural” do cotidiano, nos anos 60, talvez tenha me acostumado ao padrão de excelência como o mínimo que se espera das coisas, e com a idéia difusa de que a eficácia pode ter beleza, e vice-versa. Talvez me faça supor isso onde não haja, talvez me iluda, talvez seja uma “distorção da minha personalidade”, resultante da exposição demorada, em tenra idade, a esses raios futebolísticos intensos (foi o que me disse um amigo também torcedor do Santos, mas dez anos mais novo, com humor e sagacidade, ao ver filmes do auge da era Pelé).
Quais as diferenças entre o futebol jogado na várzea e o jogado no estádio?
Pela minha experiência na Baixada Santista nos anos 60 eu diria que há, ou pelo menos havia, diferentes graus de futebol que iriam subindo em círculos até chegar ao quase estratosférico. Uma pelada livre, como é o caso do futebol espontâneo de praia, não obedece a regra nenhuma que não seja a do acordo tácito entre aqueles que estão jogando e que, em princípio, querem continuar jogando.
Não há juiz, não há uniforme, não há limites bem definidos do campo e o próprio gol não é uma evidência. Já os campeonatos de várzea de São Vicente imitavam o futebol profissional, com todo o fascínio e o encanto de quem persegue com seus próprios recursos, limitados ou generosos, um ideal.
Primeira e segunda divisão, juiz, uniformes, campos mais gramados ou mais esburacados davam lugar a prélios emocionantes, com a vantagem de que a gente se sentia quase dentro do campo, junto do cheiro da terra escura dos mangues, da grama (com um perfume penetrante e diferente em cada campo) e até do couro da bola. Numa disputa pela lateral não era raro o espectador sair salpicado pelo suor dos jogadores.
Já quando um time profissional vinha jogar no modesto estádio do São Vicente Atlético Clube, como a Portuguesa Santista ou o Jabaquara, o time visitante parecia como que envernizado perante os meus ídolos vicentinos: músculos mais calibrados e lubrificados, camisas, calções e meias, tudo mais composto, como se feito de outra matéria. O toque na bola esplendia já de outra forma. O que falar do Santos, diante disso? Era a quintessência daquilo tudo, era a própria província elevada à dimensão cósmica, o Mundo das Idéias ao rés do chão.
Qual a distinção entre o estádio como arena e como objeto de arte?
Vou responder um pouco pela tangente, e por associação livre, na impossibilidade de responder com propriedade num portal de arquitetura. Acho que o jogo depende de uma certa dialética entre a bola e o quadrilátero. A bola é o objeto perfeito e imponderável, ao mesmo tempo controlável e incontrolável, platônico e fractal, cósmico e caótico, completo como nenhum e ao mesmo tempo provido daquela margem incalculável e irredutível que gera movimentos imprevisíveis, aleatórios. O quadrilátero é o espaço de quantificação, de regulação, de suposto domínio dessa bola indominável. O espaço dos jogos mantém, através dos tempos e das culturas, essa tensão entre o círculo e o quadrado, entre o desejo de domínio e a impossibilidade dele. O jogo é a temporalização agônica dessa tensão espacial. Os povos da Mesoamérica, como os astecas, olmecas, toltecas e maias, haviam dominado, com a borracha, a técnica da produção da bola perfeita e ricocheteante, e puderam encená-la e espetacularizá-la como nenhum outro povo até então, através do tlachtli, o jogo-rito sagrado.
“Estádios” de jogos de bola ocupam um lugar importantíssimo em todos os sítios arqueológicos dessas sociedades. Os jogos de bola ocupam nelas uma importância só comparável, com todas a diferenças, a essa que adquiriram nas sociedades de massa contemporâneas, depois que os ingleses dominaram a técnica da bola de couro costurada e inflável. O jogo pode se tornar, então, não uma mera refrega, mas um “discurso” articulado que faz sentido não só para quem joga mas para quem assiste. Os estádios são as arenas desse confronto, não só entre times, mas entre o estar dentro das quatro linhas e o estar em torno delas. O estádio, enquanto tal, contêm a bola, contida no círculo central, contido num quadrilátero, e de novo contido num círculo elíptico. Arena e/ou objeto de arte, ele mantém, redobra e monumentaliza a relação originária do círculo com o quadrilátero.
O futebol pode se expressar eventualmente como arte ou é uma arte em si?
O futebol moderno é um jogo em que impulsos, desejos e violências potenciais são codificados e sublimados na forma de uma competição ideal em que se parte da igualdade (o zero a zero) para o estabelecimento de diferenças resultantes das performances.
Todos os jogos modernos são assim, mas no futebol a margem de imprevisibilidade, de acaso e de gratuidade é maior do que nos outros esportes. A narratividade é mais fluida, mais ampla, e, talvez por isso, mais expandida e irradiada através da culturas do mundo.
Por essa amplitude, o futebol dá lugar a configurações artísticas que se expressam nele por fulgurações, geralmente intensas, momentâneas, e muitas vezes inesquecíveis. A gente espera por elas, venham elas ou não. No futebol a arte está no horizonte do provável e do improvável.
Por quê as comemorações de títulos em São Paulo não se esgotam no estádio e ganham a Av. Paulista?
Um jogo de bola que se praticava na Idade Média, o soule, era jogado sintomaticamente de duas formas: ou tratava-se de conquistar a pelota e invadir o território do grupo adversário, no caso a sua aldeia, tomando o seu campanário como uma espécie de “gol”, ou, ao contrário, tratava-se de conquistar a bola e trazê-la vitoriosamente para o seu próprio território, consagrado pelo jogo-rito como uma espécie de “umbigo do mundo”.
O futebol moderno adotou a primeira forma, isto é, a invasão do território alheio para obter o resultado. Mas quando uma seleção conquista a taça e desfila vitoriosamente pelas ruas da sua própria cidade, é como se ela realizasse, compensatoriamente, a segunda vertente desse rito: o retorno do trunfo ambicionado a seu espaço idealmente originário, como o Graal. Quando uma torcida não se contenta em comemorar no estádio mas faz da cidade uma réplica expandida do estádio, é como se buscasse a afirmação dessa dimensão comunitária que a cidade deixou de ter.
No caso da Avenida Paulista, é como se elas dessem à cidade um direito de cidade, uma dimensão à cidade que ela não tem, e como se, por um momento, refundassem a cidade.
Qual a relação entre a nova tecnologia das bolas e a arquitetura dos novos estádios de futebol?
A idéia é a de uma certa relação isomórfica entre as transformações da bola como objeto mercável, tendo na sua superfície uma “tela” óptica, e a “pele” inflável dos novos estádios, como a Allianz Arena de Munique. Nesse caso, o estádio e a bola se emulam.
Qual seria o time dos seus sonhos?
Vou tomar ao pé da letra a palavra “sonhos” e apresentar uma seleção sentimental dos melhores momentos da minha própria carreira de torcedor. O time dos meus sonhos joga para sempre no 4-2-4: Gilmar, Carlos Alberto, Mauro, Calvet e Junior (do Flamengo); Falcão e Zico; Sócrates, Romário, Pelé e Robinho.
sobre o entrevistado
José Miguel Wisnik é professor de literatura brasileira na Universidade de São Paulo, ensaísta e músico. Publicou O som e o sentido – uma outra história das músicas (Companhia das Letras), Sem receita – ensaios e canções (PubliFolha) e Veneno remédio - o futebol e o Brasil (Companhia das Letras). É autor de CDs de canções, de trilhas para cinema, dança e teatro.