Arte, meio urbano e uma cidade do interior. Esse foi o contexto que orientou a intervenção artística elaborada pelo grupo Pparalelo de Arte Contemporânea para o Dia Internacional Sem Carro 2008. A escolha que inaugurou o projeto, feita a dedo, nos levou à cidade de Limeira SP, centro urbano que até então não tinha aderido oficialmente a essa comemoração.
Localizada 154 km a noroeste da cidade de São Paulo, Limeira tem cerca de 300 mil habitantes, uma economia voltada para o comércio além da produção agrícola e industrial de insumos da laranja e cana de açúcar. A cidade mantém 2 jornais circulantes, 3 redes locais de TV e 6 instituições de ensino superior das quais destaca-se um campus da Unicamp e uma Escola particular que possui um curso de Design e Arte. Sua configuração cultural é entremeada por uma forte presença histórica das fazendas que organizam a paisagem do início do século XX e a presença de grupos artísticos atuais que convivem com os projetos locais da Prefeitura e das Oficinas Culturais do Estado.
Esse panorama apresenta uma demanda pela renovação de projetos artísticos que venham de outras ordens, desvinculadas da instituição ou que alarguem a participação de seus artistas no fluxo cultural da região.
Nesse ano, as comemorações internacionais do Dia Sem Carro aconteceram entre 15 e 22 de setembro. No Brasil, segundo o Instituto Rua Viva, foram 32 cidades brasileiras as participantes dessa causa que problematiza os usos do carro pelo planeta. 8 delas capitais, as demais 24, cidades interioranas de diferentes Estados. O evento também demonstra sua relevância a partir de outro parâmetro numérico: as cidades do interior envolvidas tem, segundo senso do IBGE, entre 40.000 e 1 milhão de habitantes. Em todas elas, o excesso de veículos é o principal estímulo à participação.
A adesão de cidades tão distintas quanto ao fluxo de pessoas e espaço urbano sugere também que o formato do Evento emoldura, de certa maneira, a orientação geral adotada, como referência simbólica importante na apresentação dos elementos de preocupação social desses centros.
Há algumas décadas, as políticas públicas adotam estratégias variadas de fusão entre Arte e Turismo apoiando-se na proliferação de esculturas públicas, grandes eventos museicos, festivais e espetáculos de todo tipo, tal qual nos alerta Louis Redstone, dentre outros autores. Contudo, esse ponto da adesão de propostas artísticas para o Dia Internacional Sem Carro pode ser analisado para além da estratégia de embelezamento, sempre presente nas discussões mais críticas sobre as formas adotadas pela Arte Pública na atualidade.
A participação nas comemorações de datas como essa carrega um dado caro, tanto para o enfrentamento do artista nos centros urbanos atuais, quanto para o urbanismo e as políticas públicas: alcança preocupação uníssona das distintas platéias desse território urbano movediço. Tal mobilização de atenção, contudo, não significa ação efetiva, mas revela-se como uma das poucas causas públicas comuns ainda possíveis de serem experimentadas nos centros urbanos.
Passar um dia sem carro é uma proposta que remete à qualidade de vida urbana, idéia bem vista pelos seus gerenciadores, sejam eles, dirigentes político-administrativos, ONGs, diretores de escolas públicas, artistas interventores contemporâneos ou qualquer instituição pública ou privada atenta à importância desse contexto como ponto de revisão dos valores cotidianos urbanos. Mobilidade é a reclamação que configura o cidadão contemporâneo.
O aspecto coletivo e público pretendido pelas formas da Arte Pública e Urbana atuais é um dos principais desafios do artista envolvido com essa linguagem. É tarefa difícil enfrentar a cidade de hoje, envolver a comunidade em processos estéticos e/ou sociais que dialoguem com o mesmo ponto de partida, que sensibilizem as instituições. A desaceleração do entorno, própria da atenção despertada pelas intervenções artísticas urbanas, convida o habitante local à observação mais crítica e qualitativa sobre a paisagem habitada. Liberando-o, mesmo que por poucos minutos, da pressa cotidiana, torna-o o melhor turista, permite que ele assuma uma postura de espectador ativo dos valores estéticos, ideológicos, sensoriais, urbanos. Valoriza sua presença como testemunha cultural.
O projeto criado pelo Grupo Pparalelo para a cidade de Limeira levou em conta tais aspectos voltando-se para a constituição geral da cidade, dispondo-se também a verificar as nuances não evidentes que surgiriam com a interação de sua população. O tom informal aplicado ao título da intervenção facilitou a aproximação inicial: FUI A PÉ foi a frase-título impressa nos adesivos amarelos distribuídos para o público ao longo do dia além de aplicados nos pacotes escultóricos criados para o projeto. Os três carros que levaram os artistas de Campinas a Limeira foram estacionados em vagas públicas das principais praças centrais da cidade de Limeira formando os pacotes escultóricos construídos com lonas plásticas azuis, cordas de nylon e muitos adesivos aplicados nessa superfície. Os automóveis ficaram imobilizados o dia todo, amarrados a árvores, postes e demais equipamentos urbanos próximos às vagas, deixando seus proponentes a pé, demarcando uma área visual nova para aquele trecho urbano, convidando as pessoas para que fizesse o mesmo naquela semana.
A resposta do público local veio imediatamente. Que gente curiosa, interessada e participativa descobriu-se nesse dia! O público urbano freqüentador da área central de Limeira, especialmente aquele das bordas dessas praças centrais, faz compras, vai ao banco, transita entre o trabalho e o restaurante, entre a escola e as lojas de serviços, interessado nas interferências visuais do seu cotidiano, muitos revelaram fazer isso tudo, costumeiramente, a pé. As abordagens quase tomaram o rumo contrário: os artistas eram interpelados pelos transeuntes em boa parte do contato estabelecido. Um grupo de artistas locais que colaboraram com a viabilização e autorizações necessárias, além da ação propriamente dita, ajudou a construir o discurso que redirecionava a conversa trocada com a população na busca do aspecto artivista pretendido pelo projeto.
Os flaneurs locais avisaram seus compadres e a circulação daquela informação rapidamente conjugou arte, meio urbano, consciência coletiva e mídia, evidenciando mais uma bela cidade do interior do Estado a ser visitada, se possível, a pé.
sobre o autor
Sylvia Furegatti, artista visual, doutora em História da Arquitetura e Urbanismo pela FAU USP. Professora do Departamento de Artes Plásticas – IA/Unicamp. Membro fundador do Grupo Pparalelo de Arte Contemporânea de Campinas